16 junho 2018

Como morre uma democracia? (I)

I. Um problema político


Eu vou agora iniciar uma série de posts para responder à questão: "Como morre uma democracia?".

Trata-se de uma questão que já aflorei e à qual já dei repetidas vezes a resposta em abstracto: uma democracia morre pelo sistema de justiça.

Porém, o pensamento abstracto revela tanto quanto esconde e, para que se conheçam todos os pormenores da morte, é necessário um exemplo concreto. Naturalmente vou utilizar o meu próprio case study que venho a desenvolver neste blogue desde há um ano.

Para que não pareça, contudo, que estou a teorizar sobre um único caso concreto, ainda por cima que me diz directamente respeito, vou fazer acompanhar o argumento de um outro caso concreto que tem muitas semelhanças com o meu, embora também algumas diferenças - o da independência da Catalunha.

A principal diferença é a dimensão ou a importância. Mas, em ambos os casos, se trata de problemas políticos que foram judicializados, em ambos os casos se trata da judicialização da política, que é precisamente o "cancro" que conduz à morte da democracia.

Como é que esse cancro aparece e como se desenvolve, e como é que ele se espalha pelo corpo social e pelas instituições, e quem são os agentes da disseminação das células cancerígenas - as fatídicas metástases -, é que é propriamente o tema central e a originalidade do meu argumento

O problema da Catalunha é um óbvio problema político. Uma parte da população catalã, fazendo uso do seu direito à liberdade de expressão, quer a independência. Outra parte, e bem assim o Governo central em Madrid, não a quer.

A maneira de resolver democrática e pacificamente este problema político não requer grandes teorizações. Basta ver como é que a Inglaterra - o país com a mais velha tradição democrática na Europa e no Mundo - o resolve. Através de um referendo. Aconteceu assim na Escócia e no Canadá (Québec), um país que descende da Inglaterra.

Não resolvendo o problema, que é político, através da política, o Governo de Madrid procurou resolvê-lo através da justiça. Até agora a vitória foi de Pirro.

O Joãozinho é também um problema político, e eu sou a cara dele. Eu, carregando o Joãozinho às costas, sou presentemente, e desde há cerca de três anos, um problema político em Portugal, sobretudo para o actual Governo. Tornei-me um embaraço para o poder político.

Não havendo dinheiro do Estado para fazer a obra do Joãozinho, foi-me solicitado pela administração do HSJ que a fizesse. E quando se tornou realidade que eu a ia fazer, o poder político procurou travá-la. Numa dessa ocasiões, através de uma facção do PSD, muito influente no HSJ.

Nessa ocasião, o  obstáculo veio através do Paulo Rangel e da sua sociedade de advogados. Eu falava habitualmente do Joãozinho no Porto Canal, era uma obra de interesse público, de grande dimensão, e para a qual eu pedia ajuda ao público. Quando o obstáculo surgiu, eu falei também em público, e da forma que se conhece.

Este era um problema para ser tratado no espaço público porque era um problema de interesse público - na televisão, nos jornais, nas redes sociais, nos blogues ou nos cafés - e eu próprio convidei o Paulo Rangel para ir lá rebater o que eu disse e, tendo razão, desancar-me ali mesmo à frente de toda a gente.

Não o fez porque não tinha razão. E, então, qual batoteiro, resolveu mudar as regras do jogo e levar o problema para a justiça - um palco onde esperava mais facilmente poder ganhar o debate. Trouxe atrás de si, como testemunhas, correligionários do partido, e até, para o representar em tribunal, uma outra sociedade de advogados do mesmo partido.

Judicializou um problema político.

Neste caso, nem vitória de Pirro foi. Foi empate com sabor a derrota, em ambos os casos resultados marginais. As consequências para a democracia da judicialização da política é que não são. São mortais.

Nenhum verdadeiro democrata faz uma coisa destas para ganhar um debate que é político - procurar criminalizar o opositor e, no limite, metê-lo na cadeia. Isso é o que faz um ditador.

Mas foi isto que fez o Mariano Rajoy com o seu PP, e vários outros partidos por trás a aplaudir. E foi isto que fez o Paulo Rangel e o seu PSD, também com vários outros partidos por trás a aplaudir.


(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ponto 1.
Para mim, uma democracia falece — e tantas já faleceram — quando é "pura", total. Deixa que os seus inimigos espertos a destruam — pela liberdade.
A escassas democracias que sobrevivem são "impuras". Limpam o sebo daqueles que as querem aniquilar.

Ponto 2.
Qualquer cancro é uma forma «alternativa» de vida e, por isso, procura sobreviver. Há quem defenda que tem uma origem infecciosa. As células cancerosas, escassa diferença fazem daquelas ditas normais. Os tratamentos mais eficazes na actualidade passam por treinar a imunidade do paciente para liquidar as células cancerosas como se fossem algo anti-natural — e que é a verdade.

Qualquer esquema social/político, afinal, sempre morreu «às mãos» da justiça.
A humanidade tem, desde todo o sempre, o anseio de dar a alguém o que lhe é devido — uma boa aproximação cristã da definição de justiça.