28 fevereiro 2010

Madre

No post anterior argumentei que a teologia católica fornece um paradigma simples para analisar a sociedade - o paradigma da família. E procurei mostrar como a sociedade portuguesa está agora à procura de um Pai, confluindo na tese do Vasco Pulido Valente de que Portugal está a caminho de um regime político mais personalizado e também mais autoritário.

Para o efeito, utilizando o paradigma da família, argumentei que uma família sem Pai, sobretudo uma família suficientemente grande, tende para o caos e a desordem. É claro que, numa sociedade, a figura do Pai corresponde à de um Chefe de Estado possuindo amplos poderes e, em última instância, nos termos da teologia católica, corresponde à ideia de Deus.

E a Mãe? Se na teologia católica Deus é Pai de toda a sociedade humana (a Igreja prefere o termo comunidade), quem é a Mãe? E se uma sociedade sem Pai - representando a autoridade - resulta na desordem, em que é que resultaria uma sociedade sem Mãe, e o que é que a Mãe representa?

Começo por responder à segunda questão, imaginando uma família criada sem mãe nem mulher que a substitua. Que tipo de homens vão sair daqui? A tendência é para que saiam umas bestas.
Falta-lhes, em primeiro lugar, a intimidade física que só a mãe lhes pode dar e que começa no período de gestação. Falta-lhes as emoções e os sentimentos que a mãe, muito mais do que o pai, lhes pode transmitir. Mas sobretudo falta-lhes quem lhes corrija os excessos e os exageros, falta-lhes a acção moderadora e de equilíbrio, que é a principal função que a mulher desempenha numa família, incluindo o marido.
Como qualquer homem que já tenha criado uma família sabe por experiência é a mãe, mais do que o pai, que mantém a família ligada e o equilíbro da família. É ela que sabe tudo acerca de cada filho, e a informação que o pai recebe chega-lhe geralmente, não por observação directa, mas por intermédio da mãe, mesmo já depois de os filhos sairem de casa. Possuindo toda a informação relevante, a mãe pode manipulá-la, omiti-la, falsificá-la, escondê-la, sempre com o objectivo de evitar ou moderar conflitos, e manter o equilíbrio da família. Daí o enorme poder que a mulher possui na família. É a mulher que é o animal político por excelência, não o homem. Uma família pode manter-se sem um pai, mas dificilmente se manterá sem uma mãe. Por isso mesmo, em casos de separação ou divórcio, os filhos ficam geralmente com a mãe, não com o pai.
Voltando agora à primeira questão: se Deus é, em última instância, o Pai de toda a comunidade humana, quem é a Mãe? A resposta está mesmo debaixo dos olhos: a Igreja, a Santa Madre Igreja, essa mesma instituição cuja principal função na sociedade, tal como a mãe na família, é a de assegurar e manter o equilíbrio. Quer isto dizer que a Igreja Católica, como qualquer boa mãe, também faz política? Faz e não é pouca (cf. o exemplo mais recente aqui). Seria, porém, um exagero dizer que a Igreja é uma instituição política. Ela é também uma instituição divina, na realidade, ela é um equilíbrio delicado entre César e Deus.
Uma família sem Mãe tem todo o potencial para produzir, não homens, mas bestas. Por isso, não é talvez surpreendente que as maiores manifestações modernas da bestialidade humana tenham tido origem na pátria do protestantismo, o primeiro país da modernidade a rejeitar oficialmente a Mãe - a Alemanha - e tenham tido continuação naqueles outros, como a União Soviética, que também a rejeitaram.

fatherless

O Vasco Pulido Valente hoje no Público prevê que Portugal está a caminho do presidencialismo e em busca de um valor essencial - a autoridade. E faz uma prece, a de que, oxalá, tudo se passe dentro da legalidade. Eu não poderia estar mais de acordo (cf. aqui), a sociedade portuguesa anda à procura de um Pai, embora esteja céptico quanto à questão da legalidade.
A religião Católica é uma religião complexa e essa é uma das críticas que, desde o princípio, lhe foi apontada pelos protestantes - e existe certamente uma elevada complexidade na sua teologia, na sua liturgia, como até na sua doutrina social. Porém, como notou Chesterton, uma religião simples não sobrevive porque é uma religião falsa:
"Durante os últimos séculos assistimos à aparição de um punhado de religiões extremamente simples; de facto, cada nova religião procurou ser mais simples do que a anterior. A prova evidente de que isto é assim, reside não tanto no facto de essas religiões, em última instância, se terem mostrado estéreis, como no facto de demorarem tão pouco tempo a desaparecer" (cf. exemplos recentes aqui).
E acrescenta:
"Existe algo que liberalmente partilham todas as escolas de pensamento consideradas liberais: e é que a sua eloquência conduz sempre a uma forma de silêncio não muito distinta da modorra ... E essa tónica é o embotamento do espírito. Em termos simples, são religiões demasiado simples para serem verdadeiras". (*)
Dizer que o catolicismo é complexo é dizer apenas metade da verdade, correndo o risco de tirar conclusões falsas baseadas numa meia-verdade. O catolicismo é também simplicidade, na realidade, o catolicismo é o equilíbrio possível e delicado entre a complexidade e a simplicidade. Quem tiver a estamina e a curiosidade para passar por entre a complexidade da sua teologia, da sua liturgia e até da sua doutrina social, até se fazer luz, chega no fim a uma mensagem, que é também um apelo, e que é de uma simplicidade desconcertante: "Comportem-se como uma família, tratem-se como irmãos, respeitem o vosso pai e a vossa mãe!".
Todo o pensamento católico e toda a sua verdade - pretendo eu - pode ser entendido, em última instância, à luz desta mensagem simples cujo paradigma é a família, e é isso que pretendo agora ilustrar. Hans Kelsen, o pai do positivismo jurídico moderno, definiu a sociedade democrática como a fatherless society, uma sociedade sem pai.
E o que é uma família sem pai? É uma família sem ordem, uma família onde os filhos, uma vez chegados à adolescência, possuem o ambiente ideal para se comportarem como meninos-mimados, para fazerem tudo aquilo que querem e lhes dá na real gana, todas as maroteiras e tropelias, fomentarem toda a indisciplina e quebrarem todas as regras porque a mãe não tem o poder (físico) para os conter. Esta é família onde os mais velhos e mais fortes podem bater nos mais novos e mais fracos, e bater-se entre si, e onde não existe ninguém capaz de os pôr na ordem. Este é o ambiente propício para realizar o ideal moderno de liberdade, em que cada um quer ser livre para fazer o que lhe apetece, incluindo restringir a liberdade aos outros. (Qualquer semelhança com a sociedade portuguesa actual pode ser entendida como mera coincidência)
Como é que um pai ausente durante muitos anos, e que subitamente regressa a casa e observa este espectáculo, vai restaurar a ordem, a disciplina, as boas maneiras e o respeito? Pela persuasão e o exemplo? Talvez. O mais provável, porém, é que tenha de desatar à bofetada.
(*) Chesterton, En Defensa de la Complejidad, in Por Qué Soy Católico, op. cit., pp. 45-46

27 fevereiro 2010

Sócrates soube mostrar carinho

O Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, dirigido pela procuradora Maria José Morgado, está a investigar as actividades da Associação Nacional de Farmácias (ANF), presidida por João Cordeiro. Escutas e buscas feitas no âmbito do processo original da Face Oculta, nomeadamente a Armando Vara, vice-presidente do BCP com o mandato suspenso, foram juntas a este inquérito, cujo objecto se desconhece.
Ontem o semanário Sol divulgou algumas intercepções feitas a Armando Vara e ao seu amigo, o empresário Lopes Barreira, que indiciam que um diploma aprovado a 23 de Julho em Conselho de Ministros (CM) foi alterado posteriormente de acordo com a versão defendida pela ANF.
Via Público

Hoje posso afirmar isso com bastante mais segurança porque José Sócrates manteve uma atenção muito especial para com o sector. Em fases decisivas, soube mostrar o carinho, o interesse e a avaliação positiva do sector.
Via Expresso

PS: No mundo nos negócios, o amor (carinho) costuma ser o polegar a roçar no indicador.

reabilitação

A ideia de domesticar uma orca é tão néscia como a de tentar reabilitar um assassino. De forma imprevisível, o “killer instinct” pode ser despoletado a qualquer momento.

psicORCAlogia

corrupção na justiça

Desconfio que, na magistratura, há pessoas a ganharem fortunas a venderem informações em segredo de Justiça.
António Barreto ao Expresso

26 fevereiro 2010

amor ao próximo ou caridade

Nenhum homem se torna uma verdadeira pessoa vivendo numa ilha deserta como Robinson Crusoé. Ele precisa dos outros para aprender com os outros, precisa dos outros para se diferenciar deles e formar a sua personalidade, precisa dos outros para realizar a sua vocação humana e divina. Daí o ênfase que a Doutrina Social da Igreja coloca na comunidade. As comunidades humanas existem, em última instância para servir a pessoa humana (Cat: 1881), e por isso cada homem "é devedor de dedicação às comunidades de que faz parte" (Cat: 1880).

Como é que se constitui uma comunidade, qual é o cimento que deve unir os membros de uma comunidade que pretenda constituir-se em bases sólidas e duradouras? A heresia protestante diz que é o interesse-próprio do indivíduo, que encontra a sua expressão nas modernas teorias contratualistas da sociedade baseadas em "O Contrato Social" de Rousseau. Adam Smith, o pai do liberalismo económico moderno, e contemporâneo de Rousseau, exprimiu a ideia na frase que é uma das mais citadas da sua obra: "Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos seus próprios interesses. Apelamos não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos das nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter."
A Igreja Católica, pelo contrário, afirma que é o amor - o amor cristão ou caridade. E podia invocar, a este respeito, a primeira e mais importante das comunidades humanas - a família - que é fundada no amor, e não no interesse-próprio. Indo mais além, e perguntando ao padeiro de Adam Smith porque é que ele trabalhava e produzia pão, a resposta mais provável é a de que tinha lá em casa uma família para sustentar.
Não é possível fundar uma família sobre o interesse-próprio, e talvez por isso é que Adam Smith nunca fundou nenhuma. Nem Rousseau, apesar de ter tido cinco filhos. Na realidade, que interesse-próprio é que pode ter um pai em sustentar cinco filhos, anos a fio até eles se tornarem adultos? Nenhum. Por isso é que Rousseau não sustentou os seus, menos ainda a mãe deles, abandonando-os um a um, à medida que foram nascendo, à porta de uma instituição que cuidava de crianças pobres.
Nenhuma comunidade, a prazo, sobrevive se estiver fundada no interesse-próprio, ainda que contratualizado, porque a própria decisão de permanecer na comunidade, ou não, passa a depender, a todo o momento, de um cálculo de custos e benefícios, e a denúncia do contrato uma eventualidade permanente. Nem se pode esperar que alguém cuide do bem-comum da sociedade, se a sua relação com ela assume o carácter de uma mera transacção comercial. Se o interesse próprio dos fumadores de charutos prevalecer, a comunidade de Vilar de Papagaios descrita neste post vai desaparecer porque metade da sua população vai ter de emigrar para encontrar emprego.
Um homem, que seja um verdadeiro homem, e não um menino-mimado que só atende aos seus próprios interesses, reconhece que deve muito daquilo que é à família onde nasceu e às diferentes comunidades em que a sua pessoa se desenvolveu. Por isso, ele deve dedicação à comunidade, incluindo o dever de a proteger, porque a comunidade é, em primeiro lugar, um espaço de protecção recíproca. Um homem protege a sua mulher, e ela a ele, não por interesse próprio, mas por amor, e é ainda por amor que ambos protegem os filhos, e o irmão mais velho protege o irmão mais novo. O amor romântico, o amor paternal e maternal, o amor fraternal são aqui manifestações do amor cristão ao próximo, ou caridade.
Existe por isso um imperativo por parte de todos os homens de Vilar de Papagaios, e mais geralmente de todos os portugueses, para encontrarem uma solução que proteja o Sr. João, e mais a outra metade da população ameaçada pela importação mais barata de charutos da China. Para protecção imediata da comunidade de Vilar de Papagaios, e mais remotamente da própria comunidade portuguesa. Esse imperativo não resulta de qualquer cálculo económico baseado no interesse-próprio, mas daquele que é o valor cristão supremo, logo a seguir ao valor da vida - o amor ao próximo, ou caridade.


Pêndulo


Num post anterior defini aquilo que na minha opinião constitui a essência do Catolicismo - equilíbrio. Trata-se do equilíbrio entre uma multiplicidade de extremos opostos, uma conciliação permanente entre todos os extremos e todos os opostos, um balanço delicado que, quando é perturbado, desencadeia as suas próprias forças correctoras. A Doutrina Católica é uma espécie de força invisível, semelhante à força da gravidade, que permite ao pêndulo oscilar livremente, mas que a todo o momento o puxa para a posição de equilíbrio.

Esta acção moderadora da Igreja entre extremos opostos, uma espécie de equilibrador automático, deixa às sociedades de tradição católica uma tendência para a oscilação, uma variabilidade ou variância, uma tendência para o exagero, que não está presente nas sociedades sujeitas à influência protestante. Mas, ao mesmo tempo, confere-lhes uma capacidade espontânea para voltarem ao equilíbrio que as sociedades a protestantes não possuem. (Por outras palavras, apesar dos seus exageros, nunca virá mal ao mundo de um país de tradição católica. Mas de um país sujeito à influência protestante pode vir, na realidade, já veio, e por mais de uma vez)

Nas sociedades de tradição protestante, onde a Igreja Católica não é uma instituição central, certos comportamentos que representam excessos, vícios ou exageros não podem ser tolerados, sob pena de a sociedade ficar em risco e, no limite, se desmoronar. Daí a tradição proibicionista do protestantismo, que visa limitar as oscilações do pêndulo dentro de limites bem definidos. Pelo contrário, na tradição católica, o pêndulo pode oscilar livremente entre os seus extremos, porque a acção invisível, mas moderadora da Igreja Católica, está lá para o trazer de volta à posição de equilíbrio. O mais provável é que, com o balanço, o pêndulo oscile então até ao extremo oposto, mas a Igreja lá estará então de novo para o trazer de volta.

A história dos países católicos, como Portugal e Espanha, é disto o exemplo acabado. São capazes do melhor e do pior. Por exemplo, nos últimos cem anos, à liberdade da Primeira República, que foi levada ao extremo da libertinagem, seguiu-se a autoridade de Salazar, que também foi levada ao extremo; e a esta seguiu-se a liberdade saída do 25 de Abril, que agora também está a ser exagerada. A mão invisível do catolicismo, porém, estará lá mais uma vez para puxar o país para a posição de equilíbrio, a qual envolverá inevitavelmente menos liberdade e mais do seu oposto - autoridade.

Eu não estou certo de saber como é que a Igreja Católica consegue operar este milagre. Mas que ele existe, existe, e eu próprio sou uma das suas manifestações. Se há vinte anos me tivessem perguntado se eu alguma vez me veria na posição de defender convictamente as posições da Igreja Católica como remédio para os males da sociedade portuguesa, eu teria respondido com um rotundo Não. E, no entanto, é o que se vê.

chico fininho

A ideia do jovem gestor terá tido óptimos resultados. Rui Soares, que tinha o pelouro do imobiliário na PT e a representava na Taguspark SA, recorda que estava a renegociar os contratos de arrendamento quando deu a primeira entrevista sobre a Cidade PT. Logo a seguir, garante, conseguiu que os senhorios [receosos de perder um cliente de peso] baixassem as rendas, nalguns casos em 50 por cento, com poupanças de milhões de euros anuais para a empresa.
O lançamento deste plano passou por uma entrevista ao Diário Económico em 31 de Outubro de 2007, onde Rui Soares anunciava que queria concentrar seis mil trabalhadores da PT num único local. Entre as opções estavam "a zona da Expo e o Taguspark" e o contrato deveria estar fechado no primeiro trimestre de 2008.

Via Público

Será legal que uma empresa cotada em bolsa divulgue uma estratégia falsa para manipular o mercado imobiliário? Mercado onde estão investidas outras empresas cotadas e particulares que têm muito a ganhar ou a perder com essa manipulação.
Não sendo jurista, tenho sérias reservas sobre este comportamento.

Growth in a Time of Debt

We study economic growth and inflation at different levels of government and external debt. Our analysis is based on new data on forty-four countries spanning about two hundred years. The dataset incorporates over 3,700 annual observations covering a wide range of political systems, institutions, exchange rate arrangements, and historic circumstances. Our main findings are: First, the relationship between government debt and real GDP growth is weak for
debt/GDP ratios below a threshold of 90 percent of GDP. Above 90 percent, median growth rates fall by one percent, and average growth falls considerably more. We find that the threshold for public debt is similar in advanced and emerging economies. Second, emerging markets face lower thresholds for external debt (public and private)—which is usually denominated in a foreign currency. When external debt reaches 60 percent of GDP, annual growth declines by about two percent; for higher levels, growth rates are roughly cut in half. Third, there is no apparent contemporaneous link between inflation and public debt levels for the advanced countries as a group (some countries, such as the United States, have experienced higher inflation when debt/GDP is high.) The story is entirely different for emerging markets, where inflation rises sharply as debt increases.

Artigo de Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff (2010). Ver texto completo aqui (PDF)

25 fevereiro 2010

Encíclicas sociais

A Doutrina Social da Igreja está exposta nas seguintes Encíclicas e documentos conciliares:

Leão XIII, Rerum Novarum (1891)
Pio XI, Quadragesimo Anno (1931)
Pio XII, La Sollenità della Pentecoste (1941)
Pio XII, Benignitas et Humanitas (1944)
João XXIII, Mater et Magistra (1961)
João XXIII, Pacem in Terris (1963)
Paulo VI, Ecclesium Suam (1964)
Concílio Vaticano II, Dignitatis Humanae (1965)
Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (1965)
Paulo VI, Populorum Progressio (1967)
Paulo VI, Octogesima Adveniens (1971)
Sínodo dos Bispos, Convenientes ex Universo (1971)
Paulo VI, Evangelii Nuntiandi (1975)
João Paulo II, Redemptor Hominis, nº 8-17, 1979
João Paulo II, Dives in Misericordia, nº 5-6 e 10-12, 1980
João Paulo II, Laborem Exercens, 1981
João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, 1987
João Paulo II, Centesimus Annus, 1991
Bento XVI, Dignitate in Veritate, 2008

de baixo para cima

Apesar de se afirmar Católica e ambicionar, portanto, o estabelecimento de uma comunidade mundial, não é na comunidade mundial que a Igreja coloca a sua ordem de prioridades. Pelo contrário, é naquela comunidade que se encontra no polo oposto do espectro comunitário em termos de extensão, a mais pequena de todas as comunidades humanas - a família - e é a partir daí e por ordem decrescente de importância que ela chega à comunidade universal.

A seguir à família vêm as associações (culturais, recreativas, assistenciais, religiosas, desportivas, profissionais, incluindo os sindicatos) as empresas, as cooperativas, as instituições de crédito mútuo, as corporações e só em último lugar o Estado. Em termos de organização política a comunidade preferencial da Igreja é também a mais pequena - a freguesia -, seguindo-se por ordem decrescente de preferência, o município, a região, a nação, o continente (v.g., União Europeia) e só em último lugar o mundo. Neste sentido, a opção preferencial da Igreja é a de que as comunidades humanas se organizem segundo um processo de bottom up, porque a casa universal que ela pretende realizar, como qualquer outra casa, constrói-se de baixo para cima, e não a começar pelo telhado.

Esta opção preferencial pela pequena comunidade e pela pequena instituição encontra a sua raiz no personalismo católico e no fim transcendental do homem, ao serviço do qual estão todas as comunidades humanas sem excepção. Na família cada ser humano tem um peso e é importante; no outro extremo, na comunidade mundial, o seu peso e a sua importância tendem a desvanecer-se.

À parte a família, que é uma comunidade natural, e a própria Igreja que é uma comunidade de origem divina, é importante salientar que a Igreja não tem instituições ou arranjos institucionais a propor, deixando essas matérias às próprias comunidades, em função das circunstâncias específicas de cada uma e das suas tradições, e estimulando neste âmbito a própria criatividade humana. Aos olhos da Igreja, as construções humanas são sempre precárias e efémeras e, por isso, também neste domínio, não existem soluções universais e permanentes.
A este propósito, uma menção especial é devida às corporações. Em Portugal, o pensamento social da Igreja tem sido frequentemente associado ao Estado corporativo mas esta associação é, em parte, abusiva. No início dos anos 30 quando a crise económica e financeira atingia o seu auge e a luta de classes se exprimia aleatoriamente nas fábricas, nas ruas, e até no aparelho do Estado, o Papa Pio XI publicou a Encíclica Quadragesimo Anno (1931) onde acolheu favoravelmente a ideia da instituição corporativa como meio de resolver a chamada Questão Operária, a luta entre operários e capitalistas. Esta instituição, congregando as organizações sindicais e patronais, seria a casa de família onde num ambiente pessoalizado e face-a-face as duas facções desavindas melhor poderiam resolver os seus diferendos, em lugar de o fazerem na rua ou em instituições que não estavam vocacionadas para isso, como as empresas ou o Estado.
A ideia é eminentemente razoável. Parece ser mais fácil resolver os problemas entre duas partes quando elas se encontram, se conhecem e partilham uma casa comum, do que na adversidade impessoal de quem não se conhece e não pode, por isso, ser sensível aos argumentos da outra parte e ter simpatia por ela. Salazar, que na altura estaria a preparar a Constituição de 1933, aproveitou a ideia e construiu o Estado Novo assente nas corporações e como um Estado corporativo. Porém, logo que a questão operária foi ultrapassada após a Segunda Guerra nunca mais a Doutrina Social da Igreja falou em corporações, porque as circunstâncias não mais as exigiam. Em termos de princípios, a Igreja não tem preferência nenhuma por um qualquer tipo de organização política de uma nação.
Aquilo que ressalta da Doutrina da Igreja é uma preferência em ver todos os processos sociais devidamente enquadrados institucionalmente, em lugar de os deixar em roda livre. Não será exagerado dizer que, por cada processo social (como a luta de classes ou o mercado), a Igreja recomenda uma instituição, seja para o enquadrar, seja para o controlar, e a preocupação é sempre a mesma - a de o pessoalizar e a de responsabilizar alguém pelos seus resultados.

FEP

A faculdade de economia da UP tem toque. Digamos que tem um toque criativo que a diferencia das suas congéneres. Ao ponto de ser uma falta de rigor falarmos de congéneres, tanto a FEP se demarca.
Em primeiro lugar pela quantidade de alumni que formou enformou. Dizem que mais de cinquenta gerações de licenciados, o que nos remete directamente para a antiguidade clássica.
Em segundo lugar pelo empenho empenhado do corpo docente, os “docentes que asseguram a docência”, os “coordenadores que coordenam” a “actividade quotidiana do Grupo”, que “dada a sua elevada dimensão está dividido em secções”, cada uma com o seu próprio graduado, ou coordenador.
Em terceiro lugar pelo desenvolvimento de mercado que operou, em particular com o Doutoramento em Estudos Africanos.
Por fim, pelo modo assertivo como soube recorrer à inteligência artificial para estudo de sistemas inteligentes (Grau de Mestre). Programa que, apesar de estar um pouco desenquadrado da escola, pode contribuir para nos ajudar a resolver os graves problemas económicos do País. Problemas que, com a simples inteligência que Deus nos deu, parecem cada vez mais difíceis de resolver.
O Observatório de Economia e Gestão de Fraude, a que dediquei ontem um post, é uma evolução natural do interesse por África.
Bem hajam.

ainda o equilíbrio

Na questão que o Pedro Arroja coloca neste post – o equilíbrio necessário à boa ordem e à harmonia social – reside o drama essencial de toda a organização política. Infelizmente, não existem mais do que duas alternativas ao estabelecimento dessa ordem: confiá-la à organização política, o mesmo é dizer ao estado e ao governo, ou esperar que ela resulte da livre interacção entre os homens. O primeiro caminho conhece várias graduações, que vão da planificação total da ordem social à intervenção correctiva dos alegados “desvios” de mercado. Mas, a experiência e a história demonstram-nos que a tendência natural do poder e da soberania é a invasão, e que o equilíbrio entre o público e o privado dificilmente se mantêm ou revertem em favor deste último. O segundo caminho não é, também, isento de escolhos e dificuldades. Todos sabemos que o mercado não cria um reino universal de felicidade e que frequentemente as pessoas sofrem as consequências de más decisões (próprias ou de terceiros). Este facto decorre da nossa humanidade e da natureza do mundo em que vivemos, e sobre isso não há muito a fazer. A questão, a meu ver, reside em saber qual dos dois caminhos – apesar das ineficiências de cada um – é mais justo e capaz de promover um nível maior de prosperidade, de oportunidades e de felicidade. Não hesito em responder em favor do segundo. E a história recente do nosso país creio que me dá razão.

O Pedro tem-se inclinado, penso que o interpreto devidamente, para a introdução correctiva da Igreja Católica, da sua organização, da sua cultura civilizacional e das suas regras, na sociedade portuguesa, que ela, em boa medida, ajudou a formar. Eu acho que o Pedro tem razão e que Portugal e os portugueses só poderão beneficiar da sua existência e da sua intervenção social. Aliás, a Igreja foi sempre – hoje menos que no passado – uma instituição correctiva das ineficiências naturais do mercado e da incapacidade ou dos excessos do estado: na educação, na assistência social, na cultura e em tantos outros domínios onde a sociedade não se bastava e o estado não se importava ou tratava mal. Mas, para que a Igreja possa desempenhar essas e outras funções, há que reduzir as funções do estado e reconduzi-lo à sua estrita dimensão política. Se o Pedro reparar, o que levou à perda de protagonismo da Igreja na vida social foi o estado e não a comunidade. Foi o estado que lhe retirou ou diminuiu a intervenção no ensino, na assistência aos mais pobres e aos necessitados e mesmo até na cultura. Os estados modernos viram na Igreja um inimigo da sua soberania e atacaram-na por isso. Não exactamente da sua soberania política – assunto de há muito resolvido – mas do seu estatuto enquanto ordenador social que, de facto, a Igreja desempenhava e substituía em muitos aspectos, e que o estado queria ocupar. A tendência natural do estatismo é reduzir ao máximo a pluralidade social à soberania. A Igreja Católica não é uma instituição pública que tenha nascido dos poderes públicos, mas da comunidade e dos homens que a integram, e, por consequência, carece de pouco estado para poder desempenhar a sua missão. Até por isso, a necessidade social mais premente dos nossos dias consiste em reduzir substancialmente a dimensão da soberania e a capacidade de intervenção social dos estados contemporâneos. Só assim as instituições sociais – e a Igreja Católica é uma delas, sem dúvida, a mais importante – poderão sobreviver.

Equilíbrio

É claro que a Igreja Católica não pode aceitar, sem mais, o argumento dos economistas em favor do comércio livre, que expus no post anterior. Ele esquece o conceito católico de comunidade, passa por cima do princípio católico da personalidade e dispensa a ideia católica de autoridade.
Mas então, em nome de uma massa anónima de portugueses poder agora comprar charutos ao preço de 7, em lugar de 10, vamos deixar ir à falência uma série de empresas nacionais, e lançar no desemprego o Sr. João mais metade da população de Vilar de Papagaios, onde a produção nacional de charutos está concentrada?
Mais devagar. Não vale a pena dizer que a sociedade é mais importante que o senhor João, porque a Igreja não aceita esse argumento, que é um argumento protestante. Na realidade, afirma o princípio oposto, o de que o Sr. João é mais importante do que a sociedade (neste princípio assenta, largamente, a ideia de liberdade católica).
O Sr. João corre o risco de ser despedido porque ele e os seus colegas não conseguem produzir charutos a um custo mais baixo do que 7 euros por unidade, como fazem os chineses. Isso é um facto, mas não esgota a verdade. O Sr. João tem 52 anos e uma família a sustentar, não há grandes oportunidades de emprego em Vilar de Papagaios, o Sr. João trabalha há 30 anos na indústria dos charutos, em parte fez-se homem lá, casou com uma colega da empresa, aprendeu lá a disciplina do trabalho e o respeito pelas hierarquias, e hoje ele próprio é chefe e um profissional respeitado por todos. Além disso é membro dos Bombeiros Voluntários, organiza jogos de futebol para a gaiatada, dá sempre um dinheiro para a paróquia ajudar os pobres. Vamos deixar que o Sr. João passe agora os dias no banco do jardim, sem estima e sem ser estimado, mesmo a receber o subsídio de desemprego, para a sociedade poder comprar os charutos mais baratos?
Não, não pode ser assim, tem de se encontrar outra solução, nem que demore algum tempo, mas esta de, de um momento para o outro, pôr o Sr. João no desemprego, mais a outra metade da população de Vilar de Papagaios, é que não pode ser. Para já, aquilo que há a fazer é exigir da autoridade que proiba a importação de charutos estrangeiros.
Perguntar-se-à, neste momento, se a Igreja Católica é a favor do proteccionismo e contra o comércio livre. Não. Em todos os documentos da Doutrina Social da Igreja, desde a Encíclica Rerum Novarum (1891) do Papa Leão XIII, eu não encontrei, e julgo que não existe, uma única instância onde a Igreja defenda explicitamente o proteccionismo económico. Então qual é a solução católica para este problema dos charutos? Um compromisso, uma solução de equilíbrio, uma solução que dê tempo ao tempo, mas que não seja a solução desumana dos economistas. Tem de ser uma solução que ponha em primeiro lugar o Sr. João, e todos os seus conterrâneos que se dedicam à produção de charutos, que o avalie não apenas pela sua produtividade a produzir charutos, mas nas múltiplas dimensões do homem que ele é (um bom pai, um homem sério e respeitado, um chefe justo e inspirador, sempre pronto a ajudar os outros, até a criançada da terra tem uma adoração por ele). A comunidade tem de fazer alguma coisa por ele.
Não, a Igreja não é proteccionista nem livre-cambista. A Igreja é em favor de soluções de equilíbrio, e de soluções de equilíbrio que, dependendo das circunstâncias concretas de cada caso, respeitem os princípios teológicos da Igreja. Equilíbrio - esta é a palavra-chave que descreve a essência da Igreja Católica como instituição, e sobre a qual eu gostaria de elaborar, deixando a procura de uma solução de equilíbrio para a questão dos charutos aos habitantes de Vilar de Papagaios e a todos os outros que, no país, são afectados pelo problema. São eles quem, conhecendo as circunstâncias concretas, mais capacitados estão para encontrar a solução.
Imagine uma rocha ou uma pedra muito grande e com muitas faces, portanto também com muitas arestas e com muitos vértices. Imagine, em seguida essa pedra erecta, assente sobre um dos seus vértices. É uma posição de equilíbrio muito difícil de atingir e de manter, mas ainda assim possível. Um homem que se aproxime de um dos lados e lhe dê um sopro, ainda que delicado, numa face e a pedra cairá para o outro lado. Para que tal não aconteça é necessário que em posição exactamente simétrica, um outro homem lhe dê um sopro com igual delicadeza para manter a pedra de pé. Imagine agora muitos homens a fazer como o primeiro e outros tantos a fazer como o segundo, e a pedra sempre de pé, apenas assente sobre um dos seus vértices. Um pequeno descuido, uma pequena força a mais de um dos lados, e a pedra cai.
É esta a imagem da Igreja Católica - e, no entanto, ela nunca caiu -, um equilíbrio delicado entre uma infinidade de forças opostas, entre o bem e o mal, a igualdade e a diferença, a autoridade e a anarquia, o homem e a comunidade, a liberdade e a escravidão, o amor e o ódio, o egoísmo e a caridade, o preto e o branco, a inovação e a tradição, o crente e o ateu, a verdade e a mentira ... entre Deus e o diabo. A Igreja Católica é uma instituição extraordinária, a mais extraordinária instituição que a humanidade jamais conheceu.


Os factos

No paradigma da ciência moderna, incluindo a Economia, só conta aquilo que se vê - os factos. Esta atitude conduz a erros extraordinários e os danos que produz estão hoje aí à vista de todos em Portugal. Refiro-me, por exemplo, às alegadas vantagens do comércio livre, uma ideia que está na base do espaço económico europeu e da globalização.
Consideremos uma comunidade (v.g., país) em regime de autarcia económica onde um certo número de produtores produzem um certo bem X e o vendem ao preço de 10. No mundo este bem é produzido e vendido ao preço de 7 por unidade. Deve este país abrir-se ao comércio internacional? Para a ciência económica a resposta é afirmativa.
Sob condições de comércio livre o produto passa a vender-se no país ao preço de 7. Os consumidores beneficiam. Quanto aos produtores nacionais, uma parte deles vai à falência (todos aqueles que produzem o bem a um custo unitário superior a 7), ficando apenas a outra parte (aqueles que o produzem a um custo unitário inferior a sete). A diferença entre a procura e a oferta ao preço do mercado é abastecida agora por produtores estrangeiros.
Os consumidores nacionais ganham com a abertura do mercado, e o seu ganho é medido pelo acréscimo do chamado excedente do consumidor, a medida de bem-estar dos consumidores (*). Os produtores nacionais perdem com a abertura do mercado e a sua perda é medida pela redução do chamado excedente dos produtores, a medida de bem-estar dos produtores. (**) Prova-se - o que evitarei fazer aqui - que, com a abertura do mercado, o bem-estar social, medido pela soma do excedente dos consumidores com o excedente dos produtores, aumenta (o acréscimo do excedente dos consumidores resultante da abertura do mercado é maior do que a redução do excedente dos produtores nacionais). Portanto, a abertura ao comércio livre é boa para o país porque aumenta o bem-estar da sociedade.
Antes de comentar mais detalhadamente este argumento - o que farei no próximo post - eu gostaria de dizer como reagiria perante um economista que me o apresentasse, caso eu fosse um dos trabalhadores nacionais lançados no desemprego, em resultado da abertura do país ao comércio internacional. Diria assim:
-Olhe, então traga-me lá a sociedade para eu lhe perguntar se ela se sente, de facto, melhor com o regime de comércio livre...
E o cientista-economista moderno, para quem a verdade reside nos factos, seria incapaz de produzir um único facto para substanciar a sua tese, porque a sociedade - sendo um ideia e não uma pessoa - não iria comparecer à chamada.
(*) O excedente do consumidor é a diferença entre o preço máximo que ele estaria disposto a pagar por um bem e o preço que efectivamente paga no mercado. Eu hoje tomei um café e paguei 65 cêntimos. Se o vendedor me tivesse cobrado 85 cêntimos eu teria tomado o café na mesma. Até um euro não me importava de pagar, valor a partir do qual passaria a tomar o café em casa. O meu excedente de consumidor foi de 35 cêntimos. O excedente do consumidor é a medida do benefício que o consumidor obtem numa troca livre no mercado.
(**) O empresário acima só me vendeu o café a 65 cêntimos porque ele lhe custa menos de 65 centimos a produzir (v.g., 50 cêntimos). O excedente do produtor foi neste caso 15 cêntimos. O excedente do produtor é a diferença entre o preço do mercado e o custo marginal de produção, e é a medida de bem-estar dos produtores nas trocas livres do mercado. Aproxima a ideia de lucro, ou de mais-valia na terminologia marxista, embora seja diferente de ambas.

o Estado de cócoras

Quando o Estado está de cócoras, perante as agências de rating, os grandes bancos internacionais, os hedge funds, o FMI, etc., JCR, na sua habitual crónica humorística ataca, logo de início, com a seguinte "punch line":
Agora que o Estado interventivo regressou ao discurso e à prática política...
ahahahahahah

o exemplo vem de cima

Há ainda outra coisa que podemos fazer para ajudar a corrigir os nossos problemas: reduzir o consumo, sobretudo de produtos importados, em particular automóveis. A redução de importações diminui directamente o nosso défice externo e abranda o crescimento da dívida externa, que já deverá rondar os 110% do PIB. Temos um excesso de consumo e estamos no topo em termos de posse de automóveis, em flagrante contradição com os nossos magros rendimentos. A redução na compra de automóveis nem sequer se tem de traduzir em grandes perdas de bem-estar: poderá resumir-se a adiar a troca de automóvel.
Haverá quem fique horrorizado com esta proposta, porque só olha para os efeitos directos e de curto prazo, lidos de acordo com um livro de texto "chapa 5". Só que nós não estamos perante as condições em que se aplicam as condições "chapa 5". Estamos perante circunstâncias em que a diminuição dos nossos défices público e externo se traduz em significativas melhorias das nossas condições de financiamento, melhorando as nossas contas públicas e as nossas possibilidades de crescimento.

Pedro Braz Teixeira, no JN
PS: O sábio conselho do PBT vai permitir, com os sacrifícios que nos propõe, que o Estado continue a dispor do nosso dinheiro para manter uma frota de automóveis topo de gama, que dignifique as funções de representação.

quem é você?

“Eu não quero ser mal-educado, mas para dizer a verdade você tem o carisma de uma serapilheira húmida e a aparência de um pequeno empregado de banco”, disse Nigel Farage, acompanhado pelas vaias dos seus pares durante uma sessão em Bruxelas.
“Quem é você? Nunca ouvi falar de si, ninguém na Europa ouviu falar de si”, acrescentou. “Você vem da Bélgica, que é um não-país”.
Farage referiu ainda que a Grécia, que se depara com uma grave crise financeira, foi reduzida "a pouco mais do que um protectorado” depois que Rompuy assumir o cargo.
Via Público
PS: "Dizem-lhes a verdade e eles pensam que é um insulto".

24 fevereiro 2010

O Zezé

Só visto. Em breve pode chegar cá e, tal como os gregos, nós faremos um grande favor aos alemães e à UE se eles nos derem dinheiro para nos salvar da bancarrota. Consequências não pretendidas do personalismo ortodoxo e católico - a atitude do credor permanente, todos nos devem e ninguém nos paga. É até duvidoso que o mundo pudesse existir sem cada um de nós.
Aquela de acusar os italianos de andarem a cozinhar os números faz lembrar o puto da escola que, depois de ser apanhado a fazer uma maroteira, aponta para o colega do lado e diz: "Professora, o Chiquinho também fez!". Igual só quando o Paulo Rangel foi recentemente ao Parlamento Europeu denunciar o teor das conversas escutadas ao primeiro-ministro: "Professora, o Zezé anda a dizer maldades ao telefone!".


está no futuro

Antes de analisar o modo de funcionamento, e as instituições, de uma socieconomia de tradição católica, eu gostaria de voltar a um ponto que abordei brevemente aqui, e que me foi sugerido por uma passagem num livro de Joseph Ratzinger publicado originalmente em 1968 (Introduction to Christianity, op. cit.). Trata-se da alteração do paradigma medieval "verum est ens" (a verdade está no ser) para o paradigma moderno "verum quia factum" (a verdade está nos factos).

O primeiro passo nesta alteração foi dado por Descartes, o racionalista: "A verdade está no intelecto" (Cogito ergo sum). Veio depois David Hume, o empiricista: "A verdade está nos factos". Finalmente, Kant fez a síntese: "A verdade está nos factos depois de filtrados pelo intelecto".

Antes de descrever algumas das mais importantes consequências desta alteração de paradigma, volto a um tema recorrente dos meus posts, que é o da pergunta que Pilatos colocou a Cristo ("Que é a verdade?"), uma pergunta colocada de chofre e sem esperança de obter resposta, uma pergunta marota, feita ao jeito de "Vê lá se te aguentas com esta". Cristo não respondeu, mas, se o tivesse feito, a resposta teria muito seguramente sido: "Eu" ("A verdade está no ser", no Homem).
Pilatos não era um mau homem, na realidade, ele possuía até algumas das características do homem moderno. Não apenas se comportou como um moderno democrata quando entregou cRisto ao julgamento da multidão dos fariseus, como também possuía a marca distintiva de um intelectual moderno. Ele estava intimamente convencido de que Cristo estava inocente. A sua própria mulher o avisou que tivera um sonho e que ele não deveria condenar aquele Homem. Mas ele precisava de factos ("A verdade está nos factos"). E Cristo não lhos deu.
Esta mudança de paradigma teve várias consequências. Uma delas foi a de conferir um estatuto importante aos intelectuais porque são eles que decidem a verdade: a figura do intelectual é uma criação da modernidade. Mais importante, porém, esta alteração de paradigma conduziu ao desenvolvimento das ciências naturais e das chamadas ciências do homem. Daqui resultou, em particular, o historicismo, porque é na história que se encontram os factos; e a teoria da evolução de Darwin não é senão mais uma manifestação desta nova atitude em relação à verdade. O homem passou a ser estudado sobretudo no seu aspecto exterior - porque a alma não é um facto observável -, e isso contribuiu para degradar a pessoa humana, substituindo o personalismo católico, onde todos são diferentes, pelo individualismo moderno, onde todos são iguais. De facto, vistos de fora, todos os homens possuem uma cabeça, dois braços, dois olhos e duas pernas.
Até que chegou Marx e, antes dele, Hegel. A verdade está nos factos, portanto na história. Antes de estabelecer as suas previsões acerca do capitalismo, o próprio Marx fez um estudo histórico exaustivo acerca das relações de produção. Porém, para um intelectual, é certamente frustrante ficar a contemplar of factos da história, como se estivesse a contemplar as peças de um museu. Que tal se ele próprio fizer os factos, e em lugar de ser um espectador do passado se tornar o seu principal actor no futuro? Nas palavras do próprio Marx "Até agora os filósofos interpretaram meramente o mundo de várias maneiras; é necessário mudá-lo". A verdade passa a estar no fazer ("verum quia faciendum"). Surgem as ideologias e a ideia de progresso: a verdade está no futuro. O pensamento concreto, do aqui e do agora, cede o passo ao pensamento abstracto, do distante e do futuro.
E tudo isto se passa perante a incredulidade da Igreja Católica que continua a afirmar que a verdade está no homem ("verum est ens") que é uma realidade concreta, e a maior de todas elas. Sendo assim, a Igreja não pode ter consideração por qualquer forma de engenharia social ou humana, que pretenda formatar a sociedade ou o homem, substituindo-se a Deus, porque ela não está orientada para o homem, mas para factos que são produtos do próprio homem e estão sujeitos ao erro e às ambições humanas.
A Igreja, não pode, mais, aceitar como boas as tentativas de construção de modelos sociais abstractos, em que o critério de bondade é a maximização do bem-estar social, como acontece na ciência económica convencional, porque o homem não é uma entidade abstracta, nem a sociedade o seu fim último, e é isso que procurarei ilustrar no meu próximo post. Pelo contrário, cada homem é uma realidade concreta e é ele o fim último da sociedade. Até há cerca de vinte anos, a Enciclopédia Católica afirmava que os Papas não precisavam saber Economia. Na altura, a afirmação chocou-me. Hoje, nem tanto, mesmo depois de ter sido suprimida.

à espera de quê?

A disponibilidade apresentada por Marcelo Rebelo de Sousa para se candidatar à chefia do PSD, na sequência da derrota de Setembro último, não provocou a vaga de fundo que o professor esperaria. A intenção de “unir o partido”, condição por ele posta para avançar, não suscitou interesse por aí além. Daí que seriam necessárias duas condições para que essa intenção de liderança se pudesse manter e ser bem sucedida: evitar a eleição directa do líder sem debate interno prévio que permitisse o surgimento de uma alternativa à candidatura de Passos Coelho; e provocar um facto político que provocasse a sensação de união em torno de Marcelo. O primeiro requisito foi assegurado por Pedro Santana Lopes e pela Direcção actual do partido, um e outros pouco interessados numa vitória de Passos, ao conseguirem enxertar um congresso extraordinário antes da eleição. A segunda condição resultará da eventual desistência de Paulo Rangel e de José Pedro Aguiar Branco em favor da candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa, como já começa a ser falado por fontes próximas dos dois candidatos. O efeito de um congresso pré-eleitoral que corra mal a Passos e bem a Marcelo, e da desistência de dois dos três candidatos em jogo, ainda por cima desavindos entre si, será mais do que suficiente para levar Marcelo Rebelo de Sousa à presidência do partido e à chefia do governo português num breve prazo de tempo. É isto que o PSD quer e é esta esperança que Marcelo está a deixar crescer ao, entre outras coisas, não ter ainda propositadamente definido o seu futuro vínculo à TVI, situação que anunciou que só resolveria depois do congresso do PSD. Está à espera de quê?

uma família universal

Chegado a este ponto, é altura dea perguntar o que é que há de essencial, ou chave, na Doutrina Social da Igreja, qual a ideia-base, ou paradigma, a que um economista ou sociólogo se pode agarrar para construir uma verdadeira doutrina ou ciência económica do catolicismo?

A questão não é sem importância. A ciência económica prevalecente é uma ciência protestante. Teve origem em Adam Smith, com a publicação de A Riqueza das Nações (1776) na presbiteriana, e muito anti-católica, Escócia. Adam Smith foi influenciado pelo seu amigo (e, na minha opinião, lover) David Hume, considerado o primeiro filósofo ateu. Smith é tido como o primeiro liberal moderno. Substituindo o personalismo católico pelo individualismo protestante, ele pôde olhar para o mercado como um processo de massas; e mais, provar que este processo impessoal promovia o bem da sociedade, sem necessidade de qualquer intervenção humana, ou sequer divina. É a célebre mão-invisível. Bastava que cada homem fosse deixado livre para prosseguir os seus próprios interesses.

Nesta heresia protestante, que é a ciência económica moderna baseada no mercado, a autoridade não é precisa para nada, nem sequer a autoridade de Deus, menos ainda a do seu representante na Terra, o Papa. Cada homem é despido das suas características peculiares - a sua personalidade - e torna-se igual aos outros; na realidade, as leis do mercado verificam-se com tanto mais precisão quanto mais os homens forem iguais uns aos outros. E, finalmente, perde-se todo o sentido católico de comunidade; cada homem passa a ser uma ilha, um átomo da sociedade; e racionalmente assim, porque se cada homem é igual aos outros, o que é que ele pode dar aos outros, ou receber deles, em resultado de uma vida partilhada em comunidade? Nada - excepto, talvez, o benefício económico - porque ninguém ambiciona viver em comum com alguém que seja igual a si próprio.

Removendo a autoridade, o personalismo e o comunitarismo católico, a ciência económica moderna permaneceu estranha - na realidade, adversa -, à tradição católica. Não existe um único Prémio Nobel da Economia oriundo dos países predominantemente católicos do sul da Europa e da América Latina. A maioria são americanos (34), depois vêm os ingleses (8), a seguir os noruegueses (2) e os suecos (2), existe um alemão, um holandês, um russo, um israelita e um francês. Não há um espanhol, um italiano, um português, um brasileiro, um argentino.

A situação não é de todo incompreensível, e menos ainda injusta. Os economistas dos países católicos têm mais dificuldade em sobressair em quadros culturais e de pensamento que, sendo protestantes, lhes são estranhos. Depois, e mais importante, em lugar de desenvolverem uma doutrina ou ciência económica assente na sua tradição católica, eles incorrem no vício muito católico de passarem a vida de nariz no ar a ver o que é que se passa lá fora, a admirar e a tomar como verdade tudo o que é estrangeiro, em lugar de se concentrarem - desprezando ao mesmo tempo -, tudo aquilo que lhes pertence e é das suas tradições.

Veja-se, por outro lado, o que está a acontecer na zona Euro. A teoria económica que presidiu à União Monetária é a única teoria económica que existe, a convencional e de tradição protestante. Porém, os países que nessa União agora estão em aflições são os PIIGS - Portugal, Irlanda, Itália, Espanha, todos católicos, mais a Grécia, cuja tradição ortodoxa é muito próxima da católica e igualmente personalista. (*) Não surpreende. A União Monetária está assente numa racionalidade económica que é totalmente estranha à tradição católica.

Voltando agora à questão inicial: existe alguma ideia-chave, algum paradigma, a que um economista ou sociólogo se possa agarrar para construir uma teoria económica (ou socioeconómica) do catolicismo?.

O catolicismo assenta na ideia de comunidade, uma comunidade que está ao serviço da pessoa humana, mas à qual, por seu turno, o homem deve respeito e, em certos casos, obediência. O cimento dessa comunidade é o amor ou caridade cristã que é o valor supremo do catolicismo. Outros altos valores são defendidos num patamar logo a seguir - como a igualdade, a liberdade, a autoridade, a justiça, a solidariedade, a personalidade - que, possuindo o potencial para entrarem em conflito, só podem conviver através de um delicado equilíbrio.

Existe alguma coisa no mundo onde confluam estas ideias e forneça alguma luz ao economista ou ao sociológo que pretenda construir uma teoria socioeconómica do catolicismo? A resposta é afirmativa. Existe. É a instituição da família. E isto devia ser óbvio porque, no fim de contas, aquilo que a Igreja Católica pretende é tornar toda a humanidade uma família universal.

Quando recentemente tive esta revelação fiquei mais tranquilo, mas ao mesmo tempo perplexo. Afinal é simples, uma teoria socioeconómica do catolicismo só tem que defender os valores, as instituições, os comportamentos e os processos que ocorrem também na família. A única diferença é que agora se trata de uma família de dez ou cinquenta milhões, no caso de um país, ou mesmo de seis mil milhões, no caso do mundo inteiro - e não de família de seis ou sete pessoas -, e isso certamente irá colocar problemas específicos. De qualquer modo, como ponto de partida de uma teoria socieconomica do catolicismo, a ideia de família é a mais simples que se poderia imaginar, porque é uma ideia perceptível por todas as pessoas. No meio de toda aquela complexidade teológica, e da aparente aridez da sua Doutrina Social, afinal o que a Igreja Católica pretende é uma coisa muito simples - construir uma família onde quer que existam pessoas.

(*) Eu tenho gracejado dizendo que os gregos são ainda piores do que nós, portugueses, porque além de uma tradição igualmente personalista que os leva a comportarem-se como meninos mimados quando o Pai está ausente de casa, cada grego está também convencido que é o Sócrates, o Platão ou o Aristóteles. Nós em Portugal só temos o Sócrates. Eles têm o Sócrates, o Platão e o Aristóteles, o que torna as coisas muito mais difíceis.


fraudicologia

Esta notícia do Público despertou-me a curiosidade para, “com elevado sentido ético e de sistemática descoberta do que desconheço”, obter informações sobre o OBEGEF.
OBEGEF significa Observatório da Economia e Gestão de Fraude. O nome, um pouco, digamos, pomposo, tem a sua razão de ser. O observatório é constituído por professores da faculdade de economia do Porto especializados em fraude.
Não comecem já a sorrir... porque estes professores não são fraudicosos, são fraudicólogos. Estudam a fraude, como um crime.
Este projecto, partindo de um grupo de economistas, de uma reputada faculdade de economia, poderia estar inquinado à partida, dada a propensão dos economistas para assaltarem a propriedade privada de modo fraudulento. Através da desvalorização da moeda, da inflação, do esbulho fiscal, dos salários mínimos, das nacionalizações, etc., tudo eufemismos para o roubo, puro e simples.
O observatório, contudo, conseguiu superar esta dificuldade epistemológica e desenvolver uma visão ecléctica e coerente. Uma visita ao site do OBEGEF elucida-nos imediatamente.

A constituição formal do OBEGEF é um ponto de partida, a partir do qual pretendemos construir o nosso futuro, atingindo os objectivos e utilizando os procedimentos que constam dos Estatutos.
Os seus membros (da OBEGEF) têm formações diversificadas, constituindo a interdisciplinaridade, focalizada na fraude e na sua prevenção, um valor acrescentado na descrição, interpretação e modelização do nosso objecto de estudo.
A fraude é uma realidade multifacetada e multireferencial abrangendo todos as áreas da sociedade (por exemplo, da economia ao desporto, da cultura à política, da arte ao ambiente), cujo estudo exige o contributo de variegadas áreas do conhecimento (da Ética à Economia, da Psicologia à Matemática; das Ciências do Desporto ao Direito; da Gestão à Criminologia, partes de uma vasta lista) e cuja acção na detecção e prevenção exige o contributos de diferentes actores sociais. Por estas razões a interdisciplinaridade é uma das vertentes decisivas da actividade do Observatório.
Um comportamento ético e uma sistemática descoberta do que desconhecemos são preocupações do nosso quotidiano.
Desejamos, e tudo faremos para tal, ser uma instituição aberta à sociedade, criativa e inovadora, pautando-se pelo rigor científico.

Bem hajam, digo eu.
PS: Tomei a liberdade de destacar a vermelho algumas palavras-chave que traduzem o ADN da OBEGEF

as duas lebres

gestão de fraude


"Todos quantos lidam com" ... "o crime, a economia sombra, a corrupção, a fraude e o abuso e que desejem aprofundar os seus conhecimentos", podem agora obter uma pós-graduação na FEUP.
PS: Podemos concluir que já não há espaço para trambiqueiros amadores.

economia de resistência


A economia paralela em Portugal, em termos de rendimento per capita, está ao nível da economia oficial de países como a Índia ou o Paquistão, e é dez vezes superior à economia do Burundi ou do Congo.
Estes dados demonstram a elevada capacidade dos portugueses para produzirem riqueza, quando o Estado os “deixa trabalhar”. É também uma excelente notícia em tempos de crise porque a economia paralela é mais resiliente do que a oficial.

23 fevereiro 2010

mais falências

Têm sido feitas comparações sobre a gravidade da situação financeira na Grécia e em Portugal. Do ponto de vista do sector público, a situação é mais grave na Grécia que em Portugal. Mas a economia não é só sector público. É também sector privado. E neste aspecto a situação em Portugal é comparativamente muito mais explosiva do que na Grécia:

"Investors should be cautious about corporate bonds, sectors such as transport, media and torlecoms with high net debt to equity ratios and certain countries. The net debt to equity of the corporate sector is 189pc in Portugal, 141pc in Spain, 85pc in Italy, and 82pc in Greece, compared to 46pc for Germany, 39pc for Britain and 26pc for Sweden". (Fonte: aqui)

As empresa portuguesas estão imensamente mais endividadas (alavancadas) do que as gregas. Por cada euro que é seu devem 1.89 euros aos credores, que são sobretudo os bancos (para a Grécia, o valor correspondente é apenas de 0.82 euros).

As dificuldades financeiras no sector público têm uma solução de última instância - mais impostos. No sector privado a solução é diferente: mais falências.

de borla

O personalismo católico e o individualismo protestante têm consequências económicas que, em termos estatísticos, são geralmente desfavoráveis aos países católicos. Acontece assim nas comparações internacionais dos nível de riqueza material, tal como medido, por exemplo, pelo PIB per capita (ajustado pelas paridades do poder de compra).

Nestas comparações, os países predominantemente protestantes do Norte da Europa e da América do Norte comparam favoravelmente com os países predominantemente católicos do Sul da Europa e da América Latina. Assim, tomando como base 100 o PIB per capita dos EUA (ajustado pelas paridades do poder de compra) em 2007, a Noruega tinha um PIB per capita de 117, a Suíça 89, a Holanda 85, o Canadá 79, o Reino Unido 77, mas a Espanha apenas 69, a Itália 67, Portugal 50, e os números para a América Latina são ainda mais baixos (Chile 30, Argentina 29, Brasil 21).

Porém, estas diferenças de rendimento, que aparentemente seriam diferenças de bem-estar pessoal, são largamente ilusórias e devidas ao individualismo protestante em comparação com o personalismo católico. Ilustro a seguir algumas das instâncias que são fontes destas diferenças, utilizando Portugal em comparação com a Inglaterra ou os EUA.
Em Portugal um jovem da classe média ou alta aos 18 anos vai estudar para a Universidade e os pais pagam-lhe os estudos, nada acrescentando ao PIB. Em Inglaterra, um jovem em idênticas condições trabalha, pelo menos em part-time, para custear os seus estudos. O seu salário acrescenta ao PIB.
Um doente em Portugal vê-se rodeado de todas as atenções e carinhos por parte de familiares, amigos, meros conhecidos e, frequentemente até, desconhecidos. Na realidade, eu suspeito que Portugal é o melhor país do mundo para se estar doente. Um americano também tem acesso a todas essas atenções e carinhos, mas vai ter de recorrer a profissionais que lhe cobram um preço pelo serviço prestado, e que entra no PIB.
Um português típico em aflições financeiras pede dinheiro emprestado a um amigo ou aos pais. Não há juros ou, se há, eles são informais, e não entram no PIB. Não passaria pela cabeça de um americano pedir dinheiro emprestado a um amigo, até porque, regra geral, não encontraria nenhum que lho emprestasse. Recorre ao banco. O banco cobra-lhe um juro, que entra no PIB.
Um jovem casal português com um bebé, que queira jantar a sós um Sábado à noite, pede aos avós da criança, aos amigos ou à cunhada que lhe guarde o bebé, e nada entra no PIB. Um casal americano nas mesmas condições emprega uma baby-sitter a quem paga pelo serviço, o qual entra no PIB.
Um português entra num restaurante, almoça, paga a conta, não deixa nada ao empregado, e vai-se embora. Nada lhe acontece por não dar gorjeta, nem ao PIB. Um americano que faça o mesmo em Nova Iorque tem o empregado a correr atrás dele porta fora a exigir uma gorjeta (tip) de 10% ou 15% da factura, a qual entra no PIB.
A uma dona-de-casa portuguesa falta-lhe salsa para o jantar, bate à porta da vizinha, que prontamente lhe oferece um raminho, e nada entra no PIB. A dona-de-casa americana vai ter de ir comprar salsa ao supermercado, a qual entra no PIB.
O homem português de 40 anos que nunca se habituou a trabalhar vive em casa dos pais e o PIB por ele não mexe. O mesmo homem na América vive num hospício da Salvation Army, servida por profissionais (cozinheiros, enfermeiros, empregados de limpeza, etc.) cujos salários são incluidos no PIB.
Os exemplos poderiam multiplicar-se sem limite. Mas já deu para ver que as diferenças do PIB per capita são largamente ilusórias e não reflectem, necessariamente, diferenças no nível de bem-estar. Aquilo que acontece é que o português tem de borla (e, portanto, não acrescenta ao PIB) aquilo que o inglês e o americano têm de pagar (e, portanto, acrescenta ao PIB). É a diferença entre a pessoalidade do personalismo católico e o anonimato do individualismo protestante.
É claro que se os alemães tivessem feito estes ajustamentos, provavelmente nunca teriam andado a dar dinheiro, via União Europeia, a países como Portugal, a Espanha, a Irlanda, ou mesmo a Grécia. Como bons protestantes, herdeiros do pensamento de Kant, eles julgam que a verdade está nos factos (do PIB). Mas não está. Está nas pessoas.

Creator

"We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness."
(Declaração de Independência dos EUA, 1789)

A ideia de que Deus é a autoridade suprema de toda a comunidade humana, e portanto que essa ideia deve ser afirmada em público, cultivada em público e que, mais geralmente, a religião é um assunto público é uma ideia distintamente católica. Para a generaliadde dos protestantes, seguindo na esteira de Kant de que não se pode chegar a Deus pela razão, a religião é um assunto essencialmente privado e que cada um deve cultivar na intimidade da sua casa ou da sua seita.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos ilustra, uma vez mais, que aquilo que de melhor existe no Protestantismo é aquilo que ele guardou do Catolicismo. (Ver aqui a filiação religiosa dos fundadores dos EUA)

a massa

Aquilo que de melhor existe no protestantismo é o que ele guardou do catolicismo, escreveu Chesterton. Em poucas áreas esta afirmação é tão verdadeira como na que diz respeito à democracia. (Para outro exemplo, veja o post seguinte).
Desde os primórdios do Cristianismo que a Igreja defende, e pratica, a democracia. Os Papas sempre foram eleitos democraticamente, e no início até por um sufrágio muito vasto que, além dos clérigos, incluia também os leigos. Mais ainda, na Igreja Católica qualquer homem pode ser Papa. A única condição que se lhe exige é que seja baptizado, um sacramento que qualquer padre de paróquia lhe dispensará prontamente. Esta posição reflecte não apenas a abertura da Igreja, mas também a sua grande coerência doutrinária (era melhor que, se Cristo voltasse à Terra, ele não pudesse ser eleito Chefe da sua própria Igreja)
Muito antes dos modernos Parlamentos, já existiam Parlamentos em todo o mundo católico, quer na Inglaterra pré-Reforma quer na Península Ibérica (aqui chamados Cortes) numa altura em que a Igreja tinha uma influência determinante em toda a sociedade ocidental. Dir-se-à que não foi a Igreja Católica que inventou a Democracia, e isso é verdade. Mas não foram também seguramente os protestantes que o fizeram, como a Inglaterra ou os EUA. A democracia moderna é, em última instância, uma herança dos gregos, mas também aqui é bom que a Igreja Católica não deixe os seus créditos por mãos alheias. As ideias dos gregos, incluindo a ideia democrática, só chegaram à modernidade porque a Igreja Católica, nos seus mosteiros e nos seus conventos, as guardou e as protegeu da destruição dos bárbaros.
A Doutrina Social da Igreja, nas palavras do seu fundador, o Papa Leão XIII, "não proíbe preferir governos fiscalizados de forma popular" nem "reprova qualquer forma de poder desde que adequada a assegurar o bem dos cidadãos". Na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis (A Solicitude Social da Igreja, 1987), consagrada ao desenvolvimento humano, o Papa João Paulo II vê na democracia uma contribuição para o desenvolvimento:
"Outras nações precisam de reformar algumas estruturas injustas e, em particular, as próprias instituições políticas, para substituir regimes corruptos, ditatoriais e autoritários por regimes democráticos, que favoreçam a participação" (SRS: 44).
Na Encíclica Pacem in Terris (1963), o Papa João XXIII faz questão de salientar que não existe nenhuma incompatibilidade entre o catolicismo e a democracia. Pelo contrário:
"Do facto de a autoridade derivar de Deus, não se segue que os homens não tenham a liberdade de eleger as pessoas investidas na missão de a exercer, bem como de determinar as formas de governo e os limites e regras segundo os quais se há-de exercer a autoridade. Por esta razão, a doutrina qu e acabamos de expor é plenamente conciliável com qualquer espécie de regime genuinamente democrático". (PT: 52)
Porém, foi ainda durante a Segunda Guerra Mundial, numa altura em que os vencedores não eram ainda certos, e menos certo era ainda o regime político sob o qual viriam a organizar-se, que o Papa Pio XII, consagrou a Encíclica Benignitas et Humanitas (1944) ao tema da democracia. Trata-se do primeiro reconhecimento explícito, por parte da Igreja Católica, das virtualidades positivas da democracia moderna, depois das experiências traumatizantes que se seguiram à Revolução Francesa. Porém, é também neste documento que se contém o limite a partir do qual a confiança da Igreja na democracia tende a desvanecer-se. De forma não surpreendente, esse momento acontece quando a democracia se torna um fenómenos de massas e, portanto, um processo impessoal:
"Pelo que fica dito, aparece clara outra conclusão: a massa - como nós acabámos de defini-la - é a inimiga capital da verdadeira democracia e do seu ideal de liberdade e igualdade". (BH: 17)
Não foram apenas as democracias saídas da Revolução Francesa que tinham alertado a Igreja para os perigos da massificação trazida pelo sufrágio universal. A sua própria história na eleição democrática do Papa a tinha levado de um sufrágio aberto aos padres e até ao leigos para o actual sistema em que o Papa é eleito apenas por cerca de uma centena de cardeais.
A democracia moderna com o seu sufrágio universal é, tal como o mercado, um processo impessoal, onde todos participam mas ninguém é responsável pelo resultado final. Quando cem eleitores escolhem democraticamente o líder da sua comunidade, no caso da escolha ser má, ainda é possível responsabilizar cada um deles pelo resultado final, porque cada um deles teve, ainda assim, um peso de 1% nesse resultado. Mas quando a eleição é feita entre 10 ou 200 milhões de eleitores, como acontece nas democracias modernas, o peso de cada eleitor no resultado final é insignificante. Torna-se impossível responsabilizar alguém por uma má escolha, e o mau chefe poderá então ter de ser removido por meios anti-democráticos, anulando a principal vantagem da democracia, que é a de permitir a substituição pacífica dos governantes (*).
Mais ainda, num argumento que é constantemente reiterado pela Igreja a propósito dos processos e instituições impessoais - como a democracia, o mercado e o próprio Estado - não possuindo esses processos e instituições ninguém em posição de autoridade que os controle, eles correm o risco de serem apropriados por grupos de interesses particularmente bem colocados, que os utilizam em seu benefício próprio e contra o bem comum de toda a sociedade. (**)
Por isso, a Igreja Católica não pode subscrever uma democracia ilimitada. Nem qualquer homem racional o pode fazer. O economista James Buchanan, líder da Escola da Escolha Pública, ganhou o Prémio Nobel em 1986 largamente por este argumento. Friedrich Hayek, Prémio Nobel em 1974, também já lá tinha chegado, mostrando que uma boa parte da ciência e da filosofia moderna não passa, na realidade, de uma reinvenção da roda.
(*) Este processo de substituição anti-democrática de uma má escolha democrática poderá estar a ocorrer presentemente em Portugal.
(**) A acuidade destes argumentos na situação presente é extraordinária, trazendo imediatamente ao espírito os partidos políticos no que diz respeito à democracia, as diferentes corporações no que diz respeito ao Estado, ou as grandes instituições financeiras no que concerne à actual crise económica e financeira.




não eram casados

Remeto-me à era cristã e aos homens cujo espírito influenciou a civilização. Começo por Cristo: não era casado. Depois, até ao final da Idade Média, todos os filósofos que influenciaram a civilização eram padres católicos, como Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino. Naturalmente, não eram casados.

Mais significativo, porém, é que a generalidade dos grandes filósofos modernos, aqueles cujo pensamento influenciou decisivamente a civilização em algum aspecto, também não eram casados. Falo de homens como Descartes, Hume, Kant, talvez os três grandes filósofos da modernidade. Mas também de John Locke, Leibniz, Newton, Adam Smith, Rousseau ou Voltaire.
Claro que há excepções, mas que só confirmam a regra. Marx era casado, mas nunca acabou a sua obra. John Stuart Mill casou quase aos 50 anos, mas a qualidade da sua produção intelectual caiu drasticamente após o casamento. Hegel casou aos 41, numa altura em que o seu sistema de pensamento já estava razoiavelmente arquitectado.
Será que a partir desta evidência é possível entender a sabedoria contida na determinação da Igreja Católica de que os padres devem permanecer celibatários? Ou é preciso ser mais explícito? (Na tradição católica as verdades não se dizem em público porque provocam escândalo)



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O Estado-Providência

Em vista do seu personalismo doutrinário, a Igreja não pode deixar de estabelecer limites às instituições e aos processos sociais que, em vista da sua grandeza ou da sua extensão, ameaçam tornar-se impessoais. Está neste caso o Estado-Providência moderno que se tornou a instituição central do socialismo-democrático ou social-democracia.
"Asssitiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento ... [de] um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar» ... Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram ... fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos do Estado assistencial derivam de uma inadequada compreensão das suas tarefas. Também neste âmbito se deve respeitar o princípio da subsidariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências ...
Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominado mais por lógica burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários, com um acréscimo enorme de despesas" (CA 48).
Depois, o apelo a uma assistência personalizada e a defesa das instituições de solidariedade que estão mais próximas dos carenciados:
"De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao enconro do necessitado. Acrescente-se que, frequentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em toda as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicómanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno" (CA: 48).
As instituições primárias de assistência são a família e a própria Igreja que neste campo "sempre esteve presente com as suas obras" (CA:49 ) e, ainda, "outras sociedades intermédias [que] desenvolvem funções primárias e constroem específicas redes de solidariedade" (CA: 49).
O Estado-Providência moderno é uma criação de Bismarck, talvez o mais anti-católico governante da Alemanha moderna. Porém, no imperativo cristão de ajudar os necessitados, o Estado deve ser a última solução racional. A primeira é, obviamente, a defendida pela Igreja Católica, que remete essa função, em primeiro lugar para as instituições que estão mais próximas dos carenciados, porque são elas que conhecem melhor as suas necessidades, e são as únicas capazes de lhes prestar uma assistência personalizada.



vale tudo

U.S. Launches Criminal Probe Into Toyota Safety.

The U.S. government currently owns more than 60 percent of General Motors.

PS: O governo, dos EUA, estará a tentar destruir um concorrente?

idênticos?


Os problemas de Portugal são idênticos aos de todos os outros grandes países da OCDE.
José Sócrates em entrevista à SIC

22 fevereiro 2010

o amor

Num post anterior defendi que os diferentes ismos modernos são heresias materiais do Cristianismo. Gostaria de reformular esta ideia sob um ponto de vista diferente. O socialismo elege o valor cristão da igualdade como seu valor supremo. O liberalismo faz o mesmo em relação à liberdade. Mas nenhum destes é o valor supremo do Cristianismo. O valor supremo do Cristianismo é o amor ao próximo ou caridade.


uma teoria da conspiração

Marcelo Rebelo de Sousa nasceu e sempre viveu na política. No meio familiar, entre os amigos, até no nome que lhe foi dado em baptismo e que adivinhava vôos altos e um futuro promissor e sem limites. Quando a idade adulta chegou, Marcelo fez da sua natural vocação política de tudo um pouco: foi militante e dirigente partidário, foi jornalista e director do mais influente jornal português, fez-se deputado e governante, escreveu opinião e passou-a para a televisão no programa político de maior audiência do país. De há dez anos para cá, Marcelo conformou a opinião política corrente dos portugueses como ninguém o fez na III República. O seu afastamento televisivo, por duas vezes consumado, provocou distúrbios nacionais. Da primeira vez que o tiraram do ar caiu o Carmo e a Trindade e o Presidente da República teve de intervir. Da segunda vez, desconhecendo-se, por enquanto, o seu destino, as instituições ainda não se moveram, embora ninguém acredite que a calmaria que se instalou sobre o assunto não seja senão prenúncio de tempestade...

Aos sessenta e um anos de idade falta a Marcelo Rebelo de Sousa cumprir o destino que muitos lhe antevêem fatal: desempenhar um dos dois cargos cimeiros da República, ou presidir ao Conselho de Ministros, como o padrinho que lhe deu o nome, ou chefiar a República a partir do Palácio de Belém.

Com a idade que já tem e o que se adivinha que venha a ser o futuro da mais alta magistratura da nação, Marcelo não manterá muitas esperanças em vir a alcançá-la. Cavaco repetirá certamente o mandato, atirando para 2015 a possibilidade de Marcelo o alcançar. Mas, nessa altura, a sombra de Durão Barroso, mais novo do que ele, mas tão ou mais ambicioso, usará o prestígio conquistado em oito anos de Bruxelas e a máquina que deixou ainda no PSD para lhe preparar o terreno. Resta-lhe a Presidência do Conselho de Ministros, retomando a tradição familiar legada pelo seu padrinho Marcelo José das Neves Alves Caetano.

Marcelo, o afilhado, não o padrinho, apresentou há meses a sua disponibilidade para disputar a liderança do PSD. Ele sabia, quando se ofereceu, que o caminho não seria terraplanado e que por montes e cumes elevados a liderança custaria a conquistar. Do outro lado da barricada, Pedro Passos Coelho preparava o mesmo percurso e Marcelo sabia que do jovem Passos e dos seus não podia esperar facilidades nem entusiasmos. Mas Marcelo Rebelo de Sousa sabe também que esta é provavelmente a única possibilidade que a vida lhe dará para conquistar a chefia do governo do seu país, ainda por cima, graças ao desgaste de quem governa, ao seu alcance num prazo relativamente curto. Todavia, em vez de uma vaga de fundo que o “obrigaria” a avançar, o estado cataléptico do partido não permitiu grandes reacções. Marcelo precisava de mais. De um impulso esmagador, que unisse os desalinhados e surpreendesse os que estão com Pedro Passos Coelho.

A estratégia e a táctica política ensinam que a figura da “lebre” pode ser um mecanismo propulsor poderoso para qualquer ambição sofrivelmente velada. A “lebre”, em política, é um animal que se solta para disfarçar as verdadeiras intenções. Que saltita um pouco por todo lado, para dar nas vistas no acessório e esconder o essencial. Que vai abrindo caminho ao caçador que a segue e com quem está plenamente articulada para juntos chegarem ao objectivo comum. A lebre é politicamente tanto mais valiosa consoante a sua qualidade intrínseca, o seu porte atlético, a forma física em que se encontra e o efeito surpresa que provoca. E o resultado final da desistência da corrida de uma ou de duas lebres é tão mais surpreendente quanto ela ou elas nos convencem que estão a correr para chegarem à meta. Até mesmo que se desentenderam para mais tarde se voltarem a entender em torno de um apelo irresistível da pátria e do seu salvador.

Entre os animais nobres da política, a lebre é seguramente o primeiro e o mais cativante.

O mercado

Desde a Encíclica Rerum Novarum (1891) do Papa Leão XIII, que deu início à Doutrina Social da Igreja, que o pensamento oficial católico se demarcou claramente dos dois sistemas económicos em confronto, o socialismo e o capitalismo (às vezes chamado liberalismo). E mesmo quando, cem anos depois, na Encíclica Centesimus Annus (1991), o Papa João Paulo II reconheceu a superioridade do capitalismo, nem aí deixou de qualificar a sua apreciação e de lhe impôr sérias reservas:
"(...) pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos países do Terceiro Mundo que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?
A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por «capitalismo» se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de «economia de empresa», ou simplesmente de «economia livre».
Mas se por «capitalismo» se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa" (CA: 42).
Seria difícil, talvez, na esfera estrita da economia, encontrar uma declaração mais favorável ao liberalismo económico e às suas instituições, como a empresa, o mercado e a liberdade de iniciativa. Ao mesmo tempo, invocando o Princípio da Subsidiaridade originalmente proposto pelo Papa Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno (1931), a Encíclica Centesimus Annus remete o Estado para o papel mais modesto que cada sociedade humana concreta pode comportar, que é o de só ser chamado a desempenhar as funções que todas as outras instituições sociais se mostrem incapazes de desempenhar [(CA: 48), reproduzido no Catecismo: ver aqui, Cat: 1882)].
Porém, mesmo assim, a Igreja recusa-se a passar um cheque em branco ao liberalismo: "Como vimos atrás, é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado «socialismo real» deixe o capitalismo como único modelo de organização social" (CA: 35). Nem poderia ser de outro modo, e eu gostaria de tratar este tema tomando como referência a instituição ou processo social que está na base do liberalismo moderno - o mercado.
A Igreja imputa ao sistema social baseado na instituição do mercado muitas das críticas que são conhecidas, como a dificuldade em lidar com as chamadas externalidades (v.g., poluição), a incapacidade para produzir os chamados bens públicos, a tendência para excluir os jovens, os velhos e os incapazes, e uma certa propensão para gerar desigualdades sociais. Porém, a minha interpretação acerca da razão fundamental das reservas que a Igreja coloca a uma sociedade baseada primordialmente no mercado deve-se ao facto de o mercado (no sentido dos liberais modernos, como Mises, Friedman ou Hayek) ser um processo impessoal.
A Igreja possui certamente apreço pelos mercados locais, às vezes verdadeiras comunidades onde as pessoas se conhecem, e onde os benefícios que produzem estão ali visíveis aos olhos de toda a gente, nas múltiplas trocas entre consumidores e vendedores. Porém, à medida que o mercado alarga o seu âmbito tornando-se nacional e, mais ainda, global, ele deixa de ser pessoalizado, torna-se uma abstracção, e deixa de se saber ao serviço de quem ele está.
Um mercado nacional, e mais ainda um mercado global, em condições de concorrência, é um mercado onde participam milhões de pessoas, mas onde cada pessoa, por isso mesmo, tem um peso insignificante nos seus resultados finais (preços, quantidades produzidas, lucros das empresas participantes, quantidade de emprego gerado, etc.). Este mercado serve a quem e beneficia quem?
Os economistas respondem que um grande mercado impessoal não visa servir ou beneficiar alguém em particular, e nisso, dizem eles, reside a sua principal vantagem. Beneficia a sociedade como um todo, maximizando o bem-estar social (como medido, por exemplo, pela soma dos excedentes dos produtores e dos consumidores). A Igreja não pode aceitar esta resposta pela razão de que a sociedade não é uma pessoa - é uma abstracção - e o personalismo católico exige que as instituições e os processos sociais estejam ao serviço das pessoas, não de abstracções como a sociedade. É a sociedade que tem de estar ao serviço das pessoas, não as pessoas ao serviço da sociedade.
A segunda, e mais importante objecção, é a de que se o mercado é, na realidade, um processo impessoal, onde ninguém é responsável pelos seus resultados, então ele abre caminho à irresponsabilidade - a possibilidade de quaalquer dos seus intervenientes adoptar comportamentos que, sendo no seu interesse, são danosos para os outros e para toda a sociedade. Enquanto permanecerem isolados, estes comportamentos não têm importância nenhuma. Mas quando generalizados, não fica mesmo excluida a possibilidade de que o mercado livre conduza ao colapso da sociedade.
Por isso, a Igreja defende que o mercado tem de ser regulado. E se não aparecerem na sociedade instituições espontâneas que o façam, então terá de ser o Estado, subsidiariamente, a fazê-lo.