21 julho 2017

A mentira

Na frontaria do Ministério da Verdade estavam inscritas a negro as insígnias da Oceânia:

                                                                Guerra é paz
                                                                Liberdade é escravidão
                                                                Ignorância é sabedoria

Um dia pela calada da noite, alguém acrescentou à mão e em letras ainda mais negras:

                                                               Juiz de instrução é juiz.


Deus chega até nós através das obras da criação e, em primeiro lugar, através da principal - o ser humano. Deus chega até nós, portanto, em primeiro lugar, através dos homens e das mulheres, e às vezes, através da mais improvável das mulheres.

Aconteceu comigo recentemente. Foi ao ler uma entrevista da deputada Mariana Mortágua em que ela recordava os seus primeiros tempos no Parlamento e os conselhos que lhe deram, logo à entrada,  os seus colegas mais velhos.

Havia várias palavras proibidas no Parlamento - e uma delas era "mentira". Fiquei tão feliz ao ler isto que é difícil imaginar. Fez-se luz no meu espírito, ela trouxe-me luz, que só pode ter vindo de Deus porque dela eu não acredito muito.

Se eu suprimir certas palavras acabo também por suprimir do meu espírito as ideias que elas representam. A minha razão passa a ficar amputada, e não representa mais a totalidade da realidade. Mas no caso da palavra "mentira" as coisas ganham ainda uma outra dimensão, sobretudo quando ela é suprimida entre os deputados.

É que ao suprimir do meu espírito a ideia de mentira eu estou a suprimir ao mesmo tempo a ideia de verdade. De facto, eu só sei dizer aquilo que é verdade por contraposição àquilo que é mentira. Por outras palavras, sem mentira não há verdade, as duas ideias constituem um todo, uma não existe sem a outra. Portanto, aquilo que aquele entendimento informal entre os deputados do Parlamento visa suprimir não é apenas a mentira. É também a verdade.

E que consequências tem isso?

Muitas e muito importantes. Indicarei aqui algumas.

Primeira, passa a valer tudo, tudo tem o mesmo valor, tudo é aceitável - é a chamada ditadura do relativismo cultural. Não existe nem Deus nem o Diabo, nem verdade nem mentira, nem o bem nem o mal, nem o belo nem o feio.

Segunda, se não existe a verdade, como pode haver justiça? A justiça depende da verdade. Está a ver Salomão a fazer justiça sem primeiro saber quem era a verdadeira mãe da criança? Está a imaginar um juiz a decidir sobre um réu acusado de roubo sem primeiro saber se ele roubou ou não alguma coisa?

Terceira, tudo o que é necessário para que exista a liberdade da mentira é que se suprima a ideia de verdade (e, consequentemente, também a ideia de mentira). É por isso que na Oceania existia o Ministério da Verdade cuja função era precisamente a de suprimir a verdade, para que pudesse prevalecer a liberdade da mentira.

Em todo o caso, a ideia imediata que eu queria deixar aqui é a seguinte: um juiz de instrução não é um juiz.

Não é?

Não. Está a ver um juiz - que seja um verdadeiro juiz - a tomar uma decisão assim, relevando apenas os argumentos de uma das partes (acusação), e omitindo os da outra (defesa)?


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