15 novembro 2020

Um juiz à solta (XIII)

 (Continuação daqui)



XIII. Um pequeno ditador

Diz assim o artigo 882 do Catecismo da Igreja Católica:

"882. O Papa, bispo de Roma e sucessor de S. Pedro, «é princípio perpétuo  visível, e fundamento da unidade que liga, entre si, tanto os bispos como a  multidão de fiéis» (408). Com efeito, em virtude do seu cargo de vigário e pastor de toda a Igreja, o pontífice romano tem sobre a mesma Igreja um poder pleno, supremo e universal, que pode sempre livremente exercer (409)" (cf. aqui, ênfase meu)

O poder do Papa - um poder que é pleno, supremo e universal e que ele pode sempre livremente exercer - é o paradigma do poder absoluto. É o poder que possuíam os reis nos regimes de monarquia absoluta que existiram na Europa em séculos passados, incluindo Portugal. É também o poder que qualquer ditador moderno ambiciona possuir.

O Papa reúne nas suas mãos os três poderes que a democracia manda separar - o executivo, o legislativo e o judicial. Nas mãos de um vulgar ditador, o mais importante destes poderes é o poder executivo, que é o poder para tomar decisões discricionárias, estando o poder legislativo e o poder judicial ao serviço do poder executivo.

O poder legislativo faz as leis que dão cobertura às arbitrariedades do ditador e o poder judicial carimba com o selo da legalidade as arbitrariedades do ditador e, sob o manto de estar a fazer justiça, também persegue os adversários políticos do ditador.

A democracia distingue-se da ditadura porque substitui a pessoa do ditador por um conjunto de regras ou leis. Em lugar de todos estarem sujeitos à pessoa do ditador, todos passam a estar sujeitos a um conjunto de regras que limitam a acção de cada um e previnem a discricionariedade. Não apenas dos cidadãos, mas também daqueles - sobretudo daqueles - que agora exercem os três poderes do Estado democrático em que se decompõe o poder absoluto do ditador - governantes (executivo), deputados (legislativo) e juízes (judicial).

Se numa ditadura o poder mais importante é o executivo, numa democracia o poder mais importante é o judicial porque são os juízes que, fazendo cumprir as regras democráticas, podem pôr fim às veleidades de qualquer candidato a ditador, venham elas de um deputado, de um governante ou de um mero cidadão.

Mas se todos estão sujeitos a regras, que os juízes a todos fazem cumprir, é caso para perguntar: E os juízes, eles próprios, não estão sujeitos a regras? Se é missão do juiz impedir que qualquer cidadão, governante ou deputado ande por aí à solta transgredindo as regras democráticas, será que ele próprio é excepção andando por aí à solta sem submissão a nenhuma espécie de regras?

No regime ultra-pessoalizado do Vaticano e da Igreja Católica, aquilo que impede o Papa de se tornar um ditador é, não apenas a Bíblia, mas também a Tradição. A Tradição é a doutrina que a Igreja evoluiu acerca do cristianismo durante os seus dois mil anos de existência e está exposta no Catecismo. Bíblia e Catecismo (Tradição) são as duas fontes da revelação para a Igreja Católica.

Do alto do seu poder absoluto, o Papa pode, teoricamente, violar a Tradição, isto é decidir ao contrário daquilo que os seus antecessores consagraram como doutrina  - por exemplo, decidir que, afinal, Maria não era virgem. Mas, ao fazê-lo, estará a corromper a doutrina e a destruir a própria Igreja. A Tradição é a jurisprudência que os Papas, em sucessão apostólica, foram estabelecendo ao longo dos séculos acerca do que é cristianismo e do que não é cristianismo.

Aquilo que distingue o Papa de um vulgar ditador não é o poder absoluto porque, esse, ambos o têm. O que distingue o Papa de um mero ditador é o facto de o Papa se sentir limitado nas suas acções pela Tradição, isto é, por uma jurisprudência de séculos que lhe impede a acção discricionária. É este impedimento que o vulgar ditador não tem.

Numa democracia são os juízes que, fazendo cumprir a Constituição e as leis democráticas, impedem a emergência dos ditadores e das decisões discricionárias. Mas vale a pena reiterar a pergunta: O que é que impede um juiz, ele próprio, de se tornar um pequeno ditador, de ser ele próprio o autor de decisões discricionárias e arbitrárias?

A democracia acabou em Portugal com o regime de Salazar. O que é que impede que a figura de Salazar reapareça na democracia, sob a forma de mil e quinhentos salazarinhos, um em cada juiz?  

É a  jurisprudência, as regras de interpretação das leis evoluídas pelos tribunais superiores para cada classe de casos judiciais e às quais os juízes estão vinculados na sua missão de fazer justiça.

Um juiz que não respeita a jurisprudência está a fazer uso de um poder discricionário, está a fugir à obediência às regras a que todos estão sujeitos em democracia, está a fazer batota com a justiça e a democracia.

Dois casos iguais, passam a ter sentenças diferentes e frequentemente opostas. A certeza, que é um atributo essencial da justiça, desaparece, e qualquer cidadão fica exposto ao poder arbitrário de um juiz. Um juiz sem regras, um juiz à solta é um pequeno ditador que ameaça a democracia e que a democracia não consente. 

(Continua)

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