04 junho 2018

plenamente

Apreciei muito as capacidades e o profissionalismo do magistrado X nos interrogatórios que fez, e isso mesmo lhe exprimi no final do julgamento, já depois de ele ter pedido a minha condenação.

Não me custa nada aceitar sequer que ele considere que eu devo ter mais respeito pelos políticos e pelos advogados do regime. É uma questão de opinião e a democracia consiste precisamente nisso -  na diversidade de opinião, embora isso não seja um crime. Aqui, trata-se obviamente de um erro - o de criminalizar uma opinião -, mas os homens estão sujeitos a erro.

Tudo isto eu aceitei no magistrado X. Só não aceitei quando ele mentiu.

Quando explodiu a onda mediática sobre a situação das crianças internadas no HSJ no início de Abril, eu vim a público dizer aquilo que era verdade - que a obra iniciada pela Associação Joãozinho estava parada há dois anos porque a administração do HSJ não desimpedia o espaço.

A mensagem oficial passada pelo HSJ e pelo Ministério da Saúde era diferente. Ignorava a Associação Joãozinho, a certa altura dizia que o HSJ já tinha o dinheiro para a obra, só faltava a autorização do Ministério das Finanças, que esta viria dentro de duas semanas. Nos bastidores, dizia aos jornalistas que a obra da Associação Joãozinho estava parada por falta de dinheiro.

Apesar da desproporção de forças, a mensagem da Associação Joãozinho conseguiu atingir uma certa camada, ainda que pequena, da opinião pública. Mas o que iriam as pessoas dizer se a verdade se generalizasse?

Havia, portanto, que descredibilizar e, no limite calar, a voz da Associação Joãozinho. Esta pressão oficial acabou por entrar na sala de audiências pela voz das testemunhas de acusação, a deixas do Papá Encarnação, e atingiu o zénite quando depôs o Dr. José de Freitas, advogado da Cuatrecasas.

Nas palavras dele, eu pronunciei aquele comentário televisivo (25 de Maio) porque cheguei à conclusão de que não iria conseguir fazer a obra, e fiz recair sobre a Cuatrecasas a razão do meu fracasso. A obra está parada "há três anos" - prosseguiu -,  porque a Associação não tem dinheiro para a continuar.

Não era a primeira vez que isto se dizia em tribunal - que a obra estava actualmente parada porque a Associação não tem dinheiro para a continuar. O primeiro a fazê-lo foi o Professor António Ferreira, logo na segunda sessão do julgamento. Mas agora, tudo era dito e repetido com maior ênfase.

Durante as alegações finais, o Papá Encarnação, no seu longo discurso, voltou a repisar o mesmo tema. Mas foi uns minutos antes, quando falou o magistrado X que eu, ao ouvi-lo dizer que a obra continuava parada porque "ainda não há dinheiro", pensei:

-Também tu?...

e decidi então qual seria o primeiro ponto a tratar quando me fosse concedida a palavra: 1) Situação actual da obra do Joãozinho/credibilidade financeira. Era uma questão fora do âmbito do processo judicial, que versava sobre acontecimentos ocorridos na Primavera de 2015, ao passo que a paragem actual da obra ocorreu em Março de 2016. Mas era importante esclarecer.

E assim fiz. Expliquei calma e detalhadamente ao juiz por que é que a obra está parada há dois anos - porque o HSJ não desimpede o espaço, mantendo o Serviço de Sangue a funcionar no local, não cumprindo a cláusula 1ª do Protocolo.

Depois, insisti na credibilidade financeira do Projecto que passou vários filtros institucionais, entre os quais o do Tribunal de Contas. Detalhei em seguida os pagamentos feitos à construtora nos termos contratuais e a facturação pelos trabalhos já efectuados - os primeiros superam os segundos pelo dobro, isto é, a construtora tem em seu poder dinheiro para recomeçar prontamente os trabalhos.

Finalmente, lembrei que, se a obra estivesse parada por culpa da Associação (falta de dinheiro) e não  do HSJ, este já teria accionado a cláusula de salvaguarda que lhe permite apropriar-se de tudo o que está feito após 9 meses de paragem da obra. Estão passados dois anos e nada fez.

E foi, então, depois de explicar tudo em detalhe ao juiz, que me voltei ligeiramente para a esquerda para o magistrado X e a palavra proibida ecoou pela primeira vez no tribunal, seguida de várias repetições. Diz quem assistiu - porque eu estava a olhar para ele mas não me recordo de o ter visto - que permaneci de dedo apontado a ele durante vários segundos, enquanto repetia "É mentira!".

Quando a calma voltou, passei então aos outros pontos. Acerca destes, também disse tudo o que de importante tinha para dizer.

Quando saí cá para fora, qual era o meu sentimento?

Aquele que ainda hoje tenho. Mesmo que venha a ser condenado, estou plenamente satisfeito.


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