Entre 1978 e 1986 vivi no Canadá, paredes meias com os EUA. Na altura, a democracia em Portugal ainda estava por implementar, vivia-se um período de grande turbulência política. Até então, eu, de democracia partidária, na prática conhecia a expressão.
Assisti a duas eleições presidenciais nos EUA - ambas ganhas por Reagan - e a várias eleições parlamentares no Canadá, a primeira ganha pelo pai do actual Primeiro-Ministro. Assisti também a um referendo para a independência do Québec.
O referendo surpreendeu-me. Há muito que existiam vozes para a independência do Québec que exigiam um referendo - o Québec era a Província francófona num país maioritariamente anglófono. A decisão do governo central em Ottawa foi a de aceitar o referendo numa atitude de: "Resolvam lá isso e depois digam-nos o que querem fazer". Os independentistas perderam mas, se tivessem ganho, o Québec seria hoje um país independente (outro referendo na década de 90 produziu o mesmo resultado).
A questão que na altura me lembro de ter posto foi a seguinte: como é que o governo em Lisboa reagiria se a Madeira ou os Açores quisessem tornar-se independentes, mandava fazer um referendo entre os madeirenses ou os açoreanos? A resposta veio breve. Não, mandava para lá as tropas.
Era uma diferença que eu via entre a democracia canadiana e a democracia portuguesa nascente. Mas não era a única, nem sequer a principal.
Por essa altura, eu já tinha votado em Portugal, em 1976 - a primeira e única vez que votei em eleições legislativas. E seguia a política portuguesa através dos jornais. Lembro-me que quem perdia imediatamente contestava os resultados e iniciava em boicote activo a acção de quem ganhava. A oposição iniciava-se no dia seguinte às eleições perdidas, uma tradição que ainda hoje se mantém. Portugal está constantemente em campanha eleitoral.
Ora aquilo que eu mais apreciei nas eleições norte-americanas a que assisti foi o que mais tarde vim a chamar de "o silêncio dos derrotados". Havia campanha eleitoral, chegava o dia das eleições e quem perdia calava-se até às próximas eleições. A política desaparecia da vida social até às próximas eleições.
Na realidade, havia mais. Havia a expectativa da parte do eleitorado de que a oposição cooperasse com o partido ganhador. E havia uma lógica nesta expectativa que era a seguinte: Se o partido ganhador, mesmo com a cooperação da oposição, não conseguir realizar o seu programa, então é porque não é de todo capaz. E, nas próximas eleições, será arredado do poder. Pelo contrário, uma oposição que estivesse constantemente a criar problemas ao governo, quase de certeza voltaria a perder nas próximas eleições.
Havia uma certa nobreza democrática por parte da oposição que eu apreciava, uam nobreza que era feita de silêncio e cooperação.
Ora, é o silêncio dos derrotados que eu não tenho visto nos EUA depois da eleição de Trump. Para não falar na cooperação, ou falta dela, dos derrotados em relação aos vencedores.
As explicações podem ser várias para esta alteração, aos meus olhos tão drástica, da tradição democrática norte-americana. A principal pode ser a imigração. Desde a altura em que lá estive até agora a população dos EUA quase duplicou, passando de 200 para 350 milhões de habitantes, a esmagadora maioria imigrantes - muitos muçulmanos, muitos católicos também, sobretudo da América Latina. São eles que, não tendo uma tradição de democracia partidária, podem estar a alterar a tradição política americana.
A tradição de uns e de outros é de uma autoridade pessoal no poder. Trump pode representar o primeiro elo nesta cadeia de transição.
Por outras palavras, a América post-eleições parece-me hoje muito mais um país católico, como Portugal - em que a oposição contesta o governo e cria obstáculos à governação desde o dia seguinte às eleições até ao próximo acto eleitoral - do que a América da tradição protestante, cuja mensagem aos derrotados é a seguinte: "Já tiveram a oportunidade de falar e perderam. Agora calem-se. E colaborem com quem ganhou".
Sem comentários:
Enviar um comentário