19 novembro 2022

Um juiz do Supremo (100)

 (Continuação daqui)



100. O juiz-inquisidor 

O juiz Francisco Marcolino é autor de um livro que tem o título "Os meios de obtenção de prova em processo penal", que é a sua tese de mestrado. No prefácio, o professor Mário Ferreira Monte da Escola de Direito da Universidade do Minho, escreve assim (ênfases meus):

"Finalmente, o Autor enfrenta o tema crucial. Para além da distinção que se impõe entre meios de prova e meios de obtenção de prova, o Autor entra em seguida num trabalho de análise sistemática dos principais meios de obtenção de prova: os exames, as revistas, as buscas, as apreensões e as escutas telefónicas".

O juiz Marcolino é, portanto especialista em Direito do Processo Penal e, dentro deste, das técnicas legais de devassa da vida privada e até íntima dos cidadãos, e isso não teria nada de mal se fosse para aplicar a criminosos e só a criminosos. Mas, não. Na tradição portuguesa o Direito do Processo Penal tem outras aplicações. Aplica-se também a inocentes, na realidade foi desenvolvido para se aplicar preferencialmente a inocentes porque, para se aplicar a criminosos, bastava o Direito Penal.

Existem duas tradições de que os portugueses não se podem orgulhar - o tráfico de escravos e a Inquisição. A Inquisição ganhou importância em Espanha e Portugal a partir do século XVI com a reacção católica à reforma protestante que teve origem nos países do norte da Europa.

Uma parte significativa da população europeia do norte virou costas á Igreja Católica, largamente em resultado da corrupção reinante na instituição, e, entre outras coisas, rejeitou a interpretação oficial das Escrituras que era dada pela Igreja, e reclamou a liberdade da sua interpretação por qualquer pessoa.

Nascia aqui o moderno direito à liberdade de expressão e pensamento - inicialmente com um cariz religioso e só mais tarde também político -, que iria conduzir à moderna democracia liberal. A Igreja reagiu à liberdade protestante com a Inquisição visando defender a ortodoxia católica.   

Ao tempo, o mundo estava dividido entre Espanha e Portugal pelo Tratado de Tordesilhas e era o Papa que adjudicava o direito marítimo.  Foram, por isso, por interesse, a Espanha e Portugal a colocar-se do lado da Igreja contra a heresia protestante. 

Nos séculos seguintes, os dois países ibéricos iriam tornar-se, no mundo cristão, os principais adversários das ideias modernas de liberdade e de democracia, e a Inquisição seria a arma principal dessa guerra sem quartel [que o catolicismo viria a perder com os países católicos, como Portugal, a sucumbirem também perante os ideais protestantes de liberdade e de democracia].

A Inquisição visava criminalizar os "heréticos", que não subscreviam em algum aspecto a ortodoxia católica ou política vigente (a Inquisição andou sempre de braço dado com monarquias absolutas). Estas eram pessoas que, à luz da liberdade de expressão - que seria o direito fundacional da moderna democracia - não tinham cometido crime nenhum, mas apenas expressado uma opinião diferente de cariz religioso ou, mais tarde, político.

Como estas pessoas não tinham cometido crime nenhum, mas era preciso persegui-las, castigá-las e até matá-las, para que não pusessem em causa os poderes estabelecidos, ao lado do Direito Penal desenvolveu-se um outro ramo do Direito, que foi o Direito do Processo Penal, que viria a tornar-se o direito inquisitorial por excelência.

Não havendo matéria para condenar os "heréticos" em julgamento, a pena estava no processo que incluía a devassa da vida privada e íntima, a prisão preventiva, a humilhação pública, o confisco de bens, as ameaças à família, prolongando indefinidamente o processo penal até que a pessoa morresse. Muitos dos acusados da Inquisição morriam sem nunca terem sido julgados, arruinados na sua saúde, no seu património e na sua reputação. Encontra-se também aqui a origem das chamadas "demoras na justiça" que nos últimos 30 anos levaram a centena e meia de condenações de Portugal no TEDH.

Para ilustrar o carácter distintivo do Direito Processual Penal como o direito inquisitorial por excelência, basta dizer que este ramo do Direito não existe, como ramo autónomo do Direito, nos países de longa tradição democrática, como é o caso da Inglaterra, e seus descendentes (v.g., EUA, Canadá, Austrália). Tal como não existem nem os tribunais nem os juízes onde e por quem este ramo do Direito é mais usado, que são os Tribunais de Instrução Criminal e os juízes de instrução criminal.

É interessante acrescentar que o acto mais simbólico da Inquisição - o auto da fé -, representando a devassa aos confins mais íntimos do ser humano, como são os da sua consciência, não encontra tradução na língua inglesa. Para os povos anglo-saxónicos, esta monstruosidade não lhes entra sequer na cabeça e por isso não possuem sequer palavras para a descrever.

Porém, é nisto que o juiz Francisco Marcolino é especialista, no mais anti-democrático e inquisitorial dos ramos do Direito, o ramo do Direito que tem por objectivo criminalizar pessoas inocentes - o Direito Processual Penal e, dentro dele, a devassa à vida das pessoas.

Nas suas mãos, quem pensar de forma diferente da ortodoxia prevalecente corre o risco de ter um processo e ir parar à prisão ou ficar com a vida arruinada de outra forma qualquer. E, para ele, a ortodoxia prevalecente é a do Partido Socialista, pelo qual já foi candidato à Câmara Municipal na sua cidade natal, Bragança (cf. aqui).

(Continua acolá

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