13 setembro 2014

Está preso

Eu gostaria agora, através de um conjunto de posts, de descrever a Reforma Protestante com o mais baixo nível de abstracção possível, a fim de analisar e dar significado concreto a muitas instituições e ideias que dela saíram.

Não sem antes chamar a atenção para o facto de todos os conceitos que referi aqui estarem presentes na família. Na realidade, o modelo de organização social do catolicismo, que o João César das Neves anda agora, e  apropriadamente, à procura - o seu verdadeiro paradigma - é a família.

É precisamente utilizando o paradigma da comunidade familiar que me proponho prosseguir o meu exercício, e responder à questão: por que é que as duas grandes ideologias modernas que sairam do protestantismo - o liberalismo (a partir do calvinismo) e o socialismo (a partir do luteranismo) passam o tempo a falar de liberdade?

Imagine uma família formada pela Mãe (analogia de Igreja, Santa Madre Igreja), o Pai (Papa) e muitos filhos. A certa altura um deles (Lutero) começa a criticar violentamente a  Mãe (Igreja).

(A palavra criticar tem a sua origem mais remota na palavra grega krisis, que significa separar. Portanto, já se está a ver o que é que vai resultar das críticas do filho à Mãe - separação.)

(Já agora, e a propósito de crítica e do seu significado, ocorre-me ao espírito aquele filósofo cujos principais livros têm por título "Crítica da ...".  Não é difícil  antecipar o efeito que a filosofia deste homem produz na comunidade - separação, divisão, no fim todos à bulha uns com os outros).

O Pai (Papa) ainda tentou intervir para repreender o filho (Lutero) pelas críticas à Mãe (Igreja). Mas sem resultado. As críticas subiram de tom e o Pai não teve outro remédio - pôs o filho fora de casa (excomunhão de Lutero).

Tudo teria ficado por aqui, não é inédito um Pai pôr um filho fora de casa. O problema é que outros filhos, que o pai nunca punira, seguiram o irmão - auto-excluiram-se da família, largamente pela influência que o irmão tinha sobre eles.

Formaram assim uma seita (Luteranismo). Aquilo que os ligava era um conjunto de ideias críticas (uma ideologia)  acerca da Mãe ( Igreja), e, já agora, também acerca do Pai (Papa), que insistia em proteger a Mãe (Igreja).

(Mais tarde, outro filho (Calvino) faria o mesmo, dando lugar a  uma segunda seita e a uma segunda ideologia).

Em seguida, foi como se tivessem subido a um monte, que lhes dava a superioridade necessária para analisar do alto  os defeitos da família - isto é, para a criticar. A força do grupo permitiu-lhes construir um castelo, que o irmão sozinho nunca teria construído, e conferiu-lhes segurança mútua. E tendo construído o castelo, fecharam-se lá dentro e declararam-se sitiados. E desataram a disparar sobre a família todo o tipo de insultos, injúrias e deprecações, enfim, todo o tipo de críticas. Chegaram a chamar puta (Whore of Babylon) à Mãe.

E nunca mais deixaram de falar em Liberdade.

O outro grupo de irmãos - o de Calvino - fez o mesmo. Separaram-se da família, subiram ao alto, construíram um castelo, fecharam-se lá dentro, declararam-se sitiados, e depois dispararam sobre a família.

E também nunca mais deixaram de falar em Liberdade.

Porquê, por que é que nem uns nem os outros nunca mais deixaram de falar de Liberdade,  será  que não se consideravam livres?

Claro que não. Cada grupo estava lá auto-sitiado em seu próprio castelo.

Se você subir a um monte, construir um castelo, se fechar lá dentro e depois desatar a disparar sobre quem passa cá em baixo, você acha que é um homem livre?

Claro que não é. Está preso no castelo que você próprio construiu. Experimente sair dele e vai ver o que é que lhe acontece. Na realidade, só ousará sair  se trouxer a seita toda atrás de si para o proteger. E mesmo assim...eu cá tinha medo.

Então, e quem são os homens livres? Aqueles filhos que ficaram na família, aqueles que continuaram a fazer a sua vida normal e regular cá em baixo na planície enquanto ocasionalmente escutavam os insultos e as críticas que vinham do castelo, aqueles, enfim,  que continuaram a respeitar a Mãe (Igreja, do grego ekklesia, comunidade) e a obedecer ao Pai.

A Liberdade está na obediência, não na desobediência (de Lutero ou de Calvino).

4 comentários:

Anónimo disse...

O problema foi mais de relacionamento com o pai acerca de como se devia comportar a maezinha.
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Anyway, não vejo grande mal em discordar com o pai se o chamamos atenção que devia corrigir os comportamentos desviantes da mãe. .
O que não significa que um filho possa chamar nomes à mãe e destrata-la publicamente. Não há paizinho que tolere um comportamento destes.
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O respeito, a gratidão, a obediência são coisinhas importantes a ter em conta quando se lida com os pais.
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Por exemplo, Jesus foi criado e educado num contexto familiar religioso judaico. A sinagoga era o local habitualmente escolhido por Jesus para ensinar e desempenhava a suas tarefas religiosas de forma tradicional.
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Nunca se ouviu Jesus a chamar nomes à sinagoga ou ao templo, porque era uma casa que devia respeito (a do Pai), mas tambem não se coibiu em criticar aquilo que lhe parecia errado na condução da instituição.
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São famosas as SETE criticas e Jesus. As críticas em si são todas contra a hipocrisia dos doutores do templo. Mas fazio-o directamente aos 'pais'.
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Jesus retrata os fariseus como atentos a minúcias, e que os faz parecer justos e virtuosos por fora, sem preocupações com o que é interno.
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Ora, se as motivações para a critica forem justas, justo seria tambem que o paizinho reconhecesse e levasse a mãe igreja por caminhos mais virtuosos, como de resto tem vindo esforçosa e paulatinamente a fazer ao longo dos tempos.
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Penso que a ignição para a critica mais contundente por parte de Lutero terá sido a venda de indulgências que fazia da igreja uma verdadeira Trader de perdões.
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Lutero foi mais incisivo, vá, e chamou-lhe um nome ofensivo e demonstrativo de petulancia e arrogancia, embora bem aplicado se fosse feito em privado junto do Papa, do tipo: oiça lá sua excelencia, cá para nós, essa cena de andar a vender os céus por dinheiro a pecadores inverterados e reincidentes não é coisa lá muito católica, veja lá se controla isso senão vamo-mos zangar.
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Isto dito em privado dá direito a uma discussão e troca de mimos e depois acabariam os dois a beber um vinhito das confrarias confraternizador. ~
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Agora, o filho (lutero) corre a aldeia a dizer mal da mãe e depois quer que o pai diga que sim senhora que a Mãe é senhora da vida. Não pode ser.
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Rb

Anónimo disse...

Rb,
Apreciado.
O seu comentário faz ressaltar o carácter privado da nossa cultura católica por oposição ao carácter público da cultura protestante.
Entre nós, as críticas fazem-se em privado. Se vêm a público, está tudo estragado. É a guerra.
PA

Pedro Sá disse...

Tem noção que toda essa lógica nega a natureza humana?

Toda essa lógica parte necessariamente do princípio de que há coisas que não se podem contestar porque não. Por essa ordem de ideias ainda acharíamos que o Sol giraria à volta da Terra, por exemplo.

Unknown disse...

O Pedro Arroja acredita em tábuas rasas... depois dos últimos 40 anos acha que é chegar, apagar o passado, fingir que nada se passou e que os Portugueses são o que ele imagina que eram há 40 e mais anos e que a seguir implanta a sua caricatura de doutrina social da igreja, é coroado rei e Portugal lança-se a caminho da colonização do sistema Alfa Centauri!

Está tão iludido que nem enxerga que os Portugueses já não estão nessa "onda"... Podem escolher não se interessar por política mas não estão muito virados para que os outros o façam. Estão mais anarquistas que nunca!