22 julho 2013

self-ownership

Este é um resumo possível da demonstração de Hans Hermann Hoppe sobre o "self-ownership" (vou usar a tradução algo deficiente de propriedade sobre o seu próprio corpo), e que depois pode ser estendida para a propriedade sobre recursos escassos. Digam o que disserem, na boa tradição reflexiva aristotélica-tomista.

No post sobre direitos naturais um leitor esforça-se por negar qualquer noção absoluta de direito, insistindo na primazia da vontade geral, embora se possa perguntar, como é que a vontade geral é formada? As pessoas não reflectem sobre o que pensam ser o direito formando depois um consenso sobre isso?

Outra observação é possível, o leitor chama de arbitrário qualquer noção de direito natural, mas é possível revertermos a classificação. Como é que algo onde aplicamos a nossa capacidade (ou tentativa) de chegar a uma verdade é arbitrário e a vontade geral não o é? Na verdade é o inverso, o consenso maioritário é algo mutável enquanto a tentativa de chegar a uma verdade, que pode falhar ou passar por um processo cumulativo de descoberta, não é arbitrário em si mesmo. E uma verdade é universal. Um consenso é particularista, ou seja, arbitrário.

Mas vamos ao argumento:
1. Nenhuma posição é racionalmente defensável a não ser que justificada por argumentação.
2. Nenhuma posição pode ser justificada por argumentação se negar uma ou mais pré-condições de uma troca de argumentos interpessoal.
3. Uma troca de argumentos interpessoal requer que cada participante nessa troca goze do controlo exclusivo sobre o seu próprio corpo.
4. Negar a propriedade sobre o seu próprio corpo é negar o controlo exclusivo  sobre o seu próprio corpo.
5. Assim, a negação da propriedade sobre o seu próprio corpo é racionalmente indefensável.

17 comentários:

Anónimo disse...

Caro CN,

"Negar a propriedade sobre o seu próprio corpo é negar o controlo exclusivo sobre o seu próprio corpo".

Há aqui um erro silogístico. É possível ter controlo exclusivo sobre algo sem ser proprietário. Nos contratos de usufruto até à morte, por exemplo.
Podemos conceber um modelo em que "Deus nos confere o usufruto pleno do nosso corpo durante a vida, embora permaneçamos Seus.

Considerar os seres humanos "propriedade" é distorcer o conceito de propriedade e de ser humano.

CN disse...

...nem "self-ownership" quer dizer exactamente propriedade.

O termo propriedade aqui é controlo exclusivo da nossa vontade/mente sobre o corpo.

Se não o tiver, outros podem ter controlo sobre o nosso corpo, mesmo que a nossa vontade/mente o queria.

Na medida em que argumentamos no mundo real (fisicamente e comunicamos com outros) só o podemos fazer exercendo a nossa vontade sobre o nosso corpo para agir e só existe argumentação se o assim fizermos, tal como a nossa contraparte o faz.

Se outros tivessem controlo sobre o nosso corpo nunca haveria argumentação interpessoal nem isso seria um "valor" em si mesmo.

De resto, nas comunidades mais barbaras onde o valor da vida é menosprezado, não existe argumentação sobre nada. É a lei da força bruta por natureza.

CN disse...

Errata

"Se não o tiver, outros podem ter controlo sobre o nosso corpo, mesmo que a nossa vontade/mente NÃO o queira."

Anónimo disse...

A questão do direito natural é a sua "naturalidade". Não existe nada de "natural" no direito (todo o tipo de direito). O direito implica um acordo, ou um contrato entre pelo menos essas duas pessoas. O direito natural incorre no mesmo erro que o "contrato social".

"Uma troca de argumentos interpessoal requer que cada participante nessa troca goze do controlo exclusivo sobre o seu próprio corpo."

Onde é que está o requerimento? O CN deve, suponho eu, pagar os seus impostos (ou pelo menos uma parte). Logo se paga os impostos, e acredito que não o faça de boa vontade, não goza de controlo exclusivo sobre o seu corpo. Logo, a sua argumentação perde validade uma vez que "nega uma ou mais pré-condições de uma troca de argumentos interpessoal"

Francisco disse...

Existem várias ordens de "controlo sobre o próprio corpo".

1º - Do ponto de vista material eu não tenho a totalidade do controlo sobre mim mesmo porque posso ser coagido por terceiros. (independentemente de isto ser moral ou imoral)

2º - Do ponto de vista da minha consciência, eu também não tenho a totalidade do controlo sobre mim mesmo. A cultura molda em mim as minhas preferências e as minhas ideologias, que vão largamente depender do meio social e da região em que nasci. Para além disto eu posso ser enganado por alguém, que me induz em incorporar preferências preferências que de outra forma não as teria. Finalmente, tenho ainda características biológicas que constringem conscientemente e inconscientemente as minhas preferências e o meus valores.


E julgo que nenhuma destas ordens é binária, i. e., a verdadeira questão não é se categoricamente temos ou não "self-ownership", mas sim em que grau é que temos "self-ownership".

Por isso julgo extremamente relevante quando o PA diz que nós só somos X% livres, não pelo número concreto que apresenta, que é arbitrário, mas pela ideia de que nós simultaneamente somos autónomos em certos aspectos, mas somos dependentes e restringidos em outros aspectos.

A parte interessante não é obviamente o facto de sermos restringidos fisicamente, porque isso é trivial, mesmo para um libertário, mas o facto de sermos restringidos, influenciados, e até controlados no nosso sistema de preferências e valores, o que constitui uma forma indirecta mas poderosa de perda de "self-ownership". Mesmo num cenário ideal em que fôssemos perfeitamente livres em prosseguir as nossas preferências, essas preferências estão dependentes de factores culturais, sociais, e de outros indivíduos igualmente dependentes.

Perante isto, parece-me perfeitamente defensável a negação do controlo exclusivo sobre o próprio corpo, tanto do ponto de vista material, como do ponto de vista da nossa identidade.

Luís Lavoura disse...

A partir do ponto 5 deduz-se que a proibição do aborto é racionalmente indefensável.

Francisco disse...

Luís Lavoura,

É defensável assumindo que o feto tem uma propriedade autónoma e independente da mãe.

Mas na prática, e com um mínimo de ginástica mental, a posição libertária leva sempre a uma permissão do aborto nos seguintes termos: O feto não pode ser morto directamente, mas pode ser retirado por cesariana e deixado à sua sorte, i. e. morre por causas "naturais".

Já o Rothbard defendia mais ou menos a mesma ideia para bébés e crianças.

Que a posição libertária esteja sujeita a este tipo de tecnicalidades devia ser um sinal de alerta bem forte sobre as suas limitações enquanto teoria moral.

Francisco disse...

"3. Uma troca de argumentos interpessoal requer que cada participante nessa troca goze do controlo exclusivo sobre o seu próprio corpo"

Esta proposição parece-me extremamente bizarra, mas admito a possibilidade de a estar a interpretar mal. O Hoppe desenvolve isto, ou vai buscar a alguém?

CN disse...

"O direito implica um acordo, ou um contrato entre pelo menos essas duas pessoas"

Isso é um contrato civil. Nós acordamos isto e aquilo. Voluntariamente.

A propriedade honesta precisa de acordo? Tomar posse de um terreno onde não existe proprietário nem utilizador prévio e fazer dela um terreno produtivo para subsistência própria precisa do acordo do... resto do mundo?

CN disse...

"Que a posição libertária esteja sujeita a este tipo de tecnicalidades devia ser um sinal de alerta bem forte sobre as suas limitações enquanto teoria moral."

Luis Lavoura e o mesmo digo ao Rui A.

O Rothbard (e o Hoppe na introdução) faz expressamente a menção que não está a tratar do problema moral.

Moral é o que se deve ou não fazer apesar de poder ou não fazer. Os comportamentos imorais devem ser julgados por ostracismo social.

Na Ética, que tem o significado de "direito", procuram-se as regras básicas cuja violação legitimam a violência em legítima defesa.

O caso do aborto é um caos extremo de uma acção que pode ser considerada altamente imoral mas que nesta perspectiva, representa uma expulsão do corpo/propriedade da mãe.

Existem muitos libertários, que aceitam tudo na ética de rothbard menos a parte do aborto pondo em causa o conceito de expulsão neste caso.

Seja como for, o aborto está por aí e subsidiado pelo estado e não vejo ninguém a rasgas as vestes. Porque tem de ser este ponto difícil a fazer prova da validade?

CN disse...

"1º - Do ponto de vista material eu não tenho a totalidade do controlo sobre mim mesmo porque posso ser coagido por terceiros. (independentemente de isto ser moral ou imoral)"

O que se percebe é que "argumentar" implica comunicação usando um corpo.
Podemos estar presos e coagidos por terceiros, mas se argumentamos alguma manifestação física/exterior à mente tem de ser possível.

Depois. se alguém viola o meu direito ao meu próprio corpo, aprisionando-me, exercendo violência etc, seguramente não é alguém que está a argumentar.

O que o Hoppe quer dizer é que na medida em que argumentamos precisamos de controle físico sobre o nosso corpo e reconhecemos que o outro, autonomamente também o faz e precisa.

Quem não quer argumentar não reconhece nada. Reconhece a força e nada mais. E nenhum direito de facto. É a anomia -ausência de regras.

CN disse...

"2º - Do ponto de vista da minha consciência, eu também não tenho a totalidade do controlo sobre mim mesmo. A cultura molda em mim as minhas preferências e as minhas ideologias, que vão largamente depender do meio social e da região em que nasci."

Bem, não sei que lhe diga, isso é tudo verdade, excepto que continua na posse da capacidade de escolha, por isso é um ser moral, com capacidade de julgar e ser julgado. Cada um tem as suas preferências sobre a realidade, e deseja bens, etc., moldados pela cultura ou o que seja.

O facto é que tem necessidade de argumentar algo, a não ser que a sua lei seja a da força pura. O acto de argumentar tem o pressuposto de autonomamente expressar julgamentos usando o seu corpo, é só isso.

CN disse...

"Onde é que está o requerimento? O CN deve, suponho eu, pagar os seus impostos (ou pelo menos uma parte). Logo se paga os impostos, e acredito que não o faça de boa vontade, não goza de controlo exclusivo sobre o seu corpo."


Uma grande confusão. É a confusão entre liberdade e poder. Muitos autores dizem que a verdadeira liberdade é podermos fazer o que quiser, a nossa lei, a nossa força, poder voar se quisermos, assim, se não podemos voar, não somos livre, estamos sempre restringidos pelas leis físicas, etc.

Como deve perceber não é isso que se trata.

Mas de certa forma tem razão, tudo o que é "imposto" e que não parte de um acordo voluntário (como um simples contrato de prestação de serviços entre pessoas com propriedade no seu corpo e nos bens reais que adquiriu honestamente)...é uma forma de escravatura imposta.

Por isso digo e repito inúmeras vezes que a teoria constitucional só tem uma forma de se legitimar e mesmo assim muito deficiente.

Como não é nem nunca poderá ser um contrato civil entre pessoas, o mínimo que uma constituição pode fazer é conceder o direito de secessão no mínimo ponto que seja prático. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma comunidade que impõe regras que violam direitos de autonomia e propriedade. Se as pessoas participam de tal comunidade tem que ser porque o acordam fazer e submeter-se por exemplo a regras maioritárias. Mas tem de ser voluntário.

Francisco disse...

CN, acho que já percebi melhor. Sendo assim o ponto mais discutível parece-me mesmo ser o 1,

" 1. Nenhuma posição é racionalmente defensável a não ser que justificada por argumentação."

sendo defensável que a existência ou não de uma argumentação livre não é condição necessária para a produção de proposições válidas nem de considerações legítimas.


"O Rothbard (e o Hoppe na introdução) faz expressamente a menção que não está a tratar do problema moral."

Clarificou bem aqui, que fui impreciso no que escrevi.

CN disse...

"a produção de proposições" (válidas ou não) não é argumentar?

Francisco disse...

CN,

a diferença é que a argumentação pressupõe pelo menos duas pessoas, com um mútuo reconhecimento do direito à palavra.

Mas eu consigo produzir proposições verdadeiras só com a minha autonomia, por reflexão, observação, revelação ou seja o que for. Neste sentido não é necessário o reconhecimento do direito a argumentar (no sentido de interagir livremente com outros) para obter posições racionais.

CN disse...

Mas no sentido em que age com um sentido e expõe (exterioriza) uma proposição usando o seu corpo pressupõe coisas.

A pessoa pretende comunicar algo reconhecível. Não está em causa que esteja a dizer algo certo ou errado.

Quer existam pessoas que lhe ligue ou não, ou reconheçam o direito à vida ou não (e o matem ou o prendam, etc.).