20 novembro 2022

Um juiz do Supremo (107)

(Continuação daqui)




107. Companhia


Os juízes enriquecerem utilizando o sistema de justiça em proveito próprio, como faz o juiz Marcolino, não é propriamente uma inovação dos tempos modernos como eu próprio sugeri no post com o título "uma forma original de enriquecer" (cf. aqui). É uma tradição que, em Portugal, remonta à Inquisição, e que tratei noutra altura (cf. aqui).

O juiz Marcolino vem de uma cultura de pequena comunidade, uma comunidade fechada, pobre, cara-a-cara, de que falava Karl Popper no seu clássico "A sociedade aberta e os seus inimigos". É a comunidade onde todos se conhecem, em que as relações sociais são governadas por sentimentos de amizade e ódio, às vezes ancestrais, onde, na impossibilidade de existir um mercado, a economia é administrada, e as autoridades locais (v.g, juiz, padre, professor, militar, médico), por virtude do poder de que dispõem, se sentem frequentemente no direito de se apropriarem de uma parte da riqueza produzida. 

É uma espécie de imposto que o povo tem de pagar ao padre para que ele abençoe os seus, ao juiz para que ele não os meta na cadeia, ao professor para que ele ensine bem os seus filhos, ao médico para que ele cuide dos seus parentes, ao polícia para que ele não os multe. Nesta comunidade fechada, onde as profissões se passam de pais a filhos, a economia é de troca e o dinheiro é escasso, quem não nasceu rico, só tem uma maneira de se tornar rico - aceder a uma posição de poder. O poder é a condição sine qua non da riqueza.

Bragança - e Trás-os-Montes em geral, como o próprio nome sugere -, devido ao obstáculo do Marão, são, tradicionalmente, as partes mais isoladas de Portugal continental. Tal não obstou a que de lá tenham saído pessoas distintas, sobretudo no tempo do Estado Novo. O professor Adriano Moreira, recentemente falecido, é um caso. Outro é o professor António Augusto Gonçalves Rodrigues, que foi vice-reitor de Marcelo Caetano na Universidade de Lisboa e foi o fundador da primeira instituição privada de ensino superior em Portugal - o Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA). 

O mesmo não se pode dizer de algumas das figuras públicas que Bragança produziu nos últimos anos para a democracia. Tal é o caso, para além do juiz Francisco Marcolino, de homens como Armando Vara, de quem o juiz Marcolino é amigo de longa data, e Duarte Lima de quem, se não é amigo - por ele ser de partido diferente -, é certamente conhecido porque, em Bragança, toda a gente se conhece. (Embora originário do distrito de Vila Real, Duarte Lima foi durante muitos anos deputado do PSD por Bragança).

Aquilo que une estes três homens é a sua cultura de pequena comunidade, em que o poder é um direito à riqueza. O povo tem de lhes pagar um tributo sob pena de, fazendo uso desse poder, eles tornarem a vida difícil ao povo, senão mesmo impossível. Escusado será enfatizar que existe uma imensa crueldade na maneira como estes homens olham para o poder e o utilizam.

Nas muitas quezílias e nos múltiplos processos judiciais em que o juiz Marcolino se envolveu em Bragança e noutros lugares, um dos aspectos  que ressalta é a queixa frequente por parte das suas vítimas - incluindo o irmão - de que ele puxava constantemente dos seus galões de juiz para ameaçar os seus conterrâneos (cf. aqui).

E quando passou a usar pistola, que é um privilégio da sua condição de juiz, anos depois de ter condenado um inocente a vinte anos de prisão efectiva - o inocente, ele próprio, uma autoridade em Bragança, um cabo da GNR -, o sentimento que o juiz Marcolino passou a gerar em Bragança deve ter passado de medo a terror. 

É claro que, quando homens assim, saem deste meio fechado, com esta mentalidade de que "todos lhes devem e ninguém lhes paga", para uma sociedade grande e aberta, como é uma grande cidade cosmopolita, onde ninguém se conhece, onde a riqueza é adjudicada pelo mercado e pelo mérito, e não pelo poder, o choque cultural é profundo. 

A ideia de que o poder é um passaporte para a riqueza não vence neste meio. E o choque resulta frequentemente em desastre pessoal para aqueles que continuam a pensar que, pelo facto de terem poder, ou já terem tido poder, têm um direito inalienável à riqueza [José Sócrates, oriundo da Covilhã, é outro caso que vem imediatamente ao espírito]. 

Duarte Lima e Armando Vara acabaram na prisão, e o seu conterrâneo Francisco Marcolino só não lhes fez ainda companhia porque é juiz, porque os juízes se protegem uns aos outros, e porque o povo tem uma relutância cultural a olhar para um juiz como sendo um criminoso.

E, não o olhando como um criminoso, tem-no agora, por castigo, a juiz do Supremo.


(Continua acolá)

Sem comentários: