01 dezembro 2020

Cinco anos (12)

 (Continuação daqui)


12. Mulheres bonitas

Quando, há cerca de dois anos, durante um jantar, eu contava a um amigo, que estava sentado à minha direita, a história do meu case-study (cf. aqui), ele olhava para mim enquanto eu falava. No final, comentou, para meu espanto:

-Você é a pessoa ideal para travar essa batalha...

Foi a minha vez de ficar a olhar para ele. Mas não por muito tempo porque logo a seguir ele juntou duas razões. A primeira era a de que eu tinha o nível intelectual para me bater com aqueles adversários e, se necessário, para bater naqueles adversários. A segunda era bastante mais mesquinha, era a de que eu tinha o dinheiro para pagar as multas e as indemnizações a que eventualmente viesse a ser condenado, ainda que injustamente. Não sei como é que ele sabia isso. Talvez imaginasse.

A primeira desta razões era a mais lisonjeira, mas foi a segunda que fez tocar uma campainha no meu espírito de economista. Todo o bem tem um preço e o preço é tanto mais elevado quanto mais precioso for o bem. Acontece assim com gelados, automóveis e aviões. Acontece assim também com a liberdade.

Se a decisão contida no acórdão 646/20 do Tribunal Constitucional de 16 do mês passado se tornar efectiva, eu vou ter de cumprir a sentença a que fui condenado no Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui). Entre multas a pagar ao Estado, indemnizações ao Paulo Rangel e à Cuatrecasas, juros e custas judiciais, o total ascende a cerca de 30 mil euros (fora honorários de advogados).

(Só mais tarde, decidindo o TEDH a meu favor - o que é praticamente certo -, é que eu serei ressarcido. E quem me vai ressarcir não é o Paulo Rangel nem a Cuatrecasas, mas o Estado português. O Rangel e a Cuatrecasas terão, então, enriquecido ilegitimamente, não à minha custa, mas à custa dos contribuintes portugueses).

O título desta série de posts alude à idade do processo judicial que, em Novembro de 2015, o político do PSD, Paulo Rangel, e a sociedade de advogados Cuatrecasas, de que ele era director no Porto, colocaram contra mim. O primeiro acusava-me do crime de difamação agravada e a segunda de ofensa a pessoa colectiva, pedindo o primeiro 50 mil euros de indemnização, e a segunda outro tanto, dois casos típicos do fenómeno Chapa 50 a que já fiz referência neste blogue (cf. aqui).

A razão era um comentário que eu fizera em Maio desse ano no Porto Canal, na qualidade de presidente da Associação Joãozinho (cf. aqui).

No final de 2013 eu fui aproximado pelos administradores do Hospital de S. João para continuar uma iniciativa que eles próprios haviam desencadeado em 2009, que era a de construir por via mecenática a ala pediátrica do hospital.

Para esse efeito, a Associação Joãozinho foi constituída em Janeiro de 2014 no HSJ tendo eu sido eleito presidente. Em Março de 2015 o estaleiro da obra estava a ser instalado e a obra pronta a ser começada.

Foi então que a administração do HSJ, afecta ao PSD, em colaboração com a sociedade de advogados Cuatrecasas, que lhe servia de assessora jurídica, e de que era director o Paulo Rangel, eurodeputado pelo PSD, começaram a pôr sucessivos obstáculos para impedir o começo da obra. Foi no seguimento de uma desses obstáculos que eu fui à televisão fazer o comentário que desencadeou o processo judicial.

Os obstáculos acabaram por ser vencidos e a obra começaria a 2 de Novembro desse ano para vir a ser parada mês e meio depois pela aliança entre os interesses económicos do PSD (a que fiz referência noutros posts desta série, cf. aqui e aqui) e os interesses ideológicos do governo da geringonça que, entretanto, entrara em funções precisamente no final de Novembro desse ano de 2015.

O julgamento de primeira instância teve lugar em 2018, para o qual o PSD mobilizou uma armada de testemunhas (cf. aqui). Eu decidi entregar os trunfos ao adversário e não nomear testemunhas e só após uma grande insistência da minha advogada, aceitei nomear uma. A razão é que, no meu entendimento de então, como no de agora, eu não tinha cometido crime nenhum.

Em Junho desse ano, no Tribunal de Matosinhos, fui absolvido do crime de difamação agravada ao Paulo Rangel, mas condenado pelo crime de ofensa a pessoa colectiva à Cuatrecasas em quatro mil euros de multa e cinco mil euros de indemnização à sociedade de advogados.

Recorri desta condenação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP) e o Paulo Rangel recorreu da minha absolvição para o mesmo tribunal. Num acórdão de Março de 2019, ostensivamente contrário á jurisprudência do TEDH que é lei em Portugal, e de que foi relator o juiz Pedro Vaz Patto, foi confirmada a minha condenação por ofensa a pessoa colectiva à Cuatrecasas e, invertendo a decisão de primeira instância, passei a ser condenado também por difamação agravada ao Paulo Rangel. 

Ao abrigo do artigo 32º da Constituição (direito ao recurso) recorri para o Supremo desta última condenação, para ver se tinha a "dupla conforme". O Supremo respondeu-me que não podia apreciar o meu recurso porque um acórdão do Tribunal Constitucional (nº 595/18) só autorizava recursos para o Supremo quando a pena fosse de prisão, o que não era o meu caso, em que a pena era somente de multa.

Recorri então para o TC em Novembro de 2019 reclamando pelo exercício do meu direito constitucional ao recurso previsto no artº 32º da Constituição. Numa decisão sumária do mês seguinte, o TC negou-me esse direito. Reclamei, então, para a "conferência" em Janeiro de 2020. A decisão chegou no passado dia 16, no acórdão 646/20, que confirma a decisão sumária de me negar o direito a recorrer para o Supremo..

Como em Janeiro deste ano, no caso Neto de Moura vs. militares da GNR, o TC tinha decidido de maneira diametralmente oposta sobre a mesma questão, reclamei a semana passada para o Plenário do Tribunal Constitucional. Vou ficar a aguardar meses. A tremer.

Entretanto, em Setembro do ano passado, seis meses após a decisão do TRP, que é o prazo previsto na CEDH, apresentei no TEDH queixa contra o Estado português por violação do artº 10º da CEDH (direito à liberdade de expressão) e do artº 6º (falta de imparcialidade do Tribunal da Relação do Porto porque o juiz Vaz Patto é amigo do Paulo Rangel, cf. aqui). A queixa foi aceite.

O TEDH só se pronuncia depois de estarem esgotados todos os recursos nos tribunais nacionais. Se o Plenário do TC vier a confirmar a decisão do acórdão 646/20, eu vou ter de cumprir a pena que me foi fixada pelo TRP e, nessa altura,  juntarei mais as seguintes queixas ao TEDH: nova violação da imparcialidade do tribunal - agora do TC -, por a juíza relatora do acórdão ser uma nomeada do PSD (artº 6º da CEDH); violação do direito de acesso a um tribunal (idem) por o TC se ter comportado como uma lotaria, violando o princípio da segurança jurídica, ao decidir de forma radicalmente oposta em relação a mim e aos militares da GNR; violação do direito a um duplo grau de jurisdição (artº 2º do Protocolo nº 7 anexo à CEDH); e, ainda, discriminação (artº 14º da CEDH).

Por todo este processo já passaram vários juízes nas instâncias nacionais, mas apenas um se comportou como um verdadeiro juiz. É uma mulher. Chama-se Paula Guerreiro e é juiz no Tribunal da Relação do Porto (cf. aqui).

Num acórdão envolvendo também um caso de difamação que ela julgou com o seu colega Joaquim Gomes, absolvendo o réu à luz da jurisprudência do TEDH, a certa altura os dois juízes da Relação do Porto citam Jorge de Sena: "Quem te amar, ó liberdade, tem de amar com paciência".

"E também com algum dinheiro", acrescentaria euporque as mulheres bonitas são normalmente caras.

(Continua)

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