20 setembro 2014

comovendo


O momento crucial que marca o início da reforma protestante é aquele em que as críticas de Lutero à Igreja se tornam públicas, quando ele afixa as suas célebres 95 teses na porta da igreja de Wittemberg. A partir daí a separação tornou-se inevitável e era apenas uma questão de tempo até à sua consumação final.

(A palavra crítica tem origem no grego krisis, que significa separação)

E porquê?

Porque quando as críticas são públicas, uns subscrevem-nas, outros não, e a comunidade fica dividida. E assim aconteceu.

Ao fazê-lo, o protestantismo iniciou uma tradição de trazer a público, e discutir em público, os problemas da vida em comum (a partir daqui, não se pode propriamente mais falar em vida em comum, mas em convivência social). O catolicismo, por seu lado,  manteve a sua tradição de discutir os problemas da vida em comum em privado, em família.

É assim que surge  a figura do intelectual público (mais tarde generalizada até ao opinion maker actual), o homem que vem a público discutir criticamente os problemas da sociedade e, eventualmente, propôr soluções para os resolver.

(Voltaire é o exemplo acabado do intelectual público, mas todos os filósofos modernos o são em maior ou menor medida: Rousseau, Hume, Adam Smith, Kant, Marx, etc.)

O intelectual público (ou crítico social ou opinion maker) é, obviamente, uma figura divisiva, uma figura da cultura protestante e portanto uma figura tipicamente de esquerda (exemplos aqui). As opiniões críticas, expressas em público, partem a comunidade e, por isso, o intelectual público ou opinion maker está em geral associado com um partido. O governo da sociedade passa a ser determinado pela opinião maioritária e por isso a democracia moderna tem sido frequentemente chamada de "governo por opinião".

A opinião pública é o motor da mudança numa sociedade de cultura protestante.

Numa sociedade de cultura católica a opinião pública não muda nada. Nem sequer se pode falar em opinião pública - uma opinião ou conjunto de opiniões partilhadas por uma larga fracção da sociedade. O personalismo católico, que está na base desta cultura, impede que duas pessoas exprimam em público a mesma opinião acerca do mesmo assunto, quanto mais uma larga fracção da sociedade. Aquilo que existe é uma multiplicidade de opiniões privadas que são publicadas, nos jornais, na rádio, na televisão e nos blogues.

O correspondente católico da opinião pública é o sentimento privado, um sentimento que se forma em círculos privados da família, do emprego, dos amigos, acerca do estado da sociedade, e que se exprime por um  gosto/não gosto, e não por um concordo/discordo. É um sentimento, e não uma opinião, vem do coração e não da razão, é feminino e não masculino. E - não é de mais acentuar -, não é um sentimento que se exprime de forma pública, mas em pequenos círculos privados.

É este sentimento privado, que se exprime de forma quase subterrânea - frequentemente a partir da cozinha de cada casa de família -, que fará mudar uma sociedade de cultura católica, jamais a opinião pública. Às vezes este sentimento emite sinais públicos. (Como a sentença do caso Face Oculta).

Nunca ninguém vai conseguir mudar Portugal procurando convencer os portugueses (como estes intelectuais que, julgando-se de direita, são na realidade de esquerda e que, à parte uns episódios mediáticos, estão condenados ao fracasso).

Só é possível mudar Portugal comovendo os portugueses.

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro PA,

Há uma lenda (não confirmada) que a mãe de Lutero (uma fervorosa católica) no leito da morte terá declarado ao seu filho:
"A tua religião será melhor para viver, a minha para morrer"

Verdade ou não, fica uma observação notável entre o catolicismo e protestantismo feito por uma analfabeta.

D. Costa






Anónimo disse...

Correcção:

"...uma observação notável da diferença entre..."

D. Costa

Anónimo disse...


Em estrangeiro:
“his religion was easier to live by, but hers was easier to die by”.

Tanto em alemão como em inglês há uma conotação mais profunda na frase, difícil de traduzir para português.

D. Costa


Anónimo disse...

Talvez, em discurso directo, a tradução seja:

"É mais fácil viver pela tua religião, mas mais fácil morrer pela minha".

Um católico pode morrer pela sua religião, um protestante (luterano) dificilmente o fará.

Ao mesmo tempo, um católico raramente vive pelas regras da sua religião (ignora-a e frequentemente despreza-a: veja o caso dos portugueses), mas um protestante vive de acordo com as regras da sua.

Obrigado.
PA