20 setembro 2019

perante a autoridade

Debatendo embora a liberdade em outros domínios - o principal é o da economia - o liberalismo e o socialismo reclamam-se ambos como ideologias da liberdade. Mesmo nas suas versões mais radicais, como o comunismo, o socialismo reclama-se da liberdade. E aos portugueses mais velhos provavelmente ainda soa ao ouvido aquele refrão de Álvaro Cunhal que terminava em "(…) nacionalizações e amplas liberdades".

A razão é que o liberalismo e o socialismo emanam ambos de teologias protestantes - o liberalismo do calvinismo, o socialismo do luteranismo -, a primeira que, tendo origem na Suíça, se expandiu sobretudo pelo mundo anglo-saxónico, e a segunda que, tendo origem na Alemanha, se expandiu principalmente pelo mundo germânico.

Ambos os movimentos protestantes - e todos aqueles que emergiram depois - têm um elemento original e comum, que é a liberdade perante a autoridade. No início do protestantismo, essa liberdade foi a liberdade perante a autoridade do Papa, mas que depois se propagou a todas as formas de autoridade.

As teologias protestantes são teologias anti-autoritárias, e as ideologias que delas emergiram também. A liberdade perante a autoridade é comum a todas e significa a liberdade para não seguir os ditames da autoridade, e até para lhe fazer frente, quando o exercício da autoridade é injusto ou arbitrário (o motivo próximo da reforma protestante foi a célebre questão das indulgências em que a autoridade católica vendia a remissão dos pecados a troco de dinheiro).

Nasceu assim a ideia de cidadania moderna, que é uma postura de desconfiança e de fortaleza em relação à autoridade, e de exigência de que todos os actos da autoridade tenham de ter uma justificação racional.

Foi esta postura de liberdade - que se exprime, em primeiro lugar, através de uma cidadania vigorosa - que nunca chegou a Portugal, o qual se colocou sempre do lado da autoridade do Papa contra a reforma protestante, e que só agora, muito lentamente vai chegando ao país com o regime democrático.

Em Portugal, tradicionalmente, antes de alguém se pronunciar em público sobre qualquer assunto era necessário saber se o Bispo, ou mesmo o Papa, aprovava - e também o Rei, o pai, o padrinho e o patrão. Ainda hoje, tratando-se de qualquer assunto relativo ao bem público, convém saber com antecipação se o Governo aprova ou não. Caso contrário, temos o caldo entornado.

Cabe lá na cabeça de alguém, numa conferência sobre prostituição, pôr as prostitutas a falar sobre a sua actividade e a fazerem reivindicações públicas ao Governo, por exemplo, exigindo regulação sobre o número de horas de trabalho, reclamando que a ASAE fiscalize a salubridade dos seus locais de trabalho e reivindicando o direito a serem elegíveis para as pensões de reforma da Segurança Social.

Seria o Governo o primeiro a reagir, pondo o Ministério Público atrás dos dirigentes de O Ninho:

-Mas é para isso que o Governo todos os anos dá centenas de milhares de euros a' O Ninho, para eles porem as prostitutas a fazer reivindicações e a fazer parecer mal o Governo? Não bastava já o Pardal Henriques e a bastonária da Ordem dos Enfermeiros?  

E o que diria o padrinho da prostituta quando a visse na televisão a explicar na conferência as dificuldades com que se debate a sua profissão?

Liberdade de expressão e de afirmação pessoal para as prostitutas existe, mas é na Alemanha (cf. aqui). Em Portugal elas têm uns padrinhos que as protegem e que falam por elas.

Sem comentários: