21 julho 2017

A liberdade de mentir

No Parlamento existe então um entendimento informal entre os deputados - uma cultura - segundo a qual não se pode pronunciar a palavra mentira. Mas se, do meu espírito, é eliminada a palavra mentira, com o tempo a ideia de mentira também desaparece dele. E, consequentemente, a ideia de verdade. Uma não existe sem a outra.

Para existir liberdade de mentira, tudo aquilo que é necessário é suprimir a ideia de verdade (e, consequentemente, a ideia de mentira). Portanto, os deputados são o grupo, para já identificado, que pode mentir à vontade (*).

E os cidadãos em geral, o povo?

O povo não. Aquele princípio da proibição da palavra mentira só vale para os deputados. Eles não o proclamam em público, de modo a valer também para o povo. A liberdade de mentir é um privilégio só deles - embora, em breve, outros grupos se vão juntar a eles.

O Parlamento é o órgão do Estado que faz as leis, aquilo que na linguagem do Direito se chama o Legislador.  O Legislador tem inteira liberdade de mentir. (Não quer dizer que o faça sempre, umas vezes mente, outras diz a verdade, outras ainda mistura a verdade com a mentira).

Aquilo que é certo é que, quando ele se pronuncia - normalmente, por maioria - já  ninguém pode estar certo de que ele esteja a dizer a verdade. Por outras palavras, as leis que ele faz não estão necessariamente baseadas na verdade (v.g., "O casamento também é para pessoas do mesmo sexo"). A verdade deixa de interessar.

O Governo executa as leis do Parlamento - é o órgão executivo do Estado. Para as leis que os governantes excutam a verdade não interessa. Portanto, para eles também não. Mas então eles também têm inteira liberdade de mentir. Os governantes são, para já e a seguir aos deputados, o segundo grupo de pessoas que têm liberdade para mentir.

E os agentes da justiça - advogados, magistrados do Ministério Público  e juízes? Estes fazem parte do poder judicial, a quem compete fazer cumprir a leis. Mas como as leis são independentes da verdade, também eles no exercício das suas funções podem mentir à vontade. De resto, estão todos abrangidos por um estatuto de imunidade que os protege contra as acusações de mentira ou de outras más-práticas profissionais.

Portanto, todos os principais  agentes do Estado Democrático de Direito - deputados, governantes, juízes, magistrados, advogados - têm um estatuto à parte e um privilégio que não assiste ao povo - a liberdade de mentir. (**)

E quais são as consequências disso para a Justiça?

Catastróficas.



(*) Leia o clássico "1984" do George Orwell segundo esta ideia principal que é verdadeira: Para que os governantes, no sentido lato dos poderes do Estado, possam mentir à vontade, tudo o que é necessário é eliminar a Verdade. Por isso, a Oceania possui um Ministério da Verdade, cuja função é precisamente essa - a de eliminar a Verdade.
Que os governantes podem agora mentir à vontade está espelhado nas frases inscritas no edifício do Ministério.
(**) Não é de mais insistir que a liberdade de mentir não implica que eles mintam sempre ou que mintam todos. Podem mentir só alguns ou só às vezes. O ponto importante é que possuem essa liberdade, a qual não assiste aos cidadãos ou ao povo.

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