20 setembro 2008

a mudar de vida


A operação de salvamento às instituições financeiras organizada pelo governo americano vai custar meio trilião de dólares, cerca de três vezes o PIB português e cerca de 4% do PIB americano. A operação consiste em passar para o Estado os maus activos detidos pelas instituições financeiras, isto é, aqueles que não possuem valor ou cujo valor foi substancialmente reduzido. Na prática, é o contribuinte americano que os vai pagar. O Presidente Bush notou adequadamente que a alternativa - deixar o sistema financeiro entrar em colapso - seria bem mais custosa para o cidadão comum.

Este episódio traz, porém, ao debate, a antiga questão dos méritos do mercado e a ideia hayekiana de ordem espontânea. Na opinião de Hayek, se cada homem for deixado livre para prosseguir os seus próprios interesses, dentro das regras da moral e do direito, o sistema social daí resulante é o melhor de todos os sistemas possíveis, no sentido em que ele maximiza as probabilidades de cada homem atingir os fins que ele próprio se propõe na vida. O sistema de liberdade individual, em Hayek, gera uma ordem espontânea contendo os seus próprios mecanismos de auto-correcção.

A crise financeira agora à vista veio questionar as capacidades de auto-regulação da ordem espontânea do mercado. Como aqui já debati com o Rui, não existe nada no pensamento de Hayek que permita concluir com razoável grau de certeza que o sistema de liberdade individual conduz a uma ordem espontânea, e não a uma desordem espontânea, como agora parece ser o caso. Trata-se de um acto de fé. E este acto de fé visa eliminar a necessidade de qualquer intervenção exterior ao sistema, designadamente pelo poder coercivo do Estado. Hayek acaba, assim, a defender uma ordem social que maximiza a esfera de acção privada e minimiza a esfera de intervenção do Estado na sociedade.
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A ideia de ordem espontânea, e a fé que Hayek punha nela para rejeitar a acção do Estado na economia, sempre me deixou desconfortável. Ela significava que perante uma crise do sistema devíamos ficar todos a olhar uns para os outros e não fazer nada, designadamente não recorrendo a uma das instituições, talvez a principal - o Estado - que poderia ajudar a resolvê-la. A minha descrença acentuava-se sempre que pensava numa analogia.
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O organismo humano também é uma ordem espontânea, talvez a mais sofisticada de todas, contendo os seus próprios mecanismo de defesa e de auto-correcção. Por vezes estes mecanismos falham ou são impotentes e o organismo humano entre em situação de doença. Aquilo que Hayek, por analogia, estava a recomendar é que, numa situação dessas, nós ficássemos à espera que os mecanismos de defesa e auto-regulação resolvessem o problem, em lugar de irmos ao médico. E quanto a cirurgias, isto é, intervenções directas e intrusivas com a ordem espontânea, nem pensar - uma recomendação que, a ser seguida, obrigaria o meu colega Joaquim a mudar de vida.
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A obra de Hayek, no que se refere ao papel relativo que ele atribui ao mercado e ao Estado na economia de uma sociedade, é uma obra radical. É preciso relembrar que o seu radicalismo assenta num acto de fé, e não em argumento racional - a fé que ele tinha nas capacidades de auto-regulação do mercado. Eu hoje não subscrevo uma boa parte dos argumentos de Hayek e dos economistas da sua escola - o chamado liberalismo moderno. Na economia, como nas outras esferas da vida, não é difícil encontrar soluções radicais, e menos difícil ainda defendê-las. Aquilo que é difícil é encontrar soluções de equilíbrio.

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