28 novembro 2022

Um juiz do Supremo (126)

 (Continuação daqui)



126. Medo

A cultura católica dos portugueses encontra, naturalmente, o seu paradigma na própria Igreja Católica. Trata-se de uma cultura autoritária e pessoalizada na figura do Papa. Nela, os três poderes - executivo, legislativo e judicial - estão reunidos nas mãos do Papa e o poder judicial (Congregação para a Doutrina da Fé, antes chamada Inquisição) é um poder instrumental do poder político (executivo e o legislativo). 

Na cultura católica, o poder mais importante é o poder executivo, e o poder judicial serve para intimidar as pessoas que não obedeçam às ordens do executivo. Medo é, portanto, o sentimento que o poder judicial inspira nas pessoas influenciadas durante séculos pela cultura católica, como é notoriamente o caso dos portugueses.

A cultura democrática, que tem as suas origens no protestantismo cristão, separa os três poderes para que nenhum deles possa ficar ao serviço do outro. Em lugar de ser uma cultura pessoalizada é uma cultura de regras, em que um dos poderes faz as regras, o outro toma decisões dentro dessas regras e o terceiro zela pelo cumprimento das regras. Nesta cultura, o mais importante dos três poderes do Estado é o judicial porque quando este poder for corrompido e falhar é a própria democracia que vai abaixo.

Numa cultura democrática, o poder judicial está ao serviço do povo - e não do poder político - e, em lugar de inspirar medo nas pessoas, inspira-lhes confiança de que todas as regras do jogo democrático (incluindo as regras contratuais dos negócios privados) serão cumpridas.

Portugal tem séculos de cultura católica e nem meio século de democracia. Meio século não é suficiente para apagar da cultura dos portugueses aquilo que a justiça sempre lhes inspirou durante toda a sua história - medo. E daí que a justiça seja o poder menos escrutinado em democracia. Não admira, por isso, que seja também o mais corrupto. O caso do juiz Marcolino é um caso exemplar da falta de escrutínio público do poder judicial e de corrupção da justiça.

Olhando para o debate público sobre a corrupção em Portugal, aquele que corre nos jornais, nas televisões e nas redes sociais, é óbvio que os portugueses andam à procura da corrupção sobretudo nos poderes executivo e legislativo, entre ministros, secretários de Estado, presidentes de câmara e deputados. Às vezes, quase parafraseando James Carville (cf. aqui), dá vontade de lhes gritar bem alto: "É a justiça, estúpidos!".

Um poder judicial íntegro é a garantia de que os outros poderes do Estado serão também íntegros, sob pena de os prevaricadores irem parar à prisão. Pelo contrário, um poder judicial corrupto é a porta aberta a que a corrupção floresça à vontade entre os outros dois poderes do Estado e na sociedade em geral.

Como explicar então que os portugueses submetam a grande escrutínio público os poderes executivo e legislativo, mas não o façam com a mesma intensidade, nem de longe, em relação ao poder judicial? A resposta já foi dada - medo. Medo resultante da sua cultura católica tradicional que sempre os fez olhar para a justiça com terror.  É o medo da população se meter com a justiça e lhe pedir contas que permitiu ao juiz Marcolino chegar a juiz do Supremo.


(Continua acolá)

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