11 março 2018

ius e derectum

O Pedro Arroja tem toda a razão quando diz, no post anterior, que um dos problemas dos juristas é serem formados em Direito, aquele palavrão de origem latina a que nos habituámos a fazer corresponder à «lei» e que, muitas vezes, nos leva para longe da «justiça».
Isto é tanto verdade que, nos anos longos que já levo a ensinar o pouco que sei, tenho a preocupação de começar todos os meus semestres lectivos por explicar reiteradamente aos meus alunos que o «direito» e a «lei» não são a mesma coisa, e que, frequentemente, estão nos antípodas um do outro.
Sucede, contudo, que a palavra «justiça», de que o Pedro fala, é, também ela, de origem latina e deriva do vocábulo romano «ius», que foi a forma mais antiga que os romanos tiveram para expressar a ideia de direito. De facto, enquanto a palavra «ius» é dos primórdios da cidade de Roma (fundada algures por meados do século VIII a.C., havendo quem sugira a data precisa de 753 a.C.), a palavra «derectum» aplicada ao «ius», o «ius derectum», é-lhe em mil anos posterior, calculando-se que tenha tido as suas origens, com este sentido, nos séculos IV ou V d.C.. Por outro lado, a palavra «direito» não significa exactamente «lei», sendo este significado próprio dos sistemas romanísticos, como o nosso, influenciados que foram, a partir do século XII, pelo Direito Romano tardio ou justinianeu, no qual o direito e a lei eram a simples expressão da vontade do imperador. Se, contudo, atendermos ao significado da «common law» dos sistemas jurídicos anglo-saxónicos, que em boa hora escaparam à romanização jurídica tardia, constataremos que o conceito de «lei» e o de «direito» têm, nessas ordens normativas, um significado que antecede a lei soberana e muitas vezes a contraria através de outras fontes, como o costume e a jurisprudência. Por isso, meu caro Pedro, o jurista que atenda mais ao «derectum» do que ao «ius» será certamente um mau jurista, ou, pelo menos, um jurista que se arriscará a nem sempre estar do lado da justiça.
Donde vem, então, o Direito que não brota da vontade expressa do legislador soberano, que hoje determina uma coisa e amanhã o seu contrário? Da ordem social moral espontânea, a autoridade à qual todos os homens de boa vontade obedecem com naturalidade e a que os tribunais obrigarão aqueles que dela se querem afastar. Essa ordem espontânea, que essencialmente encontraremos nas normas ancestrais do direito privado, não carece da autoridade do legislador, a não ser para criar as condições para a sua observância. Tão pouco de autoridades personalizadas, seja o príncipe ou o papa, embora, um e outro, lhe possam ser muito úteis.

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