01 janeiro 2016

Povo e massa

Penso que foi o Papa Pio XII na sua alocução de Natal de 1944 que, pela primeira vez, introduziu a distinção entre povo e massa. O meu propósito aqui é o de elaborar sobre essa distinção. O que é que caracteriza o povo, o que é que caracteriza a massa, e o que é que distingue o povo da massa? Mais: como é que se converte um povo em massa e a massa em povo? Estas são as questões às quais pretendo responder.

A primeira, e a mais importante de todas as distinções, é que os elementos que constituem um povo são todos diferentes uns dos outros, ao passo que os elementos que constituem uma massa são todos iguais uns aos outros. Um elemento do povo é uma pessoa, tem personalidade. Pelo contrário, um elemento da massa é um mero indivíduo, não tem personalidade.

Na massa, conhece-se um indivíduo e ficam-se a conhecer todos os outros porque todos eles são iguais. Pelo contrário, no povo o conhecimento de uma pessoa não garante o conhecimento das outras, porque elas são todos diferentes. Na massa, a generalização é possível, no povo ela é impossível.

Daqui decorre que o modo de pensamento típico da massa é o pensamento abstracto que permite a generalização, omitindo os detalhes em que se manifestam as diferenças, porque elas são sempre pequenas e insignificantes. Pelo contrário,  o modo de pensamento do povo é o pensamento concreto que se concentra num objecto - uma pessoa ou uma coisa -, que é único e irrepetível.  A massa exprime-se pelo abstracto, o povo pelo concreto.

A massa une-se pelo poder. Pelo contrário, o povo une-se pelo amor (no sentido lato). É o amor o cimento que une os elementos de um povo, é o poder o cimento que une os elementos de uma massa. Por isso, a instituição principal de um povo é a família, ao passo que a da massa é o Estado.

A massa exprime-se privilegiadamente em público, ao passo que o povo se exprime privilegiadamente em privado. A massa gosta de se exibir, o povo, pelo contrário, é discreto. Para se exprimir, a massa precisa, portanto, de meios de comunicação públicos (ou de massa), ao passo que o povo se exprime através de meios privados, oralmente na família ou no círculo de amigos, ou em meios de comunicação de âmbito restrito.

O povo une-se pela diferença, que cria complementaridades. Pelo contrário, a massa desune-se pela igualdade, que cria redundâncias. Segue-se que o povo é comunitário, ao passo que a massa é  sectária. O sentimento de comunidade de um povo resulta de a diferença se tornar insuportável - ninguém consegue viver sozinho sendo absolutamente diferente de todos os outros. Pelo contrário, o sentimento sectário da massa resulta de a igualdade se tornar insuportável - ninguém consegue viver em grupo sendo  absolutamente igual a todos os outros.

Num povo, o amor  pela outra pessoa resulta da diferença radical que cada um vê nela em relação a si próprio. Pelo contrário na massa, o ódio ao outro indivíduo resulta da igualdade radical que cada um vê nele em relação a si próprio. No povo, o sentimento que emana do coração de cada pessoa em relação a outra é o amor. Na massa, o sentimento que emana do coração de cada indivíduo em relação a outro é o ódio.

Um povo converte-se em massa pelo medo. É o medo de aparecer em público como sendo diferente dos outros que  leva o homem do povo a converter-se em homem-massa. A instituição do medo utilizada para converter um povo em massa é o Estado. Terrorismo de Estado é o que faz um povo render-se à massa. O instrumento é o poder em várias manifestações: Fisco, ASAE, Ministério Público, mas também os Ministérios da Educação e da Saúde.

Pelo contrário, um povo converte uma massa pela sedução e pelos sentimentos de pertença e de proteção que a comunidade oferece ao homem-massa, que é um homem radicalmente só e inseguro. A instituição que o faz é a família e o instrumento é o amor.

A figura social mais detestada pela massa é o pai (ou a mãe) de família, que é o homem (ou mulher) comunitário por excelência. Pelo contrário, a figura mais detestada pelo povo é o político partidário, que é o homem (ou mulher) sectário por excelência. É no confronto entre o pai de família e o político partidário que, em última instância, se decidirá o futuro de uma sociedade, se ela permanecerá um  povo ou se, pelo contrário, se converterá numa massa.

É este, hoje, o confronto decisivo em Portugal: ganha o pai de família ou ganha o político partidário?

11 comentários:

Vivendi disse...

A resposta passa pelo municipalismo, olhe-se ao exemplo do Porto (futura Cidade-Estado), que actualmente está aos comandos de um não partidário e onde temos hoje uma cidade bem mais dinâmica e com uma personalidade distinta.

O municipalismo faz parte da tradição portuguesa. E cabe ao Norte desempenhar o papel decisivo para impor a realidade a todo o Portugal.


«O regime de que o mundo precisa para sair do atoleiro em que está metido é realmente o da Monarquia Portuguesa anterior a D. João I (este já bastante infectado de Europa) (...) Acima disso, o município, clara e inteiramente "republicano". Como "coordenador geral" e "inspirador" o Rei (...)»
Agostinho da Silva

CCz disse...

Interessante

Menina Marota disse...

Veremos... veremos... a massa está a consolidar-se...

Anónimo disse...

Pedro Arroja, parabéns!
Voltou com um trabalho difícil. Difícil de escrever e difícil de ler.
São as suas ideias, a sua maneira de sentir a Vida. O que eu o invejo — ou seja... não faço parte da massa.
Lido e relido, acabo por sentir cada vez mais as suas opções, as suas razões, que acompanho há anos. E estou de acordo com elas.

"O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz"

Claro que foi o Papa Pio XII na sua alocução de Natal de 1944. No Vaticano:
Radiomensaje «Benignitas et Humanitas» de su Santidad Pío XII en la víspera de Navidad
24 de diciembre de 1944 — Sexta Navidad de guerra
«Benignitas et humanitas apparuit Salvatoris nostri Dei» (Tt3,4).

Não há versão em português. Se calhar por não convir...

Abraço

Manuel N. J. Gonçalves disse...

Pode ler a mensagem do Santo Padre Pio XII aqui:

http://o-povo.blogspot.pt/search/label/Papa%3A%20Pio%20XII

Bom Ano Novo!

Nuno disse...

Este texto fez-me lembrar o livro "Massa e Poder" de Elias Canetti, escrito vários anos após esta alocução do Papa Pio XII. Bem-vindo de volta, Professor. É sempre um prazer ler as sua reflexões. Obrigado!

Anónimo disse...

Eu ainda tive o privilégio de crescer numa vila com povo, com figuras típicas, esse mundo entretanto morreu um pouco com a urbanização do povo... Havia de tudo um pouco, industriais, trolhas, barbeiros, pastores, havia até prostitutas e bichas. Eram 20 e tal mil almas no concelho e 4 mil na vila. Toda a gente se conhecia, todos se toleravam uns aos outros, mas havia já o bichinho partidário do comunismo em meia dúzia de gatos pingados que nas tabernas atiçavam empregados contra patrões...

Rui Alves disse...

A resposta à pergunta final não me parece difícil. O pai de família sempre existiu e sempre existirá. O político partidário só existe enquanto há dinheiro (dos outros, de preferência).

Rui Alves disse...

Na nossa cultura católica, o padrão normal dos partidos é nascerem e beneficiarem de um período de florescimento, tipo vírus, em que atacam e se apoderam de tudo o que se mexe, até finalmente infectarem o objectivo mais recôndito e inexpugnável de todos: o lar e a família. Mas nessa altura, qual parasita estúpido que mata o hospedeiro, já têm apodrecido o tecido social e causado a desgregação da nação, acabando destruídos na voragem que criaram. Segue-se depois uma ditadura férrea que acaba por cremar e enterrar os partidos e trazer de volta (por vezes em excesso, é a famosa metáfora do pêndulo) tudo o que os partidos tentaram destruir.

Exemplos não faltam: Portugal na I República, seguido do regime de Salazar; Espanha na década de 30, em que se "fuzilaram" imagens de Nª Senhora, seguida do regime de Franco que, segundo consta, até tornou obrigatório por lei o baptismo católico; o Chile de Allende, seguido da ditadura de Pinochet. Acredito que lamentavelmente o Portugal da III República acabará por engrossar a lista.

Mas os pais de família, esses sempre existirão. E nessa altura, precisaremos deles mais do que nunca. Precisaremos de homens de família, responsáveis, em vez de catraios que nunca saíram da adolescência mas que andam por aí a brincar aos governos enquanto esperam que a jota e o partido velem pelas vidinhas deles.

marina disse...

a desordem fará que clamemos pela ordem . sempre foi assim , como diz , Rui.

ze laranja disse...

"O instrumento é o poder em várias manifestações". Sem dúvida. o Estado portugues tem um vaso rol. Coném fazer a listagem. Juntaria:"autoridade"presente em inumeros organismos estatais - Alta Autoridade para a Comunicação Social; Autoridade Tributária e Aduaneira; e expressoes : "agente da autoridade". Tudo para diminuir o cidadão.