15 novembro 2020

Um juiz à solta (XIV)

 (Continuação daqui)



XIV. A corrupção na justiça

Não tem sido fácil a adopção da democracia pelos países de cultura católica. A razão é que a democracia impõe uma cultura de igualdade onde antes existia uma cultura de diferença.  Na justiça, a democracia exige que casos iguais sejam tratados de forma igual e, portanto, que seja seguida a jurisprudência, ao passo que a cultura católica permite, e até estimula, que casos iguais sejam tratados de maneira diferente

A diferença no tratamento de casos iguais pode depender de vários factores, por exemplo, de o réu ser ou não amigo do juiz; de o juiz ter ou não recebido cunhas para condenar ou absolver o réu; de o réu ser uma mulher bonita ou um homem feio aos olhos do juiz; de o réu partilhar ou não a mesma ideologia política do juiz; ou simplesmente porque há dias em que o juiz está bem disposto e absolve o réu e outros em que está mal disposto e o condena.

Por isso, um sinal importante da cultura democrática de um povo, ou da ausência dela, é dado pela percentagem de juízes que consideram que nas suas decisões devem seguir a jurisprudência dos casos que apreciam, em contraposição com aqueles que defendem a discricionariedade das suas decisões e consideram que não devem estar vinculados a observar a jurisprudência dos casos que julgam.

Um estudo recente no Brasil, envolvendo 4 mil juízes, produziu resultados que não são surpreendentes. Não são surpreendentes num país católico como é o Brasil - na realidade, o país mais católico do mundo -, herdeiro do sistema de justiça português, e com várias tentativas falhadas na sua história para viver em democracia, como aliás, o seu antigo colonizador.

O estudo revela que 51,8% dos juízes de primeira instância consideram que, nas suas decisões, não devem seguir a jurisprudência emitida pelos tribunais superiores. Entre os juízes de segunda instância, a percentagem mantém-se aproximadamente a mesma, mesmo se estes tribunais também fazem jurisprudência. Mas o resultado mais surpreendente de todos aparece entre os juízes do Supremo (cf. aqui).

O Supremo Tribunal é o tribunal que mais jurisprudência produz no Brasil. É assim também em Portugal, cujos juízes são chamados juízes-conselheiros (no Brasil, são chamados ministros). Pois, mesmo entre os juízes do Supremo Tribunal, mais de metade (55%) consideram que, nas suas decisões, não devem estar vinculados à jurisprudência produzida pelo próprio Supremo Tribunal do qual são juízes.

Na cultura católica, o paradigma do poder é o do Papa, que possui um poder supremo e absoluto, que pode sempre discricionariamente exercer.  É essa também a ambição da maioria dos juízes brasileiros em resultado da sua cultura católica - possuir um poder supremo e discricionário sobre as pessoas que julgam.

Em democracia, os juízes são quem zela pelo cumprimento das leis democráticas, de maneira que nenhum ditador, dotado de poder discricionário, possa emergir na sociedade e submeter os cidadãos. Porém, a maioria dos juízes brasileiros aquilo que ambiciona é precisamente isso, serem pequenos ditadores, que não se submetem às regras da jurisprudência, e que impõe discricionariamente o seu julgamento a quem lhes aparece pela frente. 

A democracia é um regime de regras. Porém, a maioria dos juízes brasileiros considera que as regras democráticas são boas mas é para impor aos outros, não para serem impostas a eles. Eles consideram-se acima de quaisquer regras democráticas, como são as regras da jurisprudência. 

As consequências desta atitude cultural por parte dos juízes para a credibilidade e a qualidade da justiça são catastróficas, como se pode imaginar. Casos semelhantes são tratados de forma diferente e, às vezes, de forma radicalmente oposta segundo os humores do juiz ou, pior ainda, segundo os seus interesses (políticos, monetários ou outros). 

Na opinião do constitucionalista Lenio Streck, "a pesquisa desnuda um problema grave, que já era do conhecimento da comunidade jurídica, isto é, não há simpatia de parcela considerável da magistratura, nos diversos graus, por um sistema jurídico que funcione por, e com, coerência e integridade" (cf. aqui, ênfase meu)

De facto, a corrupção na justiça só pode ser gigantesca porque todas as sentenças são aceitáveis, as que são justas porque respeitam a jurisprudência, e as que são injustas porque não a respeitam, levando a perguntar que motivações terá tido o juiz para as produzir. Num país assim, prevalece a aleatoriedade nas sentenças, ninguém sabe o que é justiça e, por isso,  ninguém tem confiança na justiça.

É o que acontece no Brasil 

E em Portugal?

Em Portugal, que é quem levou esta cultura para o Brasil, não existe estudo semelhante àquele que acabei de citar, mas a situação não deve ser muito diferente. Já quanto à confiança na justiça, essa é ainda mais baixa do que no Brasil (cf. aqui).

(Continua)

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