17 janeiro 2015

em Paris


“O cristão é um ser perfeitamente livre, que não está sujeito a ninguém.”
(Lutero, “Sobre a Liberdade Cristã”, 1520)

“Nós devemos a nossa existência ao sim de uma mulher.”
(Papa Emérito Bento XVI)

Eis duas frases grandiloquentes, daquelas que enchem a alma. Existe, porém, uma diferença entre elas – uma é falsa e outra é verdadeira.

Na frase de Lutero encontramos as raízes da liberdade moderna, uma liberdade que é absoluta e que não se submete a ninguém. Na frase de Bento XVI está implícita a ideia de liberdade católica, uma liberdade que é tutelada pelo bem.

Começo por Bento XVI. Nós somos recebidos neste mundo pelos braços de uma mulher. Ela tem a liberdade de dizer sim ou não à nossa existência. Se disser não, nós não viveremos nem três dias. É dizendo sim que ela cuida de nós, nos protege,  e nos permite existir.

Mas tal significa também que nós estamos sujeitos a ela e dependemos dela (e bem assim de todas as pessoas que cuidam de nós enquanto crianças e mais tarde como adultos), o que torna a frase de Lutero uma falsidade – a de que cada um de nós é um ser absolutamente livre e não está sujeito a ninguém.

Lutero faz proceder aquela frase de uma outra, quase formando um paradoxo. É a seguinte:

“O cristão é um ser perfeitamente servo de todos, e sujeito a todos”.

O paradoxo é apenas aparente e resolve-se facilmente. No exercício da minha liberdade, eu não tenho de me submeter ou prestar contas a nenhuma pessoa em particular, ou grupo de pessoas em particular, mas apenas à sociedade. Só a sociedade (exprimindo-se democraticamente) me pode submeter e limitar a minha liberdade, jamais uma pessoa ou grupo de pessoas em particular.

Está aqui o conceito de liberdade moderna, que assenta numa premissa falsa – a de que eu não estou sujeito a ninguém – e que, portanto, é uma falsa liberdade. Enquanto a sociedade não me proibir de ofender, amesquinhar, caricaturar, envilecer pessoas pertencentes a outras religiões, eu estou no pleno uso legítimo da minha liberdade.

Na concepção católica é diferente. Eu estou sujeito aos outros – à minha mãe, ao meu pai, aos amigos da família, aos meus professores, em geral, à comunidade onde nasci, às pessoas que disseram sim à minha existência, que me protegeram, e que promoveram a minha vida. Por outras palavras, eu estou sujeito a todas as pessoas que me fizeram bem e tenho para com elas o dever de reciprocidade. E como elas me fizeram bem, eu só posso retribuir com o bem. A minha liberdade é uma liberdade condicionada, uma liberdade que só pode ser utilizada para o bem. (A única excepção é a legítima defesa em que eu utilizo a minha liberdade para o mal em resposta a um mal que cometeram sobre mim.)

Pode parecer que este dever de reciprocidade dá razão à segunda afirmação de Lutero segundo a qual eu “sou um ser perfeitamente servo de todos, e sujeito a todos”. Mas não. A reciprocidade católica é um dever, e não uma servidão. Mais importante ainda, esse dever é hierarquizado segundo o bem que cada pessoa me fez (primeiro a minha mãe, depois o meu pai, depois, por ordem decrescente, cada uma das outras pessoas que me fizeram ou correntemente me fazem bem), ao passo que em Lutero esse dever se torna indiscriminado em relação “a todos”.

Lutero faz assentar toda a sua teologia, e a moralidade dela decorrente, neste conceito absoluto de liberdade individual, que não está limitado por ninguém, excepto pela sociedade. Na teologia católica, a liberdade não é um valor absoluto, mas um valor subordinado. O valor absoluto é a vida. Deus não concedeu liberdade ao homem como um fim em si mesmo. Concedeu-lhe a liberdade (e outros valores como a solidariedade, a caridade, a fraternidade, a igualdade, a personalidade) para promover a vida.

Ora, é estranho que o conceito de liberdade que reina em Paris promova, não a vida, mas a morte – morreram lá doze pessoas a semana passada por causa da liberdade.

Este não pode ser o verdadeiro conceito de liberdade.

6 comentários:

Ricciardi disse...

«A minha liberdade é uma liberdade condicionada, uma liberdade que só pode ser utilizada para o bem. (A única excepção é a legítima defesa em que eu utilizo a minha liberdade para o mal em resposta a um mal que cometeram sobre mim.)» PA
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Está bem, mas na verdade só podemos saber se a liberdade vai ser usada para o bem ou para o dito mal, depois de a vermos exercida na sua plenitude. Nunca antes. Por uma questão de ordem lógica.
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O que nos leva para outro patamar. O patamar da liberdade versus responsabilidade. Tão livres de dizer asneiras como responsáveis teremos de ser por elas com todas as consequências que a sociedade burilou.
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Bem diferente é a questão do aborto, por exemplo, onde podemos definir a priori como Mal ou Bem a liberdade de uma mãe dizer NÃO a uma acção manifestamente má.
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E depois há outra coisa. Uma coisa são eventuais ofensas à dignidade de pessoas concretas. Outra coisa são eventuais ofensas a instituições ou mesmo a ideias.
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Por exemplo, não vejo que possa ser censurável podermos descredibilizar a virgindade da Nossa Senhora (concordemos ou não com isso), recorrendo para o efeito a uma imagem Dela a dar à luz como qualquer mulher o faz. Mas já seria insultuoso colocar a Nossa Senhora como sendo uma 'mulher da vida'.
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No 1ª caso é uma critica a um dogma estabelecido pelos homens. No 2º caso seria um insulto gratuito.
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Um Papa com um preservativo no lugar de uma hóstia tambem me parece coisa bem apanhada porque ataca uma ideia e não uma pessoa concreta. Diferente seria colocar o Papa a sodomizar um rapaz usando um preservativo.
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Em suma, a mudar algumas leis no que à liberdade de expressão diz respeito, eu só mudaria algumas das consequencias por a exercer inadequadamente. Ofendeste a pessoa do Papa sofres as consequencias. Criticas ideias do Papa és absolvido. Ofendeste os muculmanos com um desenho que coloca Maomet como terrorista, levas com uma sanção. Fazes um desenho onde colocas muculmanos com 70 virgens no paraiso és absolvido.
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Rb

Ricciardi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricciardi disse...

«Ora, é estranho que o conceito de liberdade que reina em Paris conduza, não à vida, mas à morte – morreram lá doze pessoas a semana passada por causa da liberdade.» PA
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Não é estranho, caro PA. Pessoas são mortas independentemente das suas acções provirem do Bem ou do Mal. O problema está do lado do matador.
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A prova mais visível é a própria morte de Cristo. As acções Dele não provieram do Mal. Provieram do Bem. Ele foi morto por ter agido Bem. Quem agiu Mal foram os que O mataram.
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Não podemos dizer que Jesus estava mesmo a pedi-las, mesmo estanto porque se expunha e lutava contra ideias e instituições. Precisamente aquilo que querem limitar nos dias de hoje.
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Rb

Ricciardi disse...

Mas deixe-me fazer-lhe outra analogia.
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Quando Jesus discursou entre judeus dizendo para ignorar as leis da religião judaica que colocam o Sabado como um dia especial onde não se pode exercer actividade alguma, os judeus mais fanáticos insurgiram-se contra Ele acusando de blasfemar.
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Jesus estava certissimo naquilo que dizia. Os fundamentos eram os melhores. Ignorai essas leis, dizia Ele: primeiro fazei as pazes com quem vos zangasteis e depois, sim, e depois ide à Sinagoga.
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Jesus criticou a religião. Terá ofendido algumas alminhas mais púdicas ao ponto de acusarem de blasfémia que é a prevericação mais elevada. Se se chamasse Charlie teria feito um cartoon com um judeu a visitar um amigo ao sabado enquanto os outros batiam com a cabeça no muro das lamentações.
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Rb

dragão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro Sá disse...

"Bem". Algo que é 100% subjectivo.