01 junho 2018

Uma de intelectual (I)

   

    I. Ovelhas e cabritos


Provavelmente por ter lido o post mais popular do Portugal Contemporâneo durante o mês de Maio (cf. aqui) em que eu sou tratado como um intelectual, o Papá Encarnação, nas alegações finais do meu julgamento, na passada Quarta-feira, no Tribunal de Matosinhos, não se quis ficar atrás e resolveu dar "uma de intelectual".

Já tinha falado o magistrado X, que falou de improviso. Falariam mais adiante a advogada de defesa e o próprio réu, ambos também de improviso. Mas quando o Papá Encarnação se levantou solenemente segurando um maço de umas 30 a 40 folhas na mão, fez-se-me um aperto no coração, só não deitei as mãos à cabeça porque não podia, e perguntei para comigo: "Meu Deus, o que é que vai saír dali?".

Ora, sem ofensa, eu penso que o Papá Encarnação é um excelente advogado de província, manhoso, cheio de truques, insinuante perante o tribunal, que conhece muita gente, mestre em jogos de bastidores, enfim, o advogado ideal para defender o regedor que se sente difamado pelo aldeão.

Ele é o advogado capaz de exaltar todas as qualidades do regedor, mesmo as mais imaginárias. E não há ninguém que possa falar mais eloquentemente do que ele acerca do respeito que é devido à autoridade de um regedor. Sendo ele próprio uma figura conhecida na aldeia, e ele próprio uma autoridade - na realidade, um homem de leis - ele conhece todas as testemunhas e "conversa-as" para o julgamento.

O advogado de província revela-se através de vários sinais, o mais importante dos quais é o da "pergunta fechada", a pergunta que já contêm em si a resposta, e à qual a testemunha responde abanando a cabeça, sem necessidade de falar e de se expor, protegendo-se do crime de perjúrio: "O senhor regedor é uma pessoa muito humilde, não é?".

Ao mesmo tempo, o advogado de província faz passar o aldeão perante o tribunal como um bronco e um ignorante, mas um bronco e um ignorante rico, porque há que pagar a indemnização, que o advogado de província partilhará mais tarde com o regedor, sob a forma de honorários: "o réu tem uma grande quinta com 938 ovelhas e 1123 cabritos, não tem?". E a testemunha, incerta acerca da precisão das contas, abana simplesmente a cabeça.

O  aldeão bronco e ignorante, embora rico que difamou o regedor humilde e educado, mas uma alta autoridade. É nisto que se especializa o advogado de província. E é nisto que o Papá Encarnação é especial.

Mas, ao fim de tantos anos a representar regedores e a perseguir aldeões, a contar ovelhas e cabritos, o advogado de província não possui a mais modesta réstia da qualidade essencial que caracteriza um intelectual, que é a capacidade de abstração.

E é por aí que tudo vai ruir.


(Continua)

Sem comentários: