28 fevereiro 2009

um juiz às esquerdas


O veredicto:
Kant: "A verdade e o erro ... só podem ser encontrados no julgamento" e isto é assim porque "os sentidos nunca erram, não porque eles sejam sempre capazes de julgar correctamente, mas porque nunca julgam de todo". (Itálico meu)

um filho da mãe dele

Noam Chomsky é um velho patife, travestido de respeitável intelectual pela pior esquerda das últimas décadas. Ele é um bom exemplo dos ditos "intelectuais" ocidentais do século XX, sempre prontos a compreender as ditaduras comunistas e a castigar as democracias liberais, onde, aliás, vivem regaladamente.

A entrevista, hoje publicada, que lhe fez a Isto É, prova que a idade não lhe trouxe qualquer respeitabilidade e que Chomsky continua a ser um reles aldrabão e um inqualificável crápula. A entrevista, rica em patifarias, percorre todos os lugares comuns da extrema-esquerda contemporânea: a crítica aos EUA e, por ela, às democracias ocidentais, e a exaltação das conquistas "democráticas" da Bolívia e da Venezuela, com Morales e Chávez. No meio do lixo, vale a pena realçar um sintoma evidente da esclerose avançada que ataca o prestigiado "intelectual". Diz ele: "Nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, a política económica é definida por pessoas que levaram o país à ruína (...)". Bem visto, de facto.

Estava comprado


Neste post pretendo concentrar-me apenas sobre a ideia de verdade. Tendo estabelecido no post anterior que a tradição católica chega à verdade pela razão, a pergunta que imediatamente ocorre é:

Então e a tradição protestante, como é que chega à verdade?

A resposta é: por julgamento (que resulta da litigação). Não pretendo elaborar agora sobre este ponto, excepto para remeter o leitor para outra afirmação que fiz no mesmo sentido quando escrevi que, para a tradição protestante, "a verdade está na justiça".

O meu propósito neste post é outro e o seguinte. Na Filosofia moderna, o filósofo mais representativo da tradição católica, aquele que sustentava a tese de que se chega à verdade pela razão, é Descartes, ele próprio um católico fervoroso. No outro extremo, numa antítese radical, David Hume, o empiricista, sustentava que é impossível chegar à verdade pela razão, que só se chega lá pelos sentidos, e que, portanto - ao contrário do que pretendia Descartes - a verdade é uma questão de julgamento e, por isso, subjectiva: "Eu acho (julgo) que isto é verdade..." ou, alternativamente, "Eu acho (julgo) que isto não é verdade...". Não deve parecer surpreendente que Hume seja originário da Escócia, à época, como ainda hoje, um dos países mais profundamente protestantes.
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Depois de Descartes e Hume surgiu Kant. O sentido da obra de Kant é largamente o de arbitrar, ou julgar, entre estas duas teses opostas, a saber: Chega-se à verdade pela razão ou pelo julgamento? (por outras palavras, é a verdade objectiva ou subjectiva?). Kant propõe-se ser o juiz entre o católico Descartes e o protestante David Hume.

Qual foi a sentença?

Não é meu propósito indicá-la agora (fá-lo-ei mais tarde em adenda ao post). Gostaria apenas que o leitor reparasse na composição do tribunal. Como partes litigantes, um católico, de um lado, um protestante do outro. E o árbitro ou juiz? O atributo essencial da justiça é a imparcialidade, pelo que será adequado perguntar se o árbitro deste jogo é imparcial. A resposta é que Kant era um homem de cultura profundamente protestante, a tal ponto que ficou conhecido para a história como o "filósofo do protestantismo".

O que é que acha que vai saír daqui?
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Adenda: Leia o veredicto no meu próximo post.

a candeia


A ideia principal numa sociedade de tradição católica é a ideia de verdade, ao passo que na sociedade de tradição protestante é a ideia de justiça.
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Como é que a sociedade católica chega à verdade? E como é que a sociedade protestante chega à justiça? Qual é a candeia que lhes alumia o caminho num caso e noutro?
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A resposta é a razão, no caso da sociedade católica, e a tradição, no caso da sociedade protestante.
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Considere-se a seguinte questão, que é uma questão de verdade: "A terra gira à volta do sol, ou o sol à volta da terra?". A resposta a esta questão obtém-se pela razão. Considere-se, agora a seguinte questão, que é uma questão de justiça: "Um homem cometeu um homicídio voluntário e planeado. Que pena lhe aplicar, três meses ou vinte anos de cadeia?". Não existe maneira de a razão (a razão pura no sentido kantiano, ou a razão cartesiana) dar resposta a esta questão.
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A única resposta possível e a única resposta justa (fair), obtém-se olhando para pena que, em condições semelhantes, foi aplicada no passado, isto é, olhando para a tradição. E se a tradição indicar que a pena para estes casos esteve sempre muito mais próxima dos vinte anos de cadeia do que dos três meses, então, a solução justa consiste em aplicar ao homicida deste caso uma pena de vinte anos ou aproximada. Só assim a pena será justa (fair, equitable). Ninguém terá razão para se queixar, nem os familiares da vítima, que provavelmente prefeririam uma pena mais pesada, nem o homicida, que preferiria uma pena mais leve. A pena de vinte anos é a pena que todos os homicidas levaram em condições semelhantes.
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A candeia que alumia o caminho da sociedade católica é a razão. A candeia que alumia o caminho da sociedade protestante é a tradição. As sociedades de tradição católica põem mais ênfase na razão, são mais racionalistas. Pelo contrário, as sociedades de tradição protestante colocam mais ênfase na tradição, são mais tradicionalistas. Mais precisamente, a elite de uma sociedade católica pura - a classe dos professores - é uma elite racionalista, já que não se pode esperar uma utilização judiciosa da razão entre o seu povo. Pelo contrário, a elite de uma sociedade protestante pura - a classe dos juristas - é uma elite tradicionalista, já que não se pode esperar uma interpretaçao sábia da tradição entre o seu povo.

Portugal-Inglaterra


Nos posts anteriores tenho falado de sociedade de tradição católica na sua forma pura e de sociedade de tradição protestante na sua forma pura. Não existe tal coisa no mundo. Porém, ao pensar na forma pura e maximamente abstracta, é possível tornar mais evidentes os traços peculiares de uma e outra, clarificando o pensamento e as distinções.

Por outro lado, o objectivo último de uma teoria é o de explicar o funcionamento de sociedades concretas e prever a sua evolução e reacção perante instituições ou circunstâncias exógenas. Por isso, importará num dado momento responder à questão: Quais são, na prática, as sociedades católicas e quais são, na prática, as sociedades protestantes?

Para começar, elas devem ser procuradas dentro da esfera de influência do cristianismo, com sede na Europa Ocidental. Utilizando a França como país-fronteira, as sociedades predominantemente católicas estão a sul (Portugal, Espanha, Itália) e as sociedades predominantemente protestantes a norte (Inglaterra, Alemanha, Holanda, países nórdicos). E sendo necessário apontar o país mais genuinamente católico, no primeiro caso, e o país mais genuinamente protestante no segundo caso, a escolha deverá recaír sobre Portugal (seguido da Espanha) no lado católico, e na Inglaterra no lado protestante. Portugal, recolhido no seu canto da Península, não sofreu o embate directo das ideias protestantes que vinham através da França; foi a Espanha que resistiu ao embate, e a linha da frente foi a Catalunha, que ainda hoje possui as marcas da influência protestante. Por seu lado, a Inglaterra é o país onde o movimento protestante teve as suas origens mais remotas (John Wycliffe, 1320-84) e que, vivendo afastado do continente, onde o catolicismo teimou em prevalecer, mais conseguiu distanciar-se da influência católica. Portugal e Inglaterra são, por isso, talvez, os países que mais aproximam a sociedade católica e a sociedade protestante, respectivamente, idealizadas na sua forma pura. Todos os outros, como a Alemanha, a Austria, a Suíça, a Holanda etc., misturam elementos das duas culturas, com predomínio de uma delas (católica no caso da Áustria, protestante no caso dos outros países citados).

Quanto à América, a norte, encontram-se duas ex-colónias da Inglaterra - Canadá e EUA -, portanto, dois países predominantemente protestantes, e a sul, ex-colónias dos países ibéricos - Brasil, México Argentina, etc. -, portanto países predominantemente católicos. A Austrália e a Nova Zelândia, ex-colónias britânicas, são países predominantemente protestantes.

Questão diferente é a de saber porque é que os países do norte da Europa foram os países activos da Reforma religiosa do século XVI e se tornaram protestantes, enquanto os do sul foram os líderes da Contra-Reforma e permaneceram católicos. Existem razões históricas: Portugal e Espanha, na altura, dividiam o mundo entre si pelo Tratado de Tordesilhas e era a Igreja Católica - a antecessora da ONU - que garantia o direito internacional, convindo portanto aos dois países estarem de bem com a Igreja. A minha convicção é que existem outras razões mais profundas que explicarão a coincidência do catolicismo em países temperados e quentes e do protestantismo em países frios. O Joaquim já sugeriu que podem ser razões de ordem biológica, e eu tendo a suspeitar que ele tem razão, ficando a aguardar a sua contribuição nesta matéria.

A distinção entre países católicos e protestantes também coincide com a distinção entre países latinos e, arrumando os protestantes todos num saco, países anglo-saxónicos. Eu prefiro a primeira distinção à segunda, porque a língua não é a origem de uma cultura, é a sua expressão e, embora retroagindo sobre a cultura, não é ela que talha o espírito do homem e lhe confere as marcas distintivas de uma certa maneira de ser e de fazer - enfim, de uma cultura. Esse trabalho de talhar o espírito do homem foi feito pela religião, como argumentei aqui.

revolta dos professores



Numa sociedade de tradição católica, um dos sinais mais importantes de que a sociedade está à beira da ruptura é dado pela revolta dos professores. A razão é que, sendo os professores a elite natural desta sociedade, eles são também a classe mais conservadora. A revolta pode assumir vários protestos concretos, mas por detrás de todos eles, estará um protesto geral, o de que "não conseguem ensinar".

Pelo contrário, num país de tradição protestante, o sinal equivalente é dado pela revolta da classe dos juristas, com os juizes à frente. Os juristas são a elite e, portanto, a classe mais conservadora desta sociedade. Os protestos dos juristas, podendo embora assumir várias manifestações concretas, terão um denominador comum, o de que "não conseguem julgar" .

27 fevereiro 2009

somos nós


Numa sociedade de tradição católica pura a elite é constituída pelos professores. São eles que educam o povo, especialmente naquela qualidade que o povo não tem - capacidade de julgamento. São eles também que fazem a selecção social, deixando passar aqueles que têm condições para exercer os mais altos cargos na sociedade, e retendo na base aqueles que não têm. Num país de tradição católica pura, a selecção social é feita através do sistema de educação.

O que aconteceria nesta sociedade se, por alguma razão - como, por exemplo, a introdução da democracia - o povo decidisse avaliar os professores?. O mínimo que se pode esperar é que os professores decidam travar a batalha da sua vida, porque colocar o povo a avaliar os professores equivale a inverter a ordem natural da sociedade. Nesta sociedade são os professores que avaliam o povo, não o povo que avalia os professores. Não apenas os professores não reconhecem ao povo capacidade para os avaliar, como o povo não é capaz de avaliar ninguém. Não é de mais relembrar que o povo da sociedade católica possui uma incapacidade radical de julgamento.

Numa sociedade de tradição católica, o triunfo de uma política de avaliação dos professores seria um dos mais eloquentes sinais de que a cultura da sociedade estaria a mudar em direcção a uma cultura diferente. Pelo contrário, o falhanço da política de avaliação dos professores seria um dos sinais mais eloquentes de que a cultura da sociedade permanece distintamente católica.
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Nas sociedades de tradição protestante é que os professores são avaliados, mas aí eles não são a elite da sociedade. A razão é que esta sociedade é destruída através do seu sistema de educação e a não-avaliação dos professores representa um risco para a sociedade. Esta sociedade sobrevive na base da litigância, no confronto livre entre a verdade e a falsidade e exige, portanto, um tipo especial de professor, excluindo outro. Ela exige o professor pluralista, aquele que, a propósito de qualquer tema, admite à discussão e fomenta a discussão entre várias teses alternativas, deixando que a verdade emirja triunfante do confronto com a falsidade; ela exige, por outras palavras, o professor advogado-do-diabo. Aquilo que ela exclui é o professor ensinador ou dogmático do tipo católico, o professor que se aperesenta perante os seus alunos como possuindo a verdade e ensinando-lhes essa verdade única. Este tipo de professor destrói a sociedade protestante. A avaliação dos professores nesta sociedade tem em vista, precisamente, limpar o sistema deste tipo de professores.
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Na tradição católica é diferente. Não há possibilidade de subversão da sociedade através do sistema de educação. Pelo contrário, os professores são a elite da sociedade e, portanto, também a classe mais conservadora da sociedade. Na luta que tem vindo a ser travada recentemente em Portugal sobre a avaliação, tudo indica que a avaliação vai falhar e os professores vão vencer. Por detrás dos muitos slogans que os professores têm apresentado na sua luta, existe um que é definitivo porque é de natureza cultural, e que é o seguinte: "Aqui, quem avalia somos nós!". É pena que nunca o tenham utilizado.

Dúvida



"Tenho muita curiosidade em saber como é que ao se comprar um activo acima do valor do mercado se consegue reduzir as imparidades", Fernando Ulrich

uma obrigação


O homem de elite da tradição católica, resumindo o que escrevi aqui, é o homem que coloca a verdade como valor supremo e que a utiliza com julgamento. O que pensará este homem da reprodução? Seguramente a seguinte verdade: sem reprodução não há humanidade. Portanto, para ele, a reprodução não é uma questão de opção. Isso é para o povo que não tem julgamento nem critério. Para ele, a reprodução é uma obrigação.

Premiar o tóxico


Ao longo dos últimos meses, nos Estados Unidos os planos governamentais para lidar com a crise bancária têm oscilado ao sabor do vento. O plano original de Henry Paulson, que defendia a absorção dos derivados de crédito - os tais activos tóxicos que poluem os balanços dos bancos - era o menos mau. Infelizmente, foi abandonado pelo próprio Paulson que cedeu à tentação de recapitalizar os bancos sem antes lidar com o problema de fundo - os derivados de crédito mal parados. Na altura, a razão atribuída à mudança de plano foi a seguinte: não havia forma de estabelecer o preço dos activos tóxicos e, por outro lado, a solvência dos bancos estava em rápida deterioração. Além disso, os reguladores subestimaram o mercado. Consideraram que em 2009 o mercado havia de melhorar, por isso, muitos activos tóxicos poderiam também deixar de o ser. Em Portugal, a este respeito, temos uma situação idêntica: o BPP que, com o apoio do Banco de Portugal, tem procurado ganhar tempo e com isso esperar alguma recuperação dos mercados especulativos onde investiu o dinheiro dos seus clientes (com garantia de capital e, em alguns casos até, garantia de juros). Infelizmente, tanto na América como em Portugal, os mercados de capitais ainda não deram sinais de melhoria, daí que a situação dos bancos se tenham agravado ainda mais.

Portanto, urge regressar ao modelo original: engolir os activos tóxicos e fechar (temporariamente) o mercado dos derivados de crédito, que representam empréstimos bancários securitizados e empacotados num título transaccionável em mercado. A questão mais importante neste processo é definir o preço que o Estado pagará aos detentores destes títulos (bancos, seguradoras, hedge funds, entre outros). Em geral, estes activos são contabilizados de duas formas: a) "Mark to Market" e; b) "Hold to Maturity". No primeiro critério, "Mark to Market", assume-se que o activo é avaliado ao último preço transaccionado. O problema é que, hoje em dia, ninguém quer estes activos, por isso, existe um grande desencontro entre o que os compradores estão dispostos a pagar e aquilo que os vendedores pretendem receber. E o facto de não existirem bolsas - câmaras de compensação - que possam intermediar o encontro de compradores e vendedores só acentua ainda mais as divisões. No segundo critério, "Hold to Maturity", o valor dos activos é contabilizado ao preço histórico. Porém, aqui o panorama também não é muito melhor. É que, contabilisticamente, a partir do momento em que o devedor deixa de pagar o capital e os juros, ou seja, quando entra em incumprimento - uma situação que, como se sabe, não pára de aumentar -, o empréstimo não pode mais ser contabilizado ao preço histórico. Tem de ser amortizado. Assim, qual é a alternativa?

Neste artigo da McKinsey, os autores propõem o seguinte:

"To break the logjam, we propose that the government step in and establish a voluntary program to create a real market price and terms for the sale of bad assets. Rather than use modeling for valuation, the program would set discounts from either of the two basic approaches to accounting value, based on some recent past date (for instance, December 31, 2008). A reasonable level might be 10 percent off for securities already marked to fair value and 20 percent off for loans being held to maturity."

Em Portugal, com excepção do BPP, parece que entre os grandes bancos privados não há grande exposição a activos tóxicos. Na realidade, o único banco que em Portugal parece ter alguma concentração de activos tóxicos é aquele que pertence ao Estado: a CGD. Com uma diferença. É que cá, como se viu agora no negócio CGD/Investifino, não se retiram estes activos do balanço. Pelo contrário, concedem-se prémios para os deixar estar!

α (alfa)

A definição de elites é importante porque o nosso futuro depende de elites que nos guiem e que nos inspirem. Quem tiver quaisquer dúvidas sobre a importância das elites, na sociedade, pode interromper por aqui a leitura deste post, se prosseguir não diga que não foi avisada.

Como biólogo, não consigo abstrair-me de pensar que noutras espécies animais também existem elites, indivíduos que ocupam o topo da hierarquia social e que são os machos e fêmeas alfa. São indivíduos assertivos, corajosos, perninazes e agressivos na defesa do território. São líderes naturais que protegem a “tribo” e tentam assegurar a sua sobrevivência. Resolvem os conflitos internos e, quando surgem perigos e ameaças externas, estão na primeira linha de defesa. O elevado estatuto hierárquico vem acompanhado de deveres.

Em próximos posts vou tentar dar uma definição generalista de elites que abarque o sentido cultural que lhe atribuiu PA e que, tanto quanto possível, vá buscar as suas origens à etologia.
Vamos pensar...

veredictos


Este post do João Miranda levanta uma questão óbvia: O que é a verdade? Eu próprio tenho utilizado abundantemente a ideia de verdade sem nunca a ter definido. Chegou a hora.
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Como seria de esperar, a definição não é a mesma na tradição católica e na tradição protestante. Na tradição católica pura a verdade é o facto, aquilo em relação ao qual não existe falsificação possível. Assim, nesta tradição, falar verdade significa falar por factos. É diferente o conceito de verdade na tradição protestante pura. Nesta tradição, a verdade é o veredicto, e falar verdade significa falar por veredictos (produzidos por um júri independente, cf. aqui).

E em Portugal, no domínio da política, o que significa hoje em dia falar verdade, que é a questão levantada pelo JM no seu post? Portugal é um país de tradição católica, mas, nas condições actuais, não na sua forma pura. Na realidade, as suas intituições políticas - que são as instituições da democracia liberal - são importadas da tradição prostestante. Por isso, em política, falar verdade em Portugal significa hoje em dia falar por veredictos.

Porém, uma qualificação é necessária. Como tenho repetidamente ilustrado (vg, a propósito dos sistemas de educação e de justiça), sempre que uma instituição de origem protestante é importada em Portugal, ela ganha um outro significado e produz outros efeitos que são geralmente opostos àqueles que ela produzia na sua cultura original. Esta perversidade é o resultado da reacção de defesa e adaptação da cultura católica à intrusão de uma instituição que lhe é estranha.

A questão pertinente é, pois, a de saber em que é que a instituição protestante do veredicto - que é sinónimo de verdade - é modificada quando é recebida na cultura católica de Portugal. A resposta está parcialmente contida no post anterior. Quando os portugueses são chamados a julgar e a produzir um veredicto, a sua parcialidade radical leva-os sempre a decidir a seu próprio favor ou dos seus. Daí que o veredicto - a verdade, na cultura protestante - ganhe um significado muito diferente em Portugal daquele que tem na sua cultura de origem. Nesta, o veredicto é um julgamento pronunciado por um júri independente. Em Portugal, um veredicto é um julgamento pronunciado pelo próprio.

Segue-se que, no regime actual de democracia em Portugal, falar verdade significa falar por veredictos pronunciados pelo próprio - isto é, cada um dizer e acreditar naquilo que lhe vem à cabeça.

a favor dos seus


Em posts anteriores, tenho repetidamente afirmado que o povo português não possui sentido de justiça, um defeito que outras vezes tenho referido como falta de julgamento, a tal ponto que a característica decisiva que atribuí ao homem de elite, e que o distingue do povo, é precisamente a capacidade para julgar. O meu propósito neste post é o de elaborar sobre a falta de sentido de justiça do povo português, procurando saber especificamente no que ela consiste e algumas das suas maiores consequências.

O atributo essencial que caracteriza a justiça é a imparcialidade e é esse atributo que se espera de um juiz de direito, de um árbitro de futebol, de um professor que avalia os seus alunos, de um gestor que num concurso público tem de decidir entre várias propostas alternativas. A falta de sentido de justiça do povo português traduz-se, portanto na sua parcialidade. Chame-se o homem do povo a arbitrar uma contenda, ou a pronunciar julgamento sobre uma situação de conflito, e ele decide sempre a favor dos seus e, em última instância, a favor de si próprio.

Esta característica do povo português é evidente nos milhares de situações da vida em que o homem do povo é chamado a julgar. Nos debates sobre futebol, as decisões do árbitro, quando levantam dúvidas, prejudicam sempre a sua equipa, nunca a equipa adversária, significando que, se fosse ele a decidir, para corrigir tamanha injustiça, ele beneficiaria a sua equipa e prejudicaria a equipa adversária. Na rua, quando envolvido num acidente, a culpa é sempre do outro, nunca sua. A expressão popular segundo a qual, em Portugal "a culpa morreu solteira" significa que ela nunca conseguiu arranjar homem no país que tomasse conta dela.

Na política democrática, a extrema parcialidade do povo português rapidamente infecta o sistema partidário de um vírus que, com o tempo, lhe é fatal - a partidarite. Quando o homem do povo é chamado a julgar entre propostas alternativas dos diferentes partidos, ele pouco lhe interessa saber qual é a melhor, e decide sempre em favor do seu próprio partido. Por isso, quando a democracia eleva o homem do povo a lugares de decisão pública, o resultado não deve surpreender - o nepotismo.

"Falar Verdade"

"Falar Verdade" é uma expressão clichê da política portuguesa. Alguns exemplos:

Sampaio alerta para necessidade de se «falar verdade»

A presidente do PSD, Manuela Ferreira Leite, anunciou hoje um fórum chamado “Portugal de Verdade”

Cavaco Silva procurou "falar verdade" aos portugueses em dois anos de mandato

De acordo com a teoria de Pedro Arroja, o povo é que gosta da verdade e sabe identificar a verdade. Um homem de elite, pelo contrário, sabe a verdade, mas recorre a mentiras piedosas para defender valores mais importantes. Senso assim, qual é o significado desta obsessão da classe política pela Verdade? Algumas hipóteses:

1. A classe política portuguesa é dominada for gente vinda do povo, que tem a obsessão própria do povo pela verdade. É uma consequência da introdução da Democracia numa cultura que não está preparada para ela.

2. A classe política portuguesa faz parte da elite. Recorre à mentira quando promete que vai falar verdade. É uma mentira piedosa porque o povo não pode saber que os políticos mentem. Se esta hipótese está correcta, os nossos políticos são mais sofisticados do que aparentam.

3. A classe política portuguesa é dominada por mentirosos compulsivos. Estes políticos que nos dizem que vão falar verdade não partilham nem do gosto pela verdade do povo, nem da capacidade de julgamento das elites. Aproveitam-se quer do amor do povo à verdade, quer da tradição de mentira piedosa das elites. Se esta hipótese estiver correcta, temos que concluir que a nossa cultura é vulnerável à tomada de lugares chave por oportunistas.

a galinha


A teoria que tenho vindo a desenvolver acerca da sociedade de tradição católica e da sociedade de tradição protestante visa explicar os grandes traços que caracterizam estas duas culturas, com o fim de prever a sua evolução, e em particular, como cada uma delas reage à imposição de instituições que são próprias da outra. Neste sentido, trata-se de uma teoria macro-sociológica, que visa explicar e prever grandes factos, grandes tendências, grandes reacções e grandes contradições. Ela não visa explicar pequenos factos, por exemplo, porque é que o Senhor Joaquim de Cinfães todos os dias se junta com os amigos à mesma hora no Café Central a jogar o dominó.
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O poder de uma teoria mede-se pela sua capacidade de explicação dos grandes factos ou tendências que ela visa apreender, e pela sua capacidade de previsão acerca desses grandes factos ou tendências. Por isso, eu considerei um teste à capacidade explicativa da minha teoria dar resposta a esta questão formulada por um leitor.
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É um facto geralmente reconhecido, e notado por muitos autores, a tendência que os portugueses têm para admirar aquilo que é estrangeiro, em detrimento do seu próprio país. Este característica não é sequer distintamente portuguesa, mas verifica-se, em maior ou menor grau, noutros países católicos, como a Argentina, o Brasil, a Espanha, a Itália ou o Perú. A admiração não se exprime, porém, em relação a quaisquer países, como a Tailândia, o Uganda, o Taiwan ou o Senegal. Exprime-se invariavelmente em relação a países de cultura portestante, como a Inglaterra, os EUA, o Canadá, a Suécia, a França, a Suíça, a Alemanha, e, mais recentemente, até a Finlândia. Além disso, trata-se de uma admiração que não é retribuída.
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Por isso, a questão posta pelo leitor está perfeitamente colocada. Porque é que as pessoas dos países C têm tanto admiração e apreço pelos países P, enquanto que a recíproca não é verdadeira? A resposta: por causa das ideias centrais que dominam as suas respectivas culturas, a ideia de justiça no caso dos países P, a ideia de verdade no caso dos países C.
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Começo pelos países C. Nestes países, a cultura ganha a sua unidade em torno da ideia de verdade. Um dos atributos da verdade é que ela é, às vezes, inconveniente, outras desagradável, senão mesmo muitas vezes cruel: "Vou morrer um dia", "Sou defeituoso, nasci sem uma perna", "Sou pobre", Sou um estudante medíocre", "Roubaram-me a carteira". A verdade só às vezes é conveniente, agradável ou justa.
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Nos países P, ao invés, a ideia que une a sua cultura é a ideia de justiça (fairness): "Na fila do supermercado, ninguém me passou à frente" - justo. "Na eleição do presidente, o meu voto teve tanto peso como o dos outros" - justo. "Comprei túlipas, e o produtor vendeu-mas, ao preço de 15 euros cada uma" - justo. "Os governantes do meu país não se aproveitam da situação para enriquecer" - justo. "Ninguém me pressionou para votar no Partido X" - justo.
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A verdade é, por vezes, inconveniente, outras vezes desagradável, às vezes mesmo cruel. A justiça nunca é. Daí que nos países de tradição católica, as pessoas aparentem geralmente uma atitude séria, por vezes carregada e triste que é a atitude própria de quem transporta no espírito muitas verdades desagradáveis e se sente mal consigo próprio e com os outros à sua volta. Pelo contrário, nos países de tradição protestante, as pessoas aparentam geralmente uma atitude despreocupada, leve e alegre, que é a atitude própria de quem não carrega fardo nenhum e se sente bem consigo e com os outros à sua volta.
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A sedução que os países protestantes exercem sobre os portugueses, e mais geralmente sobre os países de tradição católica é, portanto irresistível. Nesses países tudo parece fácil, simples, descontraído, alegre e, sobretudo, justo. Todos podem exprimir livremente aquilo que pensam sem que alguém os repreenda ou penalize Em Portugal, pelo contrário, tudo é difícil, complexo, tenso, pesado, às vezes verdadeiro de mais para ser suportável, e um país onde pensar alto é frequentemente um crime. Julgando assim pelas aparências, que são as aparências do espaço público, e sem penetrar no conhecimento profundo desses países e da sua esfera privada, a propensão do português e, mais geralmente do homem de cultura católica, para considerar que a "a galinha da minha vizinha é melhor que a minha" aparece como sendo perfeitamente compreensível.
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Tanto mais quanto é certo que esta atitude não é retribuida, e o americano, o inglês ou o alemão, julgando Portugal, Espanha, o Brasil, a Itália ou a Venezuela, pelas mesmas aparências do espaço público destes países, sentem por eles uma atitude de pronta rejeição: "A senhora que passa à frente da criança na fila do supermercado" - injusto; "O cacique local que chantageia os residentes para votarem nele" - injusto; "O governante que usa o seu lugar para enriquecer" - injusto. "O preço da gasolina que é mais impostos que custo do petróleo" - injusto. "A moradia de luxo situada no meio do bairro pobre" - injusto. "O insulto desbragado do leitor ao autor do blogue" - injusto. Como é possível viver num país destes? Certamente que não para um alemão um americano, um inglês, um sueco ou um finlandês que, em certo sentido, vive obcecado pela ideia de justiça.
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É claro que quando o português e, mais geralmente, o homem de cultura católica, vai para além das aparências públicas e procura conhecer a esfera privada dos países protestantes - o que em geral supõe viver num desses países durante algum tempo -, as suas relações na família, no círculo de amigos, na vizinhança e no emprego, a ida ao restaurante e à discoteca, as relações interpessoais mais íntimas, o seu rigorismo e intolerância nas pequenas coisas da vida, ele acaba por reconhecer que os benefícios da esfera pública são largamente anulados, senão mesmo suplantados, pelos defeitos que ele vê na esfera privada. O seu verdicto final em relação a eles é: "São países onde há justiça e equidade, mas são países onde as pessoas e as coisas não são verdadeiras e genuínas".
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O oposto ocorre quando um americano se dispõe a conhecer mais de perto a sociedade portuguesa, agora na sua esfera privada - o que em geral exige viver nela durante algum tempo. Passado o choque inicial e o horror que lhe inspira a esfera pública, onde ele vê injustiças a cada esquina, ele vai ficar surpreendido pela enorme humanidade das pessoas nos seus círculos privados da família, do emprego, dos amigos e da vizinhança; pelo seu extraordinário liberalismo na forma de pensar e de fazer as coisas da vida; ele vai concluír, enfim, que esta é uma sociedade, onde é possível fazer tudo e à maneira de cada um, até cometer excessos, que ninguém o leva preso. O horror da esfera pública tende a ser compensado, senão mesmo anulado, pela qualidade e os prazeres da esfera privada. O seu veredicto final será: "É uma sociedade injusta, mas a qualidade das pessoas e das coisas é extraordinaria".
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Porém, a maior parte daqueles que fazem opinião num país, como os seus intelectuais, não emigram. Em Portugal, aqueles que diariamente invocam nos jornais o civismo dos ingleses, a qualidade do serviço público de saúde canadiana, a excelência de organização das escolas públicas na Finlândia, a liberdade de expressão académica nos EUA, para denegrirem os seus próprios concidadãos e as suas próprias instituições, esses, então, não emigram de certeza. E por muito boas razões, que são aquelas que acabei de expôr.
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Pelo contrário, eles conhecem esses países, ou através de leituras, ou de visitas turísticas, ou de estadias breves de trabalho, e portanto só tomam contacto com a sua esfera exterior ou pública, não conhecem mais nada, em particular, não possuem o conhecimento íntimo dessas sociedades que só se adquire vivendo nelas o seu dia-a-dia por um período prolongado. Acresce que, sendo homens e mulheres de cultura católica e, portanto, possuindo uma péssima qualidade de julgamento, eles tendem apregoar aos quatro ventos que "a galinha da minha vizinha é melhor que a minha", sem o conhecimento adequado da galinha da vizinha e, muitas vezes, sem sequer conhecerem a sua própria galinha.

a conta, por favor

Os portugueses vão começar a pagar pela eleição de Obama. Pois pensavam que era de graça? Que se colocava um socialista radical na Casa Branca e que a factura não ia aparecer? Cresçam meninos.
A análise do primeiro orçamento de Obama é absolutamente clara. O Presidente propõe um aumento de impostos sem precedentes, propõe diminuir as deduções fiscais para doações beneméritas, para juros de compra de habitação própria e, last but not the least, propõe uma diminuição do orçamento da defesa.
As conclusões são muito claras. A recuperação económica vai ser muito mais lenta do que seria previsível. A simples diminuição das deduções fiscais para compra de casa, contribuirão para afundar ainda mais o mercado habitacional e agravar a actual crise. A bolsa de valores não irá recuperar tão cedo e as empresas europeias que vivem do mercado norte-americano podem começar, ou continuar, a despedir.
Por fim a defesa. A UE vai ter de desviar recursos enormes do Estado de Bem-estar Social para a sua própria defesa, se ainda for a tempo de o fazer.
A América tem sido um farol do mundo, para o bem e para o mal, agora que a sua luz tremelica e ameaça apagar-se, estamos todos muito mais desorientados e sob maiores ameaças. Não se estava mesmo a ver?
PS: Volta George, estás perdoado.

26 fevereiro 2009

ocasionalmente


Ocasionalmente, mas só muito ocasionalmente, o homem do povo possui julgamento. Ou será um homem de elite que o fez?

tempera a verdade com o julgamento


Proponho-me, então, definir o homem de elite português (e, mais geralmente, de cultura católica). Este post é a primeira contribuição, não esgosta o tema, o qual tenciono prosseguir em outros posts. A razão é que tenciono intercalar a caracterização do homem de elite português (católico) com a caracterização do homem de elite inglês ou americano (protestante). Embora não esgote o tema neste post, eu gostaria de afirmar que é ele que contém as ideias-mestras da caracterização que me proponho realizar, e constitui portanto o post principal sobre o assunto.

Utilizarei a forma de expressão por excelência da cultura católica, seguindo o modelo do seu grande filósofo, S. Tomás de Aquino - o diálogo. Imagino o diálogo com um jovem adulto de vinte e tal ou trinta e poucos anos de idade, chamado António.
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-António: Qual é a principal característica do homem de elite português?

-PA: A verdade. A ideia mais importante da nossa cultura católica, aquela que nos confere unidade, é a ideia de verdade. Portanto, o homem de elite português é, em primeiro lugar, o homem verdadeiro, o homem genuíno, o homem em que tudo nele respira verdade.

-António: E a segunda característica mais importante?

-PA: Julgamento. Capacidade de julgamento ou sensatez. É esta característica que faz dele um homem de elite e o distingue do povo, porque verdade também existe no povo. Portanto o homem de elite é o homem verdadeiro e sensato, o homem que tempera a verdade com o julgamento.

-António: E como é que se chega à verdade, pelos livros?

-PA: Pelos livros e pela reflexão, mas isso é só metade do processo. Se você quer ser um homem de elite, leia e medite. Leia sobretudo os clássicos da nossa civilização ocidental e cristã, os gregos, os romanos, os clássicos da era cristã, S. Agostinho, S. Tomás, Descartes, Locke, Hume, Kant, Tocqueville, etc. Não esqueça a Bíblia e o Catecismo. Lendo e meditando, você adquire sabedoria e aproxima-se da verdade. Mas não chega, falta a outra metade.

-António: E em que é que consiste a outra metade?

-PA: Em misturar-se com o povo. Não esqueça que o povo português é muito sabedor, é um povo que, em certo sentido, vive obcecado pela verdade. O que lhe falta é julgamento. Por isso, você tem muito a aprender com o povo. E só com o povo você pode praticar aquela qualidade de carácter que distingue a elite do povo - a capacidade para julgar.

-António: Como assim?

-PA: Observe o povo, fale com o homem e a mulher do povo, veja a forma como o povo se exprime, as suas manifestaçoes religiosas, as festas populares, analise a arte popular e oiça a música popular. Vai encontrar aí expressões de imensa sabedoria, embora quase sempre com falta de critério. É olhando para essas formas de expressão do povo, escutando o povo, e perguntando: "O que é que está ali a mais -, o que é que está ali de bizarro, de mau gosto, de injusto, de feio, de irracional, de ofensivo, de alarve, de calão - ou, o que é que falta ali - de harmonioso, de justo, de belo, de gentil, de sóbrio, de racional?" é que você vai praticar a sua capacidade de julgamento. Isto você não consegue praticar nos livros, excepto na literatura, na arte e na religiosidade popular.

-António: Tem escrito que a nossa elite está entre os professores ... só os professores é que podem ser elite?

-PA: Não, é uma força de expressão, um arquétipo. Os professores, pela natureza da sua missão, estão vocacionados, mais do que quaisquer outras pessoas, para procurar a verdade e a transmitirem aos outros com critério.

-António: O que é que quer dizer "com critério"?

-PA: Quero dizer com julgamento. Um professor não ensina às crianças do ensino básico cálculo diferencial, nem os Lusíadas. Elas precisam saber primeiro aritmética e história de Portugal, pelo menos. Aquilo que caracteriza o professor é a sua missão de procurar a verdade, e ser capaz de comunicar a verdade de forma selectiva.

-António: Quer dizer que a verdade não deve ser dita a todas as pessoas e em todas as circunstâncias?

-PA: Claro que não. Isso é o que faz o povo, não um homem de elite. Aquilo que caracteriza o homem de elite é precisamente a capacidade para julgar perante quem e em que circunstâncias deve comunicar a verdade, e perante quem e em que circunstâncias não deve comunicar a verdade, calando-se ou até, em certos casos excepcionais, falando mentira.

-António: Estou desconcertado ... um homem de elite a calar-se ou a mentir ... quer dar-me um exemplo?

-PA: Já lhe dei o exemplo acima das crianças do ensino básico. Tome outro: você é casado, tem três filhos menores, o seu patrão é um brutamontes que trata mal toda a gente. Você um dia chama-lhe brutamontes e ele despede-o - a sua mulher e os seus filhos vão sofrer. Você disse a verdade, faltou-lhe foi julgamento, porque considerações superiores se levantavam aqui acima da comunicação da verdade - a segurança da sua família. Quanto à mentira: um doente terminal pergunta ao médico se vai morrer brevemente, e o homem de elite responde-lhe que não, que para a semana estará melhor.

-António: Voltemos aos professores. Só eles é que podem ser elite?

-PA: Não. Qualquer homem pode ser elite - a elite brota do povo -, um médico, um jurista, um engenheiro, até um electricista e um homem do povo. Aquilo que ele tem de fazer é usar a missão do professor como modelo - procurar a verdade e comunicá-la aos outros com critério, isto é, com julgamento.

-António: Para encerrar esta primeira parte da conversa, gostaria de lhe colocar três perguntas sobre temas que andam em discussão na sociedade portuguesa, e para as quais gostaria de uma resposta breve e definitiva.

PA: Diga ...

-António: Pode um homem de elite português ser a favor do aborto?

-PA: Não, porque um homem verdadeiro assume as consequências dos seus actos, e convive com elas.

-António: Pode um homem de elite ser homossexual?

-PA: Não, porque um homossexual não é um homem verdadeiro.

-António: Pode um homem de elite ser favorável à eutanásia?

- PA: Não, porque um homem verdadeiro não precisa de ninguém que o ajude a morrer. Ele morre pelos seus próprios meios.
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(Nota: na imagem, Alexis de Tocqueville, um homem de elite da tradição católica)

Brincamos, ou quê?!



O Diário Económico explicou hoje "Todos os passos do negócio entre Manuel Fino e a Caixa". Infelizmente, sou forçado a manter a mesma opinião que exprimi ontem: foi um péssimo negócio para os contribuintes portugueses.

Regressemos, portanto, ao início da história. A CGD emprestou dinheiro à Investifino, cerca de 500 milhões de euros, para esta especular à vontade no mercado accionista. A garantia para este empréstimo foram outros títulos, cujo rácio de cobertura excedia os 100%. Entretanto, em 2008, o mercado de acções deteriorou-se, as garantias perderam valor e a CGD, naturalmente, viu-se obrigada a pedir um reforço das mesmas e a escolher entre três hipóteses. Hipótese A (sugerida por Manuel Fino): não reforçar as garantias, ou seja, nada fazer. Hipótese B: executar as garantias. Hipótese C: comprar metade da posição da Investifino na Cimpor com um prémio de 25 a 35%, de forma a reduzir a dívida do grupo perante o banco. Pois bem, a opção final recaiu sobre a Hipótese C.

Afirma a CGD que "o facto de ter pago 4,75 euros por cada acção da Cimpor, mais 25% do que o valor destas em bolsa, é perfeitamente justificado pelo facto desta participação ser “um bloco de acções relevante” e ter “um prémio de controlo implícito”, uma vez que estes 9,58% no capital da cimenteira são considerados como uma participação “charneira” no controlo accionista da empresa, sobre os quais são pagos normalmente prémios entre os 25 e os 35% sobre o preço das acções." Francamente! Esses prémios só se praticam em condições de negociação normais. Por outras palavras, quando uma das partes, a Investifino, não tem poder negocial, o lógico é que não haja lugar ao pagamento de qualquer prémio - pelo menos, não dessa magnitude. Além disso, o tal prémio de que nos fala a CGD (25 a 35%) representa uma métrica de "Bull Market", ou seja, aplicável em tempo de vacas gordas. O problema é que ainda estamos em plena época de vacas magras. A administração da CGD que vá perguntar aos seus colegas da Caixa BI e pergunte-lhes quantas operações de fusão realizaram estes nos últimos doze meses? Nicles. O negócio está parado.

Infelizmente, o surrealismo subjacente às premissas da CGD não pára ali. É que o banco do Estado acrescenta ainda que "o preço pago pela CGD pelas acções de Manuel Fino na Cimpor é considerado como sendo inferior ao habitualmente praticado, e até é inferior em cerca de 19% à média da cotação nos últimos dois anos. A Caixa Geral de Depósitos nota ainda que a média dos preços-alvo dos analistas para os títulos da Cimpor é superior em 16,8% ao preço de 4,75 euros pago pelos títulos da Cimpor." Ora batatas! Primeiro, quase todos os títulos mundiais estão abaixo da cotação média dos últimos dois anos. O PSI20 está 45% abaixo da cotação média dos últimos dois anos. Segundo, que culpa têm os contribuintes da má avaliação que, em média, os analistas fizeram do preço da Cimpor? Nenhuma. Portanto, para que serve um "price target" que no momento da transacção era 50% superior ao preço de mercado? Para nada.

Por fim, a CGD argumenta ainda com os dividendos que agora passará a receber da Cimpor realçando que "normalmente a Cimpor tem gerado para os seus accionistas retornos entre os 5 e os 6% por ano". Lamentavelmente, este número não corresponde à realidade da Cimpor. De acordo com os dados importados da Bloomberg, de 1999 até hoje, o dividendo da Cimpor apenas excedeu o intervalo apontado pela CGD no passado muito recente. Na verdade, nos últimos dez anos, a taxa de dividendos que a empresa, em média, pagou aos seus accionistas foi de 3,7% ao ano. Antes de impostos! Ou seja, em termos líquidos, depois de impostos, menos de metade do intervalo esperado pela administração da CGD.

Entretanto, a Cimpor encerrou hoje a 3,11 euros por acção, muito distante dos 6 euros por acção que valia quando a Investifino se decidiu alavancar junto da CGD para investir ainda mais no mercado accionista. Ou seja, para recuperar essa marca, a Cimpor terá de valorizar mais de 90%. Infelizmente, nos últimos dez anos, a valorização média anual dos títulos da empresa foi apenas de 7% ao ano, com um desvio padrão de 26 pontos percentuais. Estatisticamente falando, isto significa que a probabilidade de que a cotação da Cimpor regresse aos 6 euros por acção em menos de um ano é quase nula - para ser rigoroso, é de 1%. Se o título se comportar em linha com a média de longo prazo, pode demorar 11 anos até recuperar a fasquia dos 6 euros. Vá lá, talvez 8 anos, se introduzirmos os dividendos. Enfim.

Sabem uma coisa? Esta história faz-me lembrar o BPP. A diferença é que a CGD contabilizou o empréstimo concedido à Investifino no balanço, ao passo que o BPP optou por colocar parte do seu próprio passivo fora do balanço. E a outra diferença é que, no caso do BPP, o Estado mandou-o às urtigas (e bem), sacrificando com isso alguns clientes do seu negócio de gestão de patrimónios; no caso da Investifino, o Estado não quis "gerar instabilidade na estrutura accionista da Cimpor", sacrificando com isso todos os contribuintes. Tivesse a CGD executado os 20% da Investifino na Cimpor ao preço de mercado de então (fora do mercado cotado) e teria recuperado 430 dos 500 milhões de euros - cerca de 85% do montante em dívida. E apenas 15% acima do preço de mercado - a 4,25 euros por acção - estaria mais do que "break-even". Assim não; pagou 4,75 euros por acção - 30% acima do preço de mercado -, ficou apenas com metade do lote de acções que podia reclamar e agora corre o risco de poder ficar a penar durante uns longos 8 anos!

(Actualização às 20h00): O Público e a TSF acabam de anunciar que o PS viabilizou a ida de Faria de Oliveira ao Parlamento para explicar os contornos desta polémica. Ainda bem. Talvez se possa voltar atrás no negócio.

não é nada disto


A análise que tenho vindo a desenvolver já suscitou algum interesse, merecendo uma chamada de atenção do Tiago Moreira Ramalho no blogue Corta Fitas, que agradeço. O tema que mais curiosidade despertou nesta chamada de atenção foi o das elites. De facto, existem muitos jovens adultos que perante o estado actual em que Portugal se encontra, gostariam de poder dar uma contribuição para a melhoria do país, ambicionando ser e comportando-se como verdadeiros homens de elite.
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A primeira e grande dificuldade que encontram é exactamente a de saberem o que é um homem de elite em Portugal. Alguns identificam a elite com os homens e mulheres que ocupam as posições de poder - os governantes. Outros, olham para a elite como sendo constituida pela chamadas pessoas-bem, que possuem nomes pomposos, e aparecem nas revistas sociais. Outros ainda, finalmente, identificam a elite como a classe dos ricos ou daqueles que triunfaram nos negócios.
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A realidade é que a elite não é nada disto, e é a ideia de elite genuína à cultura portuguesa que me proponho tratar no próximo post. Se quiser, portanto, saber o que é um homem de elite em Portugal, esteja atento ao meu próximo post.

intolerância


Eu pretendo neste post responder à mesma questão do post anterior, mas agora na forma inversa: O que acontece a uma sociedade P que decide adoptar as instituições da sociedade C, que são as instituições de um cesarismo esclarecido - poder pessoalizado, supremo e absoluto, censura, organização corporativa da sociedade? Por outras palavras, o que acontece à sociedade P que decide tornar-se uma sociedade C?

A resposta, em termos gerais, é idêntica à anterior: aquilo que de bom existe na sociedade C vai tornar-se mau na sociedade P, na realidade, o melhor da sociedade C vai tornar-se o pior da sociedade P; e pior da sociedade P, que até aí permanecia privado e discreto, vai passar a ser exibido em público, reunindo nesta sociedade aquilo que de pior existe em cada uma.

Sob certos aspectos já respondi à questão formulada em posts anteriores. Assim, já demonstrei que a classe dos professores, que é a elite da sociedade C, se converte na classe intolerante e destruidora que conduz à ruptura da sociedade P. Mostrei também que o sistema de educação, em que assenta a sociedade C, é o sistema por onde se desmorona a sociedade P. O meu propósito neste post é o de analisar um ponto específico que é o de saber o que acontece na sociedade P quando ao povo se retira a liberdade de expressão e se institui a censura, que é uma instituição típica da sociedade C.

Acontece intolerância pública. Como defendi em post anterior, aquilo que distingue e elite do povo na sociedade P é a sua sabedoria. É esta capacidade da elite para transmitir ao povo aquilo que está certo e o que é verdade, protegendo o povo do erro que resulta da sua ignorância generalizada, que permite à sociedade P aparecer em público, na sua forma pura, como uma sociedade conhecedora.

Porém, quando se retira ao povo a liberdade de expressão, e se institui a censura, a verdade deixa de poder emergir vitoriosa do confronto com o erro. Não é mais possível distinguir o verdadeiro do falso, o justo do injusto, porque só uma das partes é admitida na contenda. Apenas uma das partes litigantes passa a possuir expressão pública, e é ela que ganha a contenda, adquirindo o estatuto público de verdade. A intolerância fica instalada.

Esta intolerância manifesta-se em público de diferentes maneiras, pela rejeição de opiniões e comportamentos divergentes, pela discriminação explícita em que aqueles que não partilham a verdade são excluídos da sociedade, pela supressão de todas as instituições que possam ser fontes alternativas da verdade, pela perseguição dos dissidentes até ao esmagamento total.

indecência


Neste post eu retomo o modelo puro da sociedade católica e da sociedade protestante que tenho vindo a desenvolver, para colocar a seguinte questão: o que é que acontece a uma sociedade C que adopta as instituições da sociedade P, que são as instituições da democracia-liberal? Por outras palavras, o que é que acontece à sociedade C que decide tornar-se uma sociedade P?
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A resposta geral a esta questão é a seguinte: aquilo que é bom na sociedade P vai tornar-se mau na sociedade C, na realidade, o melhor da sociedade P vai tornar-se o pior da sociedade C; e aquilo que é mau na sociedade C, e que até então permanecia privado e discreto, vai passar a ser exibido em público, reunindo nesta sociedade aquilo que de pior existe em cada uma.
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Sob certos aspectos, já respondi a esta questão. Assim, já demonstrei aqui que os juristas, que são a elite da sociedade P, se convertem na classe desordeira e destruidora da sociedade C; já mostrei também que o sistema de justiça, que é o sistema em que assenta a sociedade P, torna-se na sociedade C o sistema por onde se opera a ruptura desta sociedade. O meu propósito neste post é o de me concentrar num outro ponto específico, que é o de saber o que acontece na sociedade C quando ao povo se concede liberdade absoluta de expressão, que é uma instituição típica da sociedade P.
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Acontece indecência pública. Como argumentei no meu post anterior, aquilo que distingue a elite do povo na sociedade C é a sua capacidade de julgamento. É esta capacidade de julgamento da elite, censurando o povo nos seus comportamentos e opiniões que não são justos ou aceitáveis - numa palavra, que são indecentes -, e que resultam da sua falta de julgamento generalizada, que permite à sociedade C, na sua forma pura, aparecer em público com uma sociedade decente.
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Porém, a partir do momento em que o povo é admitido a exprimir-se em público livremente, a barreira da decência é quebrada e a indecência passa a ser generalizada. A indecência manifesta-se em público de múltiplas formas, pela linguagem utilizada em público, pela mentira pública, pelo insulto, pela calúnia e pela difamação públicas, pelo compadrio e o favorecimento exibido em público, pelas negociatas públicas, pela impunidade pública que é concedida aos prevaricadores de toda a espécie, pela impossibilidade de condenar os criminosos - em suma, pelo reino da desvergonha.
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Este clima social em que inicialmente a decência resiste e se bate contra a indecência, o bem se bate contra o mal, é agravado pelo facto de este processo ser um daqueles em que opera a chamada Lei de Gresham, o que significa que, a prazo, a indecência expulsa a decência do espaço público. As pessoas decentes afastam-se da política porque não estão para ser difamadas e caluniadas; as pessoas decentes afastam-se dos debates públicos porque não estão para ser insultadas e vexadas; as pessoas decentes afastam-se dos negócios com o Estado porque não estão para ser suspeitadas; as pessoas decentes afastam-se das suas profissões de grande relevo social (professores, juizes, médicos) porque não estão para ser desautorizadas e desrespeitadas. No espaço público fica apenas o povo e aquilo que de pior existe no povo - a indecência fruto da sua radical falta de julgamento.

Altruísmo


"Fechar o abismo, alinhar o caos, enobrecer o Homem. Eis a missão que falta neste pobre país.", D. Costa

titubiâncias

Ou o BPP está insolvente ou não está. Se não está, o governador do BP deve responsabilizar-se perante os clientes e investidores do BPP. Se está insolvente, o Governador deve pedir a falência da instituição, para que todos os credores tenham um tratamento justo e equitativo.
Deixar o BPP no purgatório, é mais uma “discrepância” da D. Constância.

Desavergonhados


Ainda a propósito do negócio entre a CGD e o empresário Manuel Fino, ruinoso para os contribuintes portugueses, aproveitei este início de manhã para passar os olhos pelos editoriais dos jornais nacionais que habitualmente leio. Pois bem, o Jornal de Negócios não fala do assunto. No Diário Económico, o director António Costa escreve a certa altura que "a administração de Faria de Oliveira fez o negócio que tinha de fazer", posição que também ontem parece ter sido defendida por Paula Teixeira da Cruz. Por fim, o Público, através de José Manuel Fernandes, é o único a colocar o dedo na ferida questionando os seus leitores "Para que serve o banco público? Para os amigos?".

Com franqueza, já nem vou discutir as questões técnicas. Já o fiz aqui, sendo que os números são irrefutáveis e a conclusão é apenas uma: o preço acordado foi absolutamente descabido. Em especial, quando se sabe que Manuel Fino tinha muitas mais acções da Cimpor (e, já agora, da Soares da Costa) para entregar à CGD e assim refinanciar o seu empréstimo. Este é um ponto que ninguém menciona, nem mesmo o Público, mas que faz toda a diferença, tornando a negociata ainda mais escandalosa. De resto, este é daqueles assuntos que justifica uma condenação unânime, porque o dinheiro a mais que a CGD pagou por essas acções da Cimpor representa um almoço grátis num restaurante de luxo da baixa lisboeta - por exemplo, no "Solar dos Presuntos" onde os nossos políticos gostam de se juntar para longas e faustas refeições - que cada contribuinte ofereceu ao senhor Fino sem o conhecer de lado nenhum.

Este episódio reflecte o caos que se instalou na gestão da nossa democracia indirecta. Ao contrário de outros países, em que este mesmo regime funciona de forma aceitável, em Portugal tal parece não ser o caso. E, confesso, não sei se a solução é mudar as pessoas. Julgo que se trata de uma questão de mentalidade política que corrói a moral daqueles que entram nos círculos do poder. Por exemplo, no caso da CGD eu conheço alguns dos administradores - tanto cá como em Madrid - e, num caso até, privei com elas. São pessoas sérias e competentes. Por isso, o problema só pode ser o enredo e a pressão política para fazer este tipo de negócios. Daí a minha conclusão de que, no estado actual das coisas, não é o partido A, B ou C que está em causa. É toda a estrutura político-partidária que tem de ser repensada. Esta não serve. Esta é desavergonhada. Esta goza com os portugueses anónimos.

peccata mundi

Os juristas nunca se deveriam pronunciar sobre temas económicos porque metem tanta água que acabam por fazer uma triste figura. Em última análise, acabamos todos a pensar que se sabem tão pouco de economia pouco saberão de Leis.
Vem isto a propósito da opinião de Vital Moreira sobre a necessidade de baixar os impostos, em tempo de crise:
Propor cortes gerais nos impostos e nas contribuições da segurança social quando, em consequência da recessão económica, se assiste a uma verdadeira hemorragia orçamental (menos receita e mais despesa), bem como das finanças da segurança social (menos contribuições e mais despesas sociais), deveria parecer uma política contranatura --, pelos vistos excepto para a direcção e os economistas do PSD.
Um risco que tem de ser evitado no combate à crise é o de "morrer da cura", em consequência de maus remédios ou de excesso de medicamentação, saindo da recessão com as finanças públicas tão degradadas (em termos de défice e de dívida pública) que constituíssem um pesado fardo para a retoma.

Julgo que não vale a pena contestar estas afirmações porque são totalmente contrárias às medidas que têm vindo a ser tomadas em quase todos os países da OCDE. Gostaria apenas de fazer uma análise médica do respectivo conteúdo
Para Vital, o Estado assume uma dimensão antropomórfica, quase como uma divindade plebeia. Um ente ou ser que tem sentimentos, emoções e sangue que lhe corre nas veias. O Estado está a sofrer uma hemorragia e pode morrer da cura. Não podemos consentir que o Estado fique deficiente, arrastando um pesado fardo.
Esta linguagem histriónica recorda-me alguns sermões paroquiais, quando o padre afirma que “nossa Senhora está sofrer pelos nossos pecados” ou que “temos de rezar pelo sofrimento do mundo”.
A verdade, se é que esta interessa, no meio de uma linguagem tão própria da populaça, é que os impostos estão a provocar uma “hemorragia no bolso dos contribuintes” e que estes “não conseguem arrastar esse fardo”. Fosque-se, são os contribuintes que têm sangue a correr nas veias, não é o Estado.

o povo e a elite


Eu gostaria neste post de elaborar sobre a relação entre o povo e a elite na sociedade de tradição católica e na sociedade de tradição protestante, respectivamente, ambas na sua forma pura.
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Retomo a analogia dos triângulos, que reproduzo na imagem. A sociedade católica (C) representada pelo triângulo delta assente sobre a sua base (à esquerda), a sociedade protestante representada pelo triângulo invertido (à direita). Os pontos pertencentes à região A junto ao vértice representam, em ambos os casos, a elite, e os da região B junto à base, o povo. A parte superior do triângulo é para ser agora interpretada como a parte visível da sociedade, aquela que tem exposição pública (a elite, no caso da sociedade C, o povo no caso da sociedade P), enquanto a parte inferior é para ser interpretada como a parte "escondida" ou invisível da sociedade, aquela que não tem exposição pública, permanecendo no domínio privado (o povo, no caso da sociedade C, a elite no caso da sociedade P). Em posts anteriores, já estabeleci que a elite natural da sociedade C é a classe dos professores e a elite natural da sociedade P a classe dos juizes.
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O porta-voz natural da sociedade C, a sua imagem pública, é a sua elite, enquanto na sociedade P é o povo (parte superior dos triângulos). Do mesmo modo, a sociedade C reserva ao povo uma posição discreta, privada, sem visibilidade pública, enquanto a sociedade P reserva esta posição à elite (parte inferior dos triângulos).
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Porquê? É a esta questão que me proponho responder neste post.
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A sociedade C possui uma base larga, assenta no povo, e a sua elite emerge do povo, estreitando o triângulo para cima. A ideia que une esta sociedade é a ideia de verdade, por isso a maior qualidade do povo nesta sociedade é a sua sabedoria. A elite, emergindo do povo, vai buscar ao povo aquilo que ele tem de melhor - a sabedoria. E o que é que e lhe dá em troca? Dá-lhe julgamento, que é aquilo que o povo nesta sociedade não possui de todo.
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Como já foi notado anteriormente, em resultado da sua formação católica, o povo da sociedade C é um povo que leva o seu liberalismo e a sua tolerância ao extremo, aceitando todas as opiniões e todos os comportamentos dentro de limites muito amplos, como o da não violência. Esta tolerância extrema retira-lhe a capacidade de julgamento e o sentido da justiça, impedindo-o de distinguir o bem do mal, o justo do injusto, a graça da ofensa, a palavra do palavrão - em suma, a decência da indecência. É esta capacidade de julgamento que a elite lhe fornece, censurando a indecência. Se esta sociedade fosse representada em público pelo seu povo apareceria aos olhos de quem a observa como uma sociedade feita largamente de pessoas indecentes, embora sábias. Sendo representada pela elite - os professores -, ela aparece aos olhos de quem a observa como uma sociedade de pessoas sábias e decentes (porque decência é o melhor que se pode conseguir onde falta o julgamento).
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A sociedade P assenta numa base estreita, a elite, que submerge do povo afunilando o triângulo para baixo. A ideia que une esta sociedade é a ideia da justiça e a maior qualidade do povo é o seu sentido de justiça. A elite nesta sociedade, submergindo do povo, vai buscar ao povo aquilo que ele tem de melhor - julgamento. E o que lhe dá em troca? Sabedoria, que é aquilo que o povo nesta sociedade não possui de todo.
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Como já foi notado anteriormente, em resultado da sua interpretação plural das Escrituras, o povo da sociedade P é de um pluralismo extremo aceitando todas as correntes de opinião dentro de limites muito amplos, e que só excluem a intolerância. Este pluralismo extremo retira ao povo a capacidade para saber onde está a verdade, para distinguir entre o verdadeiro e o falso, entre o sábio e o charlatão, entre o genuíno e a mera imitação - em suma, entre a sabedoria e a ignorância. Compete à elite decidir onde está a verdade, pronunciando julgamento entre posições (claims) diferentes e frequentemente opostas, e transmitindo ao povo a sabedoria que ele genuinamente não possui. Se esta sociedade fosse representada em público pela sua elite - os juizes - ela apareceria aos olhos do observador como uma sociedade feita largamente de pessoas intolerantes, embora justas. Sendo representada pelo povo, ela aparece aos olhos do observador como uma sociedade de pessoas justas e conhecedoras (porque conhecimento é o melhor que se pode conseguir onde falta a sabedoria).

25 fevereiro 2009

Revogadas


Fantástico! Agora, só falta mesmo revogar as penas ao Vale e Azevedo!

Chafarica!

Leitura recomendada. Clique aqui.

Bravo! Bravo!


O polémico negócio que a CGD fez com o empresário Manuel Fino foi hoje alvo de discussão no debate quinzenal da Assembleia da República. Disse o senhor ministro das Finanças que com esta operação a CGD evitou um prejuízo de 80 milhões de euros nas contas do ano passado. Teixeira dos Santos acrescentou ainda que "foi uma decisão de gestão" do banco público. Ao mesmo tempo, o Primeiro Ministro afirmava que "o ministro das Finanças pediu informações sobre isso e tem um memorando". E, concluiu, exclamando peremptoriamente: "A Caixa está em condições de prestar esse esclarecimento aos portugueses"! Ainda bem, porque vai ser necessário.

Uma primeira consideração acerca das contas do ministro das Finanças: Teixeira dos Santos acertou mais ou menos no número, mas enganou-se no sinal. A CGD não evitou um prejuízo. Na realidade, a CGD incorreu num prejuízo de mais de 90 milhões de euros. As contas são simples. Desde o início do ano, a cotação média de fecho da Cimpor foi de 3,66 euros por acção. O negócio envolveu uma transacção global de 306 milhões de euros, 64 milhões de acções da Cimpor e foi concretizado a 4,75 euros por acção - um prémio de 30%! Abandonando a ficção e regressando à realidade, observa-se que, no mesmo período, o desvio padrão, ou seja, as oscilações em torno da média, foi de 24 cêntimos. Assim, estatisticamente falando, a probabilidade de que, um dia depois do negócio se concretizar, o título se valorizasse e encerrasse a sessão acima dos 4,75 era apenas de 1%. Ou seja, a probabilidade de que o Estado - perdão, a CGD - fizesse um negócio melhor àquele que fez era de 99%! Sem dúvida, um magnífico negócio...para Manuel Fino.

Como se não bastasse, o senhor Fino possuía em carteira mais acções da Cimpor para além daquelas que vendeu ao Estado - perdão, à CGD. Na verdade, o senhor Fino manteve um lote mais ou menos igual ao que vendeu 30% acima do preço de mercado, permitindo-lhe ainda manter uma posição significativa na Cimpor, não de 20%, mas agora apenas de 10%. Ou seja, o Estado - perdão, a CGD - fez um negócio ruinoso. Pagou 90 milhões a mais do que devia e, provavelmente, deixou de ganhar outro tanto em acções sobre as quais tinha todo o direito de se apropriar. É que se o senhor Fino estava insolvente, como parecia ser o caso, a CGD tinha todo o direito de exigir todas as acções que pudesse, ou outro património qualquer, até ao limite do empréstimo concedido.

Enfim, o ministro das Finanças ter-se-á equivocado quando utilizou a expressão "evitou prejuízo". Devia ter falado em custo de oportunidade, porque a perda nunca chegou a ser amortizada pela CGD. Pelo contrário, o dinheiro a mais que pagou por acções que não valiam aquele preço, esse sim, vai sair directamente dos cofres do Estado - perdão, da CGD - e que, sendo um custo de oportunidade, a verdade é que, dadas as circunstâncias, mais parece um prejuízo! Auto infligido!

Torre de Babel


Nos últimos meses, a crise económica tem vindo a acentuar-se e, com ela, o desemprego tem aumentado drasticamente. Não há ainda fim à vista. Com excepção do actual governo, ninguém em Portugal ficaria surpreendido se a taxa de desemprego atingisse os 15% no espaço de um ou dois anos. Na nossa vizinha Espanha, em surdina, alguns dos mais reputados especialistas já falam em desemprego acima dos 20%...Portanto, a precariedade vai instalar-se nas vidas de muitos portugueses. E o desespero também. Sendo que, hoje em dia, qualquer agregado familiar cuja remuneração conjunta seja inferior a pelo menos 1.500 euros por mês, o caso da maioria dos portugueses, - e que tenha de fazer face aos encargos normais de qualquer família com filhos - já leva, na verdade, uma vida precária.

Assim, pergunto: será que a maioria dos portugueses tem muito a perder, se decidirem questionar a sério o "status quo" da democracia portuguesa? Com franqueza, acredito que não. É que já ninguém mais acredita na ideia do "for the people, by the people". O descrédito em que entrou a nossa (in)justiça, associado ao drama do desemprego, é revoltante. A incapacidade, o compadrio, a lentidão são exasperantes. E o pior é que com o actual regime partidário nada mudará, porque a sobrevivência dos partidos depende da manutenção do actual estado de coisas, em particular nos tribunais. E como é que se consegue isso? Através da paralisia. Complicando as regras. Aceitando os mais variados regimes de excepção. Os 38.000 processos fiscais são um bom exemplo. O sistema é de tal forma complicado e volátil, e os juízes são de tal forma corporativos, que facilmente se chegam a situações como aquela que hoje foi descrita pelo Público. Enfim, a democracia indirecta está a rir-se da nossa cara. Está a tratar os cidadãos como idiotas e mentecaptos.

Que fazer então? Como se reforma esta democracia? Resposta: não se reforma. Deita-se fora e começa-se tudo de novo. É urgente moralizar a balbúrdia em que se tornou o Estado - não podemos mais aceitar que alguns enriqueçam à custa de todos os outros. É urgente restituir a credibilidade da Justiça - não podemos mais rir da anedota em que se tornaram alguns veredictos. É urgente retirar à população o enorme ónus financeiro que representa hoje o financiamento da despesa pública, baixando os impostos - não podemos mais sacrificar as famílias e as empresas ao ponto de lhes tirar o que cada vez mais custa a ganhar. Caso contrário, a população que, repito, na esmagadora maioria dos casos, já leva vidas muito precárias e que tem mais a ganhar que a perder, pode muito bem dizer: basta! E, nesse dia, terá o apoio dos militares que, por sua vez, também se inserem no grupo dos precários.

Além disso, é importante realçar que o Estado Previdência pode estar a dar as últimas. Confesso que receio que, ao mínimo sinal de ruptura no pagamento das reformas ou dos crescentes subsídios de desemprego, a indignação suba, irreversivelmente, de tom. Dir-se-á: imprimam as notas que forem necessárias. Pois! O problema é que também esse sistema está em ruptura. A única solução é que todos possam dar mostras de parcimónia, justeza e ética - a começar no Estado. Isso significa matar este regime de democracia indirecta. Significa reduzir o Estado às áreas estritamente necessárias (Justiça, Segurança Pública, Saúde e Ensino Básico). Significa reduzir os impostos. É habitual dizer-se que em Portugal existe um complexo de esquerda. Só há complexo de esquerda porque o Estado é omnipresente, criando situações casuísticas de injustiça social. Retirem o Estado da vida das pessoas - em particular das suas carteiras -, reponham a justiça social e rapidamente mudaremos. Para melhor!

os factos


Os jornais continuam a preencher as primeiras páginas com notícias relacionadas com a justiça - e isso é mau sinal. Pior ainda, as notícias são por vezes indiciadoras de que a ruptura está próxima - aquelas que ilustram que o sistema de justiça português já não consegue condenar ninguém (1).

Gostaria, porém, de voltar ao tema da notícia do Público de hoje para perguntar, e responder, à questão: Porque é que existem 38 mil processos por julgar nos tribunais fiscais? A resposta é que existem tantos processos por julgar nos tribunais fiscais - como de resto nos outros tribunais do país -, porque os juizes portugueses não sabem julgar. E nem se pense que a situação é passível de reforma, porque o problema só se resolve quando se suspender a causa que lhe dá origem - a democracia. A Dra. Manuela Ferreira Leite tinha razão quando declarou que, para fazer certas reformas em Portugal, era necessário suspender a democracia.

Ao fazer a afirmação peremptória de que os juizes portugueses não sabem julgar eu devo ser mais específico para não parecer ofensivo. Em primeiro lugar, os juizes são parte do povo português, partilham a mesma cultura, e uma característica desta cultura - não é de mais insistir -, é a sua falta de sentido de justiça, a sua incapacidade radical para julgar, e os juizes portugueses, sendo parte dessa cultura, não podem ser excepção. Em segundo lugar, nesta incapacidade para fazer justiça, os juizes são tanto vítimas da cultura portuguesa como agentes activos dela.

Começo pelo seu papel de vítimas. A nossa é uma cultura dominada pela ideia de verdade e nós somos exímios a apurar a verdade, dando atenção a todos os pormenores, considerando todos os detalhes, retratando todas as circunstâncias, ouvindo todas as restemunhas com relevância para a determinação da verdade, ainda que as mais distantes. O resultado é que o processo quando chega às mãos do juiz para julgamento tem frequentemente dezoito volumes e catorze mil páginas. A questão óbvia é, então, a seguinte: qual é a pessoa que consegue ler, e ponderar adequadamente, catorze mil páginas de um processo, contendo milhares de factos - alguns importantes, a maioria de pormenor -, milhões de detalhes, centenas de circunstâncias e nuances, dezenas de testemunhos frequentemente incoerentes e, pelo menos, metade deles contraditórios? Ninguém, não há ninguém neste mundo que o consiga fazer.

E é precisamente esta conclusão que me conduz ao papel dos juizes como agentes activos desta cultura que é incapaz de julgar. Um julgamento - ou a justiça - não se faz assim, em processos de dezoito volumes e catorze mil páginas, contendo milhares de factos, pormenores, testemunhos e circunstâncias, cujo ruído torna impossível distinguir aquilo que é importante daquilo que é trivial e acessório. Um julgamento - ou a justiça - faz-se com base em dois ou três factos que são essenciais ou principais no processo. Isso exige, porém, não a atitude mental do português - e do juiz português - com a sua concentração excessiva e minuciosa nos factos (2), importantes e não importantes, a qual torna impossível distinguir o essencial do acessório. Isso exige uma atitude mental radicalmente diferente, uma atitude de afastamento (detachment) que é a atitude típica dos povos de cultura protestante - e, portanto, também dos seus juízes - , e que os leva a perguntar: "O que é que é importante aqui?". Tendo seleccionado os dois ou três factos - no máximo, meia dúzia, às vezes, apenas um - que são essenciais ou importantes no processo, a justiça passa a ser imensamente fácil de fazer na esmagadora maioria dos casos.
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(1) A capa do Correio da Manhã de ontem era assim: "Supremo liberta assassino de irmão", e juntava em subtítulo: "Tribunal superior defende que a prisão pode agravar estado psicológico do jovem de 18 anos que matou o irmão de 11 em 2007".
2) No Processo Casa Pia, a excessiva concentração nos factos foi ao ponto de se concentrar num sinal que um dos arguidos alegadamente tinha no pénis. Esta obsessão com os factos torna a justiça impossível porque um sinal no pénis, hoje em dia, é algo que rapidamente se põe ou tira.