21 setembro 2014

a interpretar a Bíblia

Vc descreve uma cultura, a católica, por comparação com a protestante. Na sua opinião, que eu tambem partilho, a cultura católica terá sido abduzida ou ultrapassada pela esquerda pela protestante que teremos importado algures no tempo.
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Ora, isso parece-me ser verdade. No entanto, quais são os motivos pelos quais isso se verificou?

Rb


"A Tradição contém em si as raízes da sua própria destruição". Assim, ou de forma algo semelhante, esta é uma frase que li há poucos anos ao Papa Bento XVI, num dos seus muitos livros de teologia, e que me ficou na memória.

Traz logo ao espírito a revolta protestante - o protestantismo nasceu no seio da Igreja Católica.

E também essa curiosidade e admiração que os portugueses têm pelo "estrangeiro", como, aliás, todos os países de cultura católica. Não é uma admiração por qualquer país estrangeiro, a Índia, a Guiné Equatorial, ou mesmo o Japão. É pela Alemanha, pela Inglaterra, pelos países nórdicos, pela Austrália, pelos EUA ou o Canadá. É uma admiração pelos países onde o protestantismo triunfou.

E porquê?

Porque sendo o catolicismo uma cultura de tudo, passando a haver protestantismo (ou "modernidade") no mundo, os países católicos também têm de o ter. Daí a curiosidade, a admiração - e, no fim, a imitação.

Alexis de Tocqueville viveu por alturas da Revolução Francesa. Foi aí que se definiu a Esquerda e a Direita. Tocqueville era um homem de Direita, um católico convicto e, como todo o católico convicto, dado a estabelecer diferenças - von Mises diria mais tarde dele que era um "aristocrata católico". A Esquerda, na altura, eram os liberais, pois o socialismo ainda não existia e o liberalismo, com a sua origem calvinista e anti-católica e muita influência escocesa (David Hume, Adam Smith, etc.), estava sobretudo, e na sua forma mais pura,  representado num país acabado de nascer - os EUA.

Tocqueville era juiz, tinha na altura cerca de 30 anos, e estudava-se uma reforma do sistema prisional em França. Em que país poderia ele procurar melhor inspiração do que nos EUA, um país jovem e anti-católico? As originalidades deviam estar todas lá. E assim partiu para os EUA, onde passou dois anos. E, curioso e admirativo, sedento de novidade,  como todo o bom católico, em breve se interessou por todos os aspectos do modo de viver e da cultura americana, e não apenas pelo seu sistema prisional.

Daí resultou o seu célebre "A Democracia na América", um livro encantador em vários aspectos, pela sua imparcialidade, pela sua honestidade límpida, e pela sua simpatia em relação a muitos aspectos da cultura americana - uma cultura, é preciso não esquecer, que, sendo calvinista na origem, era profundamente anti-católica.

No regresso, nos muitos anos que ainda viveu, em tudo aquilo que viria a dizer e a escrever depois, Tocqueville já não era o mesmo católico que partira para os EUA. Havia agora muito de protestantismo nele. Na realidade, o próprio livro que o imortalizou é uma declaração de imensa simpatia pela cultura protestante americana.

(Num comentário em baixo, o D. Costa, depois de mencionar uma  pessoa das suas relações,  que ele considera o "católico perfeito", refere-se a mim como um "católico ambíguo". E tem razão. Estou cheio de protestantismo. A minha formação (economista) é protestante;  vivi oito anos num país de influência protestante, numa idade muito influenciável, e gostei de muitas coisas que lá vi, e que gostaria de ver replicadas no meu país - e esta última é precisamente a minha costela de origem, a católica. É que um protestante nunca está curioso pela que se passa fora do seu país. Contenta-se com o que há no seu país, e que considera o melhor. Eu, pelo contrário, sou assim uma espécie de Tocqueville à portuguesa, sim, porque se existem Tocquevilles no mundo, nós não havíamos de ter um?)

A cultura católica integra tudo e desde a origem que a cultura católica está sedenta de integrar o protestantismo, sobretudo naquilo que ele tem de bom - e são muitas as coisas que ele tem de bom.

Mas essa integração tem de ser feita com delicadeza, equilíbrio e parcimónia, não pode ser feita à la minuta como nós temos feito nos últimos quarenta anos, e como já tentámos fazer no passado (a partir de 1820).

Já imaginou  um  matarruano a interpretar a Bíblia?

(Esta frase foi-me transmitida pelo Joaquim, mas não me sinto à vontade para mencionar a  sua autoria, e revela o problema fundamental da cultura protestante ou de quem a pretende imitar: já imaginou um matarruano a interpretar a Bíblia?)

1 comentário:

Rui Alves disse...

Sei que não é a mesma coisa, mas na governação anterior vi uma legião de matarruanos a interpretarem Maynard Keynes, até no meu local de trabalho.

O efeito mais visível foi no campo biológico, onde provocou uma praga de elefantes brancos em todo o território nacional. Os fenómenos biológicos perduram até hoje, com muitos desses elefantes brancos a se transformarem em dinossauros e outros já em avançado estado de fossilização.