20 outubro 2013

tirou as mulheres deste mundo

Para quem nunca se casou, não deixa de ser interessante que o Kant soubesse o que era o casamento, e que o definisse de uma maneira tão expedita como esta: "O casamento é a união para a vida de duas pessoas de sexos diferentes tendo em vista a posse mútua dos seus atributos sexuais". Por atraibutos sexuais entende-se, em primeiro lugar, os órgãos sexuais.

Segundo o Kant, então, o casamento tem um conteúdo exclusivamente sexual, um homem casa-se para possuir os órgãos sexuais da mulher e uma mulher casa-se para possuir os órgãos sexuais do marido.

Que posso eu dizer disto?

A primeira coisa que posso dizer é que este casamento não dura muito, e que vai acabar em divórcio litigioso, com a mulher a acusar o marido em tribunal de violações sexuais constantes durante a vida conjugal e  o homem a defender-se dizendo que não há violação nenhuma, que os órgãos sexuais dela são propriedade dele por efeitos do contrato de casamento. Existe uma hipótese de reconciliação e de manter o casamento, que é a de estabelecer que a  mulher pode exigir ao marido uma indemnização de cada vez que ele queira ter relações sexuais com ela, transformando o casamento num mero negócio de prostituição.

A segunda coisa que posso dizer, falando como homem, é que a definição não me parece muito imperfeita, e só teria em relação a ela um pequeno ponto de discordância, que vou mencionar, mas que deixarei à margem da discussão. De facto, um homem é atraído por uma mulher, em primeiro lugar, pelo seu corpo, embora não necessária e especificamente  pelos seus atributos sexuais. O verdadeiro amor de um homem  por uma mulher não põe o sexo como prioridade - esse virá quando vier.

E quanto à mulher, será que uma mulher se casa para possuir o corpo do seu marido, será que o amor de uma mulher por um homem é, em primeiro lugar, uma atracção pelo corpo? Não, não é -e muito menos pelos seus órgãos sexuais. O erro do Kant é aqui radical. Ele supõe que a motivação de uma mulher para o casamento é exactamente igual à motivação de um homem. Então o que é que leva uma mulher, em primeiro lugar, a apaixonar-se por um homem? O seu espírito - um espírito que a mulher deseja um dia possuir para o poder influenciar.

Este amor recíproco e concretizado no casamento levará o homem, a espaços, a possuir o corpo da mulher e a fecundá-lo. Daqui resultarão filhos. Em contrapartida, a mulher passará a possuir, de forma permanente, o espírito do marido. É através desta capacidade para influenciar o espírito do marido que ela agora lhe vai transmitir a mensagem: "Eu vou criar os nossos filhos, mas não o consigo fazer sozinha. Vais ter de me ajudar, de te aliares a mim nesta tarefa".

A racionalidade de que a mulher faz prova para entrar num casamento é muito diferente da racionalidade de um homem - a primeira dirige-se ao espírito, a segunda dirige-se ao corpo. O Kant erra ao supor que existe apenas uma forma de razão e que esta é masculina - e, já agora, também universal -, e que mulheres possuem  racionalidade em grau muito inferior ao dos homens.

Estão aqui todos os ingredientes do pensamento protestante ou moderno. Primeiro exclui - exclui a racionalidade feminina. Depois diz uma falsidade - a de que existe apenas uma forma de razão e que esta é masculina e também universal. Depois diz uma verdade, que as mulheres possuem esta razão (masculina) em grau inferior aos dos homens. É esta combinação que faz do pensamento protestante ou moderno uma mistura de verdade e mentiras, meias-verdades e meias-mentiras, num entrelaçado extraordinariamente difícil de desatar e que, tendo começado por excluir uma parte da realidade, se afirma depois com pretensões de universalidade.

Obviamente que, em consequência disto, o Kant tinha as mulheres em muito baixa conta. Resumindo numa só palavra a opinião que ele tinha das mulheres, a palavra adequada é fúteis.  As mulheres servem para dar opiniões sobre questões de beleza - se o penteado está bonito, ou se a  saia conjuga com a blusa -, mas quanto a assuntos sérios, como são os assuntos da razão, as mulheres não contam para nada.

A verdade é outra. Existem duas variedades de razão - a razão masculina e a razão feminina. E qual é a mais importante no casamento? É de longe a feminina, é ela que permite manter o casamento através da influência ou controle que a mulher exerce sobre o espírito do marido.

E a razão feminina é mais importante  em todos os assuntos que são sérios, como os assuntos relacionados com a vida e a morte, a fome e a doença. Assuntos sérios só se tratam com mulheres porque os homens são incapazes de os compreender e de lhes dar solução. Foi isso também que Deus fez quando se quis revelar na Terra. Dirigiu-se a uma mulher. O assunto era muito sério. Fazendo uso de uma expressão cara à Igreja, embora habitualmente aplicada aos pobres: "Deus tem uma opção preferencial pelas mulheres".

Qual é então o erro fundamental do Kant, na sua teoria do casamento e em todas as suas teorias?

Exclui as mulheres. O mundo dele é um mundo onde existem só homens, ou onde apenas os homens contam, e as mulheres têm um papel meramente decorativo. Um mundo só de homens, ou onde só os homens contam, não é este mundo, não é o mundo verdadeiro, é um mundo que não existe.

Pegue-se numa teoria do Kant, ponham-se lá as mulheres e a sua racionalidade feminina, e as conclusões do Kant são viradas do avesso. As teorias do Kant são falsas porque o Kant tirou as mulheres deste mundo.

Não surpreende em quem nunca teve mulher.


7 comentários:

João Antunes disse...

Fútil é dizer que o homem e a razão masculina apenas se baseiam em fecundar uma mulher que escolheu com base nos seus atributos físico. É que visto por aí o homem valoriza o que está à superfície, a figura, que neste caso é uma futilidade.
Sim, a figura de uma mulher é importante na atracção física mas nenhum homem baseia os seus standards apenas e só na figura de uma mulher (e se o fizer, então boa sorte), porque se não houver um mínimo de partilha de valores, crenças, opiniões, gostos... enfim, coisas em comum, então o casamento não irá durar. É a psicologia e a teoria do espelho.

Por isso acho redutora, generalista e até pouco humana a dita razão masculina. Da mesma maneira que também não iria supor que a mulher também não senta atracção física por um homem. No fundo não acho que exista razão masculina nem razão feminina, apenas razão humana.

Em conclusão julgo mesmo que o que o Kant queria dizer com a partilha de atributos sexuais se baseia antes na ideia de que marido e mulher partilham entre si uma vida sexual conjunta e exclusiva entre os dois (ou seja, sem infidelidade). E em nada a posse mútua dos atributos sexuais marginaliza a "razão feminina" pois a actividade sexual também faz parte do desejo e gosto de uma mulher. Quanto muito era uma negligência face à parte do casamento que diz respeito à criação dos filhos (e que se diga de passagem, também não faz parte da razão feminina, faz parte de ambos os progenitores, daí falar de apenas uma única razão humana)... mas um casamento não deixa de ser casamento se não houver filhos, pois não?

zazie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
zazie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
zazie disse...

O que ele quer dizer é que não se deve tratar o próximo como um meio mas como um fim.

E também está a ser irónico, nessa frase.

José Lopes da Silva disse...

Estou a ficar verdadeiramente curioso com a leitura de Kant. A Zazie antes, e agora o João Antunes, levam o debate para a interpretação daquilo que Kant possa ter querido dizer.
Eventualmente, será ele tão opaco e obscuro que se preste a este tipo de interpretações diversas? De qualquer forma, este debate sobre o-que-ele-disse-ou-não-disse não é bom cartão de visita.

zazie disse...

Não seja preguiçoso. Leia o Kant.

Isto é uma treta.

Pedro Sá disse...

Er...o Kant tinha do casamento a visão típica dos burgueses da sua época. Protestantes e católicos. Nada mais que isso.