02 outubro 2014

de um acto de amor hierarquizado

É claro que existem decisões de afectação dos recursos de uma família que são tomadas pelo homem ou com uma forte intervenção do homem - como a compra do carro ou da casa. Mas estas são decisões raras, que ocorrem de muitos em muitos anos.

As dezenas de decisões diárias de que se compõe o governo de uma casa de família, como aquilo que se vai comer ao almoço e ao jantar, a marca dos sabonetes e do dentífrico,  o detergente para a loiça, os guardanapos, as fraldas para o bebé, a camisa para o filho mais velho, e frequentemente para o marido - decisões que perfazem muitos milhares ao ano - essas são tomadas pela mulher.

É a mulher que governa a casa (com a assistência do homem) porque é ela que toma a esmagadora maioria das decisões de consumo da família.

Na teoria económica convencional, o consumidor é um indíviduo abstracto e sem sexo que, dado o seu mapa de indiferença e a restricção orçamental, decide por um cabaz de bens que maximiza a sua utilidade. Este indivíduo escolhe entre produtos.

(Eu dirijo-me agora sobretudo a economistas, utilizando o jargão da profissão e os seus instrumentos analíticos convencionais, e é claro que me preparo para abanar tudo isso. Não pelo prazer de abanar, mas porque a teoria económica convencional - falo agora da microeconomia - é falsa e só contém algumas verdades).

E a mãe-de-família decide entre quê?

Em primeiro lugar, ela decide entre pessoas, e só depois é que decide entre produtos.

Decide entre pessoas?

Sim. Sendo dada a restricção orçamental, ela atribui prioridade à satisfação das necessidades dos mais novos, aqueles que, sem a sua protecção, teriam mais a sofrer, os mais desprotegidos - e esses são os mais novos.

As necessidades do bebé  têm prioridade sobre as de todos os outros membros da família, seguindo-se as do segundo filho mais novo, etc. - a ordem de prioridades é inversa à idade. Não surpreende que o marido fique para último.

Tendo decidido, em primeiro lugar, aquilo que tem de comprar para o bebé (papa, roupas, cremes, fraldas, etc.) só então é que ela passa a escolher entre produtos (v.g., entre os diferentes tipos de papas que encontra no mercado). E procede igualmente assim para os outros membros da família, seguindo a ordem de prioridades estabelecida, do mais novo para o mais velho (ela normalmente é a penúltima).

Porém,  ao contrário do individuo abstracto que é o consumidor da teoria económica convencional, a sua decisão entre produtos,  sujeita à restrição orçamental, não é feita de molde a maximizar a sua utilidade pessoal. É feita de molde a conferir o maior bem possível ao membro da família a quem a escolha beneficia. Uma mãe-de-família não compra as fraldas para o bebé que ela acha mais bonitas ou que mais a gratificam. Compra as fraldas que, no seu julgamento, são as melhores para o  bebé (dentro, obviamente, da restricção orçamental).

A curva da procura individual (e, por agregação, a curva da procura de mercado) para fraldas não é, como supõe a teoria económica convencional, o resultado de um exercício de amor-próprio ou de egoísmo em que um consumidor abstracto, sendo dadas as suas curvas de indiferença entre fraldas e outros bens, o preço das fraldas e dos outros bens, e ainda o seu rendimento, maximiza a sua utilidade pessoal.

Não. É o resultado de um acto de amor hierarquizado (primeiro os mais novos e depois os mais velhos) em que, sendo dados os preços das várias marcas de fraldas disponíveis no mercado, e o seu rendimento, ela escolhe as fraldas  que são melhores, não para si, mas para o bebé.

E no caso do after-shave usado pelo marido também é assim, também é a mulher a escolher?

É. (Embora por vezes dando ao marido a sensação de que é ele a escolher).

Existe algum homem que consiga viver com uma mulher que não lhe aprove o after-shave?

Eu não conheço.
 

4 comentários:

Ricciardi disse...

Creio que esse acto de amor não é hierarquizado, mas movido pela necessidade que se percepciona.
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No caso dos bebés é dois em um.
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Rb

Anónimo disse...

“Na teoria económica convencional, o consumidor é um individuo abstracto” – PA


Não sei aonde o PA nos quer levar com estes posts, mas conceptualmente a coisa continua a não bater certo…

De acordo com Kant é o povo que lida com abstracções (povo = não iniciado nas ciências do saber segundo o Idealismo Alemão ou = populaça na terminologia do PA).

Um economista, tal como qualquer filósofo - e ao contrário do povo – simplesmente descreve e exprime o concreto.
Esta afirmação apenas pode parece paradoxal se não tivermos em linha de conta o sentido preciso das palavras “abstracto” e “concreto”.
Entramos no “abstracto” quando negligenciamos, ou abstraímos, certos elementos do “concreto” do mundo real.
Por exemplo, podemos falar de uma árvore abstraindo tudo aquilo que não está nela (o terreno, o ar, o planeta Terra, o sistema solar, etc.). Falamos assim de uma abstracção que não existe na realidade (uma vez que a árvore apenas pode existir se existir terreno, ar, raios solares, etc.).
Ou seja: o “particular” em si mesmo e isolado é por definição abstracto.
É precisamente na procura do concreto que o filósofo e o economista se elevam ao patamar das “ideias gerais e universais” que o não iniciado (populaça segundo o PA) desdenha.

Kant, que nestas matérias é conceptualmente um pouco mais coerente, confirma-nos que o povo apenas sabe ver e analisar os assuntos de uma forma “abstracta”.

PS – Não tenho dúvidas que a experiência profissional e jornalística do PA confirma a tese de Kant.
Mas segundo o PA isto são ideias estrangeiras…não valem nada…

D. Costa

Pedro Sá disse...

1. Era o que mais faltava não ser eu e só eu a escolher o meu after-shave e seja lá mais o que for.

2. O PA correctamente destrói a ideia da pessoa 100% racional, a tal abstracção que só existe na cabeça dos economistas. Mas depois falha rotundamente: o que me parece ser correcto é assumir-se o cepticismo e afirmar-se que não é possível conhecermos efectivamente as motivações da decisão nem as suas consequências em termos de utilidade.

Ricciardi disse...

«... não é possível conhecermos efectivamente as motivações da decisão nem as suas consequências em termos de utilidade.» Pedro Sá
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É possível é.
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Os economistas estudam pouco as motivações de decisão das pessoas concretas mas os Gestores de Marketing tem a coisa bem desenvolvida. Não só procuram compreender o modo de decisão como adaptam os produtos para maximizar a satisfação da clientela.
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É natural que as empresas que produzem after-shave produzam odores agradáveis ao sexo feminino e o testem nelas. Nenhum homem sobrevive a uma mulher enjoada com o cheiro do marido.
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Rb