30 dezembro 2007

meritocracia partidária

O Ministro das Finanças disse, sobre a nomeação de Faria de Oliveira para a presidência da CGD, que «seria uma injustiça para Faria de Oliveira dar a entender que a sua escolha teria sido feita apenas com base num critério partidário». O que significa que a sua escolha não se baseou «apenas» num «critério partidário», mas que ele será, a par de outros itens como, espera-se, a competência e a qualificação técnica para o cargo, um aspecto importante a ter em conta. Não será, por isso, «apenas», mas também.

28 dezembro 2007

cacos

Em trinta e três anos de história, o Partido Social Democrata não respeitou senão dois líderes: Francisco Sá Carneiro, o fundador, e Aníbal Cavaco Silva, o domesticador. Quanto ao mais, as elites e as bases do partido laranja não toleraram ninguém: Magalhães Mota, Sousa Franco, Emídio Guerreiro, Francisco Pinto Balsemão, Rui Machete, Carlos Alberto Mota Pinto, Fernando Nogueira, Marcelo Rebelo de Sousa, Durão Barroso, Pedro Santana Lopes, Marques Mendes e, finalmente que a lista é longa, Luís Filipe Menezes. Sá Carneiro foi amado por ter sido o fundador e um homem carismático. Mas também foi odiado, e teve que se demitir da liderança para domar as «elites» de então e calar os conspiradores. Entre eles, o agora muito saudoso «sá-carneirista» Marcelo Rebelo de Sousa. Não tivesse morrido e quem sabe o que lhe teriam destinado após a reeleição de Eanes. Com Cavaco foi diferente. Vindo da mais profunda tradição da direita portuguesa que aspira por quem a trate como se fosse ininputável, Cavaco não respeitava politicamente ninguém. Nem as «bases», menos ainda as «elites», que desconsiderava. Mas, como é de tratos de polé que gosta a direita profunda, o partido rendeu-se-lhe por mais de duas décadas, até à consagração presidencial, à qual o dr. Cavaco chegou praticamente mudo e quedo perante um clamor saudosista. Tudo o mais foi precário e efémero. Mesmo Barroso, o «Delfim» do Professor, teve o caminho quase sempre minado, à cabeça, por Santana Lopes. Até à demissão de Guterres não faltou quem aventasse que o melhor caminho seria a mudança de líder.

Daqui resulta que o PSD, um partido que não sabe viver à margem do poder mas que pouco se aplica para o conquistar, só lá vai quando o PS fraqueja, ou quando tem um líder que o domestique e cative o eleitorado. Como estes são mais raros do que os cometas e não se antevê que lhe passe algum por perto, nos próximos anos (o último que foi ensaiado foi o cometa Borges), o PSD arrisca-se a desaparecer, dissolvido nas suas guerrilhas internas. Na verdade, parte significativa do seu eleitorado já marchou de armas e bagagens para o PS de Sócrates, donde parece não querer regressar. Crucificando Menezes e a base de poder autárquico que ele simboliza, e que é o que sobra do tecido sociológico do partido, e com mais quatro anos de maioria absoluta socialista, não haverá quem seja capaz de colar os cacos.

27 dezembro 2007

favas contadas

O Menezes é péssimo! Pronto, está assente, estabelecido e adquirido. O que o homem vai dizendo não presta. É demagogia barata sem interesse nenhum. E as elites, sobretudo as do PSD, não gostam de demagogia. Como é sabido, e é público e notório. O que ele diz sobre o Estado, então, é um absurdo. O homem é «lélé da cuca» e não é para levar a sério. O Estado não se desmantela em seis meses. Nem em sete, nem em oito, nem em dez, nem nunca em tempo algum. As elites do PSD não concordam com a ideia, que é péssima e demagógica. E anarquista, claro está, logo, perigosa. Muito perigosa, mesmo. O Estado é para preservar, vá lá, para melhorar se houver tempo para isso. Para «desmantelar» era o que mais faltava. O Estado somos todos nós, ora essa! E também não tem substância. O homem é oco por dentro e por fora. Não tem conteúdo. Mas tem delírios. Com tubarões, veja-se lá bicho mais desagradável. E tem choros. Em público, que vergonha, quando levou uma assuada dos «sulistas, elitistas e liberais». Como pode um homem que foi vaiado por «liberais» vir agora dizer que quer «desmantelar o Estado». E logo em seis meses, o disparate!

Por isso, o melhor é esquecermos isto nos próximos tempos. Lá para 2012 voltamos a pensar no assunto. O Sócrates que ganhe as próximas, que nem está a fazer um serviço assim tão mau quanto isso. O Menezes não dá luta e já as perdeu. São favas contadas para o Sócrates. Com o Mendes era diferente. Haveria de suar se as quisesse ganhar.

26 dezembro 2007

a taça

Como o Pedro Arroja referiu aqui, o Portugal Contemporâneo foi eleito, pelos leitores de O Insurgente, o «Melhor Blogue de Direita de 2007». Estas coisas são para se saborear devidamente, razão pela qual só hoje a comento.

Apesar de não estarem a concurso, pelo menos, dois potenciais vencedores – o próprio O Insurgente e o Atlântico, entre outros -, não podemos deixar de referir que competimos com concorrentes de excelência, a saber, o Blasfémias (2º lugar), o Quarta República (3º lugar), O Cachimbo de Magritte (4º lugar) e o 31 da Armada (5º lugar). Pesos pesados, como se vê.

Não queremos deixar de aproveitar esta época natalícia sem agradecer ao O Insurgente o facto de nos ter nomeado, aos nossos leitores e eleitores por nos escolherem, e obviamente, a todos os concorrentes, sobretudo, a estes últimos, pelo fairplay demonstrado nas felicitações que nos enviaram. Para o ano, certamente que a «taça» mudará de mãos.

pedro arroja na visão

O Pedro Arroja deu à Visão, hoje publicada, uma longa e interessante entrevista. Leitura imprescindível.

25 dezembro 2007

não sabem


Utilizando dados de 2005, a revista britânica The Economist calculou um índice de qualidade de vida para os diferentes países do mundo. Em seguida, estabeleceu o ranking dos países segundo este índice, comparando-o com o ranking baseado somente no PIB per capita (cf. pág. 4). O índice de qualidade de vida inclui, para além do indicador da riqueza material (PIB per capita), outros indicadores como a cultura familiar e comunitária, o clima e a geografia, a liberdade política, a segurança de emprego, etc. (cf. pág. 2).

Algumas conclusões importantes emergem do estudo. Primeira, o ranking da qualidade de vida no mundo é liderado pela Irlanda, talvez o país mais ortodoxamente católico do mundo.

Segunda, praticamente todos os países de tradição vincadamente católica - a única excepção é a Áustria - sobem no ranking da qualidade de vida, face ao ranking baseado no PIB per capita. Portugal sobe 12 lugares, a Espanha 14 e a Itália 15. Os países católicos da América Latina sobem sem excepção. O Brasil, por exemplo, sobe 19 lugares.

Terceira, no que respeita aos países protestantes, a performance é mista quando se compara o ranking da qualidade de vida com o ranking do PIB per capita. Entre os países nórdicos, a tendência é para subir; já entre os países anglo-saxónicos da Europa e da América (Reino Unido, EUA, Canadá), a tendência é para caír.
.
No balanço, a conclusão é a de que, do ponto de vista da riqueza material, os países protestantes tendem a levar a melhor sobre os países católicos, mas quando outras dimensões da vida são incluídas, não existe diferença apreciável entre eles. O primeiro lugar pertence mesmo a um país católico. Portugal é o 19º melhor país entre os cerca de 200 que existem no mundo - um facto notável quando os seus intelectuais possuem uma longa e irreprimível tradição de dizerem mal do seu país, significando que, geralmente, eles não sabem do que é que estão a falar. Finalmente, o ranking foi elaborado por técnicos ingleses, sugerindo que se existem enviesamentos culturais nas apreciações, eles não são certamente em favor da cultura católica.

24 dezembro 2007

has become


A caminho da qualidade de vida.

nem o pai morre


Rui,

Ou você se despacha a fazer o post acerca desta grandiosa vitória, ou então faço eu. É que, assim, nem o pai morre nem a gente almoça...

Bom Natal para si e para todos os leitores do Portugal Contemporâneo, e respectivas famílias.

PS. Eu gostaria de dedicar a vitória à Cristina Keller (sem ofensa, claro).

23 dezembro 2007

o teorema do menino-mimado


Considero uma família em que o pai é altruísta e os dois filhos, cacá e teté, são meninos mimados e radicalmente egoístas. O rendimento total da família é distribuído pelo pai, entre si e os filhos. A função de utilidade (ou bem-estar ou felicidade) do pai varia directamente com o rendimento familiar total e com o bem-estar dos filhos. A função de utilidade de cada um dos filhos varia directamente com o seus respectivos rendimentos pessoais e inversamente com o bem-estar do irmão (irmã).

Na situação inicial, o pai ganha um salário de 7000, o cacá um salário de 2000 e a teté um salário de 1000, para um rendimento total familiar de 10000. O pai distribui o rendimento familiar entre si próprio e os filhos em proporções fixas: 50% (5000) para si próprio, 30% (3000) para o cacá e 20% (2000) para a teté. (Isto é, na situação inicial, o pai dá uma mesada ou contribuição de 1000 a cada um dos filhos)

Terá o cacá interesse em adoptar uma acção que prejudique a teté, reduzindo o seu salário de 1000 para 200, ao mesmo tempo que ele próprio beneficia da acção, passando o seu salário de 2000 para 2300? Suponho que a acção não suscita represálias, isto é, que o cacá actua sem o conhecimento do pai e da irmã. (Por exemplo, o cacá lança um boato sobre a irmã junto do patrão desta levando ao seu despedimento e a teté só consegue arranjar um emprego alternativo por um quinto do salário anterior; ao mesmo tempo, o cacá passa a trabalhar em part-time para o ex-patrão da irmã, aumentando o seu salário total de 2000 para 2300).

A resposta à questão anterior é negativa. A acção do cacá reduziria o rendimento familiar total de 10000 para 9500 e o cacá passaria a receber agora 2850 (30%) em lugar dos 3000 anteriores.

É neste resultado que consiste o teorema do menino-mimado (the rotten-kid theorem) de Gary Becker: "Cada beneficiário (cacá e teté), mesmo que seja egoísta, maximiza o rendimento total (familiar) do seu benfeitor (pai) e, por conseguinte, internaliza todos os efeitos da acção deste último sobre outros beneficiários".

Este teorema tem um corolário importante no que respeita ao comportamento invejoso: "cada beneficiário, mesmo que tenha inveja dos outros beneficiários ou do seu benfeitor, maximiza o rendimento total (familiar) do seu benfeitor (pai) e, portanto, ajuda aqueles que inveja" (*)

Na realidade, é no interesse do cacá, mesmo que inveje a irmã, promover a teté junto do patrão, a fim de que este lhe aumente o salário. Se o patrão passar o salário da teté de 1000 para 1500, o rendimento do cacá sobe de 3000 para 3150.

(*) Gary S. Becker, Tratado sobre la Familia, Madrid: Alianza Editorial, 1987, pp. 239-40 (trad.)

amor livre

A expressão amor livre engloba dois termos, amor e livre, que me parecem bastante contraditórios. Contudo o seu uso banalizou-se tanto que esta contradição não salta imediatamente à vista. O mesmo acontece de resto com outras expressões de uso corrente como socialismo democrático, por exemplo.
.
O amor é um sentimento tão procurado e valorizado que a simples ideia de que pode ser obtido livre de quaisquer ónus, como o sol ou o ar que respiramos, desafia a inteligência. Só mesmo os néscios ou as crianças acreditariam em tal princípio. Uma sociedade que aceitasse o amor livre como norma de comportamento estaria por certo infantilizada.

Ninguém estaria disposto a quaisquer tipos de sacrifícios, nem sequer a aceitar as responsabilidades inerentes às consequências do relacionamento amoroso. O Estado seria chamado a assumir as responsabilidades dos progenitores, subsidiando a criação dos filhos, quando os pais estivessem para aí virados, ou pagando a famílias de acolhimento, ou acolhendo as próprias crias em estabelecimentos públicos. Na alternativa o Estado pagaria os abortos, se fosse essa a escolha das mães. De facto foi a este ponto que já chegamos.

Para o Estado, enquanto entidade social, é irrelevante se a opção dos pais recai no primeiro cenário ou no segundo porque ambas as opções, analisadas à luz fria da razão, parecem razoáveis. Apesar do Estado assumir o papel do Pai ainda não lhe atribuímos emoções e sem emoções todas as opções parecem idênticas.

Para as mulheres, em particular, o amor livre é mais nocivo porque a natureza dotou-as de menos oportunidades reprodutivas do que aos homens e portanto elas necessitam de ser mais criteriosas na escolha de parceiros e de lhes cobrar bem cobrado o investimento que fazem com o amor que lhes dedicam.

Livre? Só se for como no Serviço Nacional de Saúde, é livre para o consumidor mas alguém vai ter de pagar a conta.
.
Autor: Joaquim Sá Couto, enviado por e-mail.


22 dezembro 2007

estoura recursos

O dinheiro é de todas a maior invenção humana. Quando ouço alguém comentar que não dá valor ao dinheiro fico sempre perplexo porque sem dinheiro não seriam possíveis as condições económicas que garantem a nossa liberdade. Será a aversão ao dinheiro o resultado de uma cultura católica? Não sei.

O que sei é que a noção de dinheiro não é intuitiva. Intuitivas são as noções de propriedade, presentes já em muitos mamíferos, e de troca que estão presentes mesmo em sociedades primitivas.

Eventualmente emergiu o conceito de moeda, na antiguidade, e muito mais tarde a compreensão do custo do dinheiro ou juros, que a Escola de Salamanca teorizou como legítimos, invocando o custo de oportunidade.

Do que fica dito deduz-se que para compreender e dar valor ao dinheiro é necessária educação e até amadurecimento cultural. Uma população que não saiba dar valor ao dinheiro fica diminuída perante as que o sabem fazer. Sem poupar e investir não é possível garantir o futuro e portanto os cidadãos responsáveis preocupam-se com este assunto. Só mesmo às crianças é dada a prerrogativa de viverem despreocupadamente o presente.

Ora que conclusão se pode tirar de observar um País aonde uma grande parte da população não sabe dar valor ao dinheiro, estoura recursos em futilidades, não poupa e até se endivida para lá das suas possibilidades? Estão mesmo a ver a resposta a esta pergunta: Teria de ser um País com uma população bastante infantilizada.
Autor: Joaquim Sá Couto, enviado por e-mail.

the articles of the faith


Quando perguntaram a Hayek, que era um agnóstico, qual a melhor fé religiosa, ele não teve dúvidas em responder: a católica, "because it contains the articles of the faith". (Ele próprio acabou por ter um funeral católico). O episódio ilustra, talvez, a confiança que Hayek punha na discussão racional como meio para chegar àquilo que ele designava como the good society. Não era muita.

A ideia da morte de Deus e o ateísmo moderno não poderiam nunca ter saído senão da tradição protestante. Quando se reconheceu a cada homem a possibilidade de encetar uma relação directa com Deus, sem a intermediação da Igreja, o resultado não poderia ser outro: cada homem individualmente - e todos em conjunto - iria, em primeiro lugar, duvidar da existência de Deus, depois iria negar a Sua existência, ou matá-lo, a fim de poder ocupar o lugar d'Ele.

Tirando a Igreja do caminho, primeiro, e depois a própria ideia de Deus, ficou aberta a via para o assalto a dois dos mais importantes sentimentos que mantêm uma sociedade de pé, e dois sentimentos que andam de braço dado um com o outro: o altruísmo e a autoridade. E como consequência desses desenvolvimentos, o século XX viria a ser o século mais violento e o mais destruidor que a humanidade jamais conheceu.

Este período de violência e destruição sem precedentes coincidiu, sintomaticamente, com o período mais baixo da Igreja Católica em termos de influência social, ao ponto de, a partir de finais do século XIX e estendendo-se pela primeira metade do século XX, não terem sido raras as vozes que previam a sua extinção.

Por vezes, como notou Paul Johnson, os factos mais importantes da história não são aqueles que acontecem, mas aqueles que nunca acontecem. Deste ponto de vista, talvez dois dos mais importantes factos da história do século XX tenham sido a não-morte de Deus e a não-extinção da Igreja Católica.

Eu pertenço à classe daqueles que prevêem uma influência crescente da Igreja Católica no próximo século e a conversão de Tony Blair ao catolicismo, para além das influências familiares óbvias (a mulher é católica e os filhos são educados catolicamente) é um sinal de confirmação da minha crença.

A Igreja Católica é frequentemente acusada de ser uma instituição conservadora - e, na minha opinião, é isso que ela deve ser. Não compete à Igreja liderar a humanidade e assumir os riscos da liderança e da inovação - riscos que já a teriam desprestigiado e destruído. Pelo contrário, é a função principal da Igreja seguir atrás da humanidade, retendo os valores, as instituições e os comportamentos que, de uma forma permanente, provaram ser bons para a humanidade, sem nunca se deixar seduzir pelas modas e pelas popularidades dos tempos. E isso a Igreja, mau grado algumas cedências e hesitações, tem conseguido fazer, e o Papa Bento XVI que é um sofisticado conservador, fá-lo de forma eloquente.
.
A Igreja Católica possui, na sua tradição, todos os ingredientes que, combinados num delicado equilíbrio, constituem as condições essenciais a uma sociedade livre, próspera e pacífica, como já notei numa série de posts publicados neste blogue e iniciada aqui. São eles: não possui orgão legislativo, possui democracia, possui abertura e meritocracia, possui descentralização e poder local, possui autoridade e hierarquia, não possui poder arbitrário, possui justiça humanizada, possui assistência aos pobres, possui igualdade de tratamento.

estalou

Ludwig von Mises e Ayn Rand, talvez os dois mais conhecidos representantes do individualismo radical moderno - que em posts anteriores caracterizei como o individualismo do menino-mimado - encontraram-se pela primeira vez a convite, e em casa, do jornalista Henry Hazlitt.

Após recebê-los, o anfitrião foi à cozinha preparar as bebidas e deixou-os a sós na sala. O que aconteceu então? Estalou uma enorme zaragata entre os dois.

converteu-se

Tony Blair converteu-se ao catolicismo. O gesto é simbólico, em mais do que um sentido. Primeiro, porque vem de um homem que durante muitos anos foi primeiro-ministro de um Estado confessional anglicano. Segundo, porque vem de um país que é um dos centros seculares de oposição à cultura católica. Terceiro, porque pode levar os intelectuais dos países de tradição católica - como Portugal - que, pelo menos desde a revolução francesa, rejeitam generalizadamente a sua cultura e troçam dela, e procuram imitar a cultura anglo-saxónica e protestante, a reconhecer que podem ter andado a laborar todo este tempo num erro intelectual de dimensões grandiosas.

no rabo


Para ser realista, uma sociedade constituída exclusivamente por meninos-mimados seria uma sociedade impossível porque seria uma sociedade incapaz de se reproduzir. Os meninos-mimados não resistiriam um mês de vida sem o altruísmo dos pais.

É o altruísmo - não o egoísmo - que torna, em primeiro lugar, a humanidade possível, e a primeira grande experiência da vida em altruísmo, para qualquer homem (ou mulher) é a paternidade (ou a maternidade). A partir daí, um homem (ou mulher) fica a saber que está na vida, não apenas para cuidar exclusivamente de si próprio, mas também para cuidar dos outros e pôr-lhes a mão por baixo.

É o altruísmo, praticado em primeiro lugar e com a maior intensidade na família, mas também, por extensão, embora de uma forma mais difusa, a toda a sociedade, que mantém a sociedade de pé. A experiência do pai ou da mãe, que olha para o seu filho como uma pessoa totalmente dependente de si, vai despertar nele ou nela, com o decorrer do tempo, a descoberta de que existem pessoas na sociedade que, mesmo depois de adultas, são radicalmente dependentes e incapazes de se governarem a si próprias, e que a alternativa é, ou deitar-lhes a mão, ou deixá-las morrer de fome.

O sentimento de altruísmo, cuja primeira e mais radical manifestação tem lugar no seio da família, está relacionado directamente com o sentimento de autoridade. A primeira experiência marcante de autoridade natural que um homem ou uma mulher conhece na vida é a sua autoridade como pai ou como mãe. E a autoridade acaba por ser uma consequência directa do altruísmo. Não existe autoridade sem altruísmo. Em última instância, o filho só obedece à mãe, e frequentemente a venera, porque sabe que ela lhe quer bem, e sob quaisquer circunstâncias. Numa sociedade de meninos-mimados, de onde o altruísmo está ausente, a autoridade é impossível, ninguém respeita ninguém, todos se detestam mutuamente.

A prevalência do sentimento de altruísmo numa sociedade, bem como do sentimento de autoridade, depende assim, criticamente, da força, da coesão e da vitalidade da instituição familiar. Uma sociedade onde as pessoas se casam cada vez menos e mais tarde, onde o casamento é substituído por relações mais ténues como a união de facto, onde o divórcio se torna mais frequente, onde as pessoas têm cada vez menos filhos, e onde a homossexualidade tende a ganhar estatuto relativo face à heterossexualidade, é uma sociedade de onde tendem a desaparecer os sentimentos de altruísmo e autoridade.

Em lugar deles, tendem a ganhar importância relativa na sociedade os sentimentos de egoísmo e liberdade, em que esta última é entendida como uma subtracção às peias da autoridade. Esta é a forma de liberdade apreciada pelo menino-mimado, uma liberdade que é exercida como egoísmo. O menino-mimado sente-se livre para fazer tudo aquilo que quer, para dizer tudo aquilo que quer, para maltratar todos aqueles que quer, sabendo de antemão que não existe ninguém na sociedade com a autoridade suficiente para lhe pregar dois açoites no rabo.

Esta forma de liberdade irresponsável não tem nada que ver com a liberdade que é exercida por uma autoridade. Uma autoridade livre - de que um pai ou uma mãe são exemplos acabados - exerce a sua liberdade como altruísmo - e é daí que deriva a sua autoridade.
.
Uma sociedade só se aguenta enquanto nela prevalecerem uma réstea de altruísmo, autoridade e liberdade, entendida neste último sentido. Ela tende a enfraquecer e, no limite a desaparecer, quando o menino-mimado triunfar, substituindo o altruísmo pelo egoísmo radical, matando o sentimento de autoridade, e praticando a liberdade como irresponsabilidade irrestrita.

depois queixem-se

Luís Filipe Menezes começou a falar e falou bem. Na entrevista de hoje ao Expresso, entre outras coisas com interesse, Menezes anunciou o seu modelo de Estado alternativo ao do Partido Socialista. Ele quer um Estado que esteja fora do «ambiente, das comunicações, dos transportes dos portos», que contratualize com os privados na «prestação do Estado Social», e pretende acabar com os monopólios na «saúde, educação e segurança social». Anuncia ainda que irá liberalizar a legislação laboral e diz que «desmantela o Estado em seis meses». Nada mau para um líder do PSD. O primeiro que, em trinta anos, se propõe atacar o Estado em vez de o defender.

Os seus adversários do Partido Socialista, muito compreensivelmente, já ripostaram. Estão a defender o poder que detêm e o modelo de Estado Social de que são defensores. A estratégia é fazer passar Menezes por tolinho, a ele e a estas ideias perigosamente «anarquistas». Nada de mais natural, portanto, tratando-se do Partido Socialista. Menos compreensível é que, em vez de se congratularem com o discurso liberalizador de Menezes e procurarem aprofundá-lo, haja quem se diga liberal e ande entretido com os devaneios existenciais do líder do PSD. Depois queixem-se, como dizia o outro.

21 dezembro 2007

benoist sobre maurras

«Sa démonstration de la supériorité intrinsèque du principe monarchique sur le principe républicain ou démocratique s'associe de ce fait à une idéalisation, que j'estime insoutenable, de l'Ancien Régime. Maurras, pour ne citer que cet exemple, ne voit pas que les corps intermédiaires ont commencé à se disloquer sous l'action de la monarchie administrative, et que cette dislocation commence avec la lutte contre le système féodal. Il affirme que la monarchie française était fondamentalement décentralisatrice, alors que c'est le contraire qui est vrai. Cette vision idéalisée de l'Ancien Régime n'a pas seulement été contredite par l'historiographie contemporaine. Elle est déjà contredite par les observations particulièrement profondes faites au XIXe siècle par Renan et surtout par Tocqueville.

Du fait de cette idéalisation de l'Ancien Régime, Maurras est évidemment conduit à exempter la monarchie française de toute responsabilité dans les événements qui ont abouti à sa perte. (...)

(...) Même sa critique du libéralisme est assez faible. Elle dérive de sa critique de Rousseau, alors que sur de nombreux points Rousseau est l'adversaire résolu du libéralisme (et un adversaire beaucoup plus conséquent que ne l'est Maurras). Mais Maurras a-t-il jamais lu de
Rousseau, auteur extraordinairement complexe, autre chose que ce qu'en a écrit Jules Lemaître ? Certes, il voit bien que le libéralisme vise à « dégager l'individu [...] de ses antécédents naturels ou historiques » pour accoucher d'une société d'egos. Il voit bien aussi le lien entre l'individualisme et le despotisme d'Etat, la massification et l'atomisme social. Mais sa critique n'ajoute pas grand chose à ce qu'un Louis Veuillot ou un Donoso Cortès, pour ne citer qu'eux, ont pu dire avant lui. Il n'aperçoit ni les fondements anthropologiques ni les fondements économiques du libéralisme. Il ne discute pas les vues d'Adam Smith, de Mandeville ou de Ricardo. Il ne voit pas que le libéralisme est une doctrine fondamentalement antidémocratique, qui ne peut que récuser la décision populaire chaque fois que celle-ci viole les présupposés individualistes qui sont les siens. Il ne s'interroge pas sur la notion de marché et le paradigme de la « main invisible». Il moque l'affirmation selon laquelle les enfants naissent «libres et égaux en droit» sans voir que la conception du droit dont se réclament les Lumières vise moins à nier qu'à corriger les inégalités de nature (l'idée étant, précisément, qu'une inégalité de nature ne saurait fonder le droit naturel). Il ne voit pas que l'absolutisme moderne prend sa source chez Jean Bodin. Sa critique de la démocratie, que je ne partage pas, est elle-même incroyablement naïve : il y a d'autres façons de réfléchir sur la souveraineté populaire qu'en la dénonçant comme simple «gouvernement du nombre».»

Entrevista com Alain de Benoist, Bulletin Charles Maurras, Abril-Setembro, 2001

20 dezembro 2007

coisas simples

O CDS já encontrou uma pergunta para o referendo sobre a ratificação do Tratado de Lisboa. É ela: «Concorda com a aprovação do Tratado de Lisboa?».

Para esta questão formulada de modo aparentemente simples, mas que encerra um sem fim de transcendências, contribuiram, segundo Diogo Feyo, constitucionalistas, comunitaristas e outros juristas de gabarito. Para o líder da bancada do CDS, trate-se de «uma pergunta facilmente estendível e que permite ultrapassar os argumentos da complexidade do referendo».

No caso de alguém não a ter compreendido como deve ser, aqui vai ela novamente: ««Concorda com a aprovação do Tratado de Lisboa?». Coisas simples, como se vê.

Malalegria



Malalegria é um neologismo que inventei para traduzir o vocábulo germânico schadenfreude. Literalmente schadenfreude quer dizer alegria (freude) com o mal ou perdas (schaden) que ocorram a terceiros. Malalegria é por isso uma simples tradução literal. Vamos ver se pega!

Apesar da sua origem germânica, o sentimento de malalegria não está de modo algum circunscrito a qualquer país ou época e pelo contrário parece estar bem disseminado. Nos países de língua inglesa o termo foi até cooptado directamente do alemão e é de uso corrente.
Não conheço nenhuma explicação satisfatória para este sentimento tão prevalecente. As mais vulgares dizem que é um prazer que advém de sabermos que as desgraças que ocorreram a outros poderiam ter ocorrido connosco e seria portanto uma espécie de sentimento de alívio.

Não gosto dessa explicação porque me parece que a malalegria está muito mais associada a uma espécie de vingança, quando alguém não segue os nossos conselhos, por exemplo, e sofre um percalço.

A malalegria poderá estar ainda associada ao chamado "killer instinct" e ser uma componente indissociável deste. Quando o povo diz: Não tenhas pena da galinha se não ela não morre, talvez esteja a transmitir esta ideia.

As crianças deliram com malalegria quando algum infortúnio ocorre perante os seus olhos e um elemento importante da educação é domesticar essa tendência. Numa população infantilizada, tese que eu tenho vindo a defender, seria de esperar que a malalegria estivesse omnipresente, como num jardim de infância. É esse o caso?

Com certeza! Os portugueses adoram as atribulações de terceiros e rezam pelas desgraças alheias. Apresento como evidência o tempo que os canais de televisão dedicam a explorar os entrefolhos de mil e uma misérias humanas.


A malalegria tem ainda outra vertente importante. Tolhe a iniciativa individual e a diferenciação dos portugueses porque correndo riscos podemos falhar e se falharmos seremos o alvo de chacota. Mais vale pôr o bibe e não dar nas vistas!

Autor: Joaquim Sá Couto, enviado por mail

a crise no bcp

O Sr. Presidente da República está preocupado com a crise do BCP. Com receio de que o banco se «fraccione» pelos seus outros concorrentes nacionais e estrangeiros, chamou a Belém o Sr. Ministro das Finanças e disse-lhe isso.

A situação é dramática, mas não é exclusiva do maior banco privado português. Por baixo de minha casa, por exemplo, existe uma bela lavandaria onde mando lavar e engomar boa parte da roupa da minha família. Os donos eram dois lusitanos de gema que se zangaram e venderam o negócio a uns indianos. Indianos, estão a ver? Capital estrangeiro a tomar conta de uma bela lavandaria portuguesa. E, mesmo ao lado, uma das mais viçosas empresas fabricantes e vendedoras de mobiliário de escritório fechou sem aviso, ficando a clientela resignada a dividir-se pelas lojas da concorrência. Uma vergonha, não é? Certamente, o Sr. Presidente da República não deixará passar em claro estas duas ignomínias.

Porque eu também não simpatizo com o fim de um dos poucos símbolos do capitalismo português do pós-25 de Abril. Só que não compreendo o que possa ter a ver com isso, numa sociedade de economia de mercado, o Sr. Presidente da República.

cláusula de exclusão

Os alemães estabeleceram na Constituição de 1949, por influência norte-americana, uma regra que impede os partidos políticos com menos de 5% do total dos votos para o Parlamento Federal de terem assento nesse órgão de soberania. Esta regra, vulgarmente conhecida como «cláusula de exclusão», foi originalmente concebida para impedir o acesso ao parlamento de partidos extremistas de influência nacional-socialista ou comunista. É uma regra limitadora da participação partidária nos órgãos de soberania do Estado, mas não inibe a sua existência, nem impede que eles tenham lugar noutros órgãos de soberania, entre eles os estaduais e locais. Apenas fixa uma quota mínima de representatividade para que eles possam ter acesso à instituição política legitimadora do governo federal, isto é, ao exercício da soberania federal, e não propriamente para terem o direito de existir. E conjuntamente com outras normas constitucionais (por exemplo, a moção de censura construtiva, que consta do artigo 67º), tem garantido ao país uma invejável estabilidade governativa, sem que ninguém se queixe na Alemanha de falta ou de diminuição de direitos políticos.

19 dezembro 2007

sondagem 2008

A pergunta da nossa última sondagem do ano ficará à votação até o dia 30 de Dezembro. Ela é a seguinte: «Para Portugal, o ano de 2008 será: a)Melhor; b) Pior; c) Igual; d) Muito Melhor; e) Muito Pior». Aguardam-se os resultados.

18 dezembro 2007

darwinismo partidário

A lei dos partidos políticos em vigor é um caso flagrante de darwinismo partidário: os grandes engolem os pequenos, os fortes devoram os fracos. Só assim se pode compreender a regra em execução pelo Tribunal Constitucional, da verificação da condição dos 5.000 militantes activos para manter o alvará de partido político.

A primeira questão é a seguinte: o que é um «militante activo»? É um social-democrata que anda aos saltos? Um socialista incapaz de estar parado cinco minutos? Uma bloquista politicamente hiperactiva? Ou um democrata-cristão que não passa um dia sem ir à Missa e ao Caldas? Será um cidadão filiado numa agremiação partidária com as quotas em dia? Que participa, pelo menos uma vez por ano, em comícios e plenários concelhios e distritais? Será um militante na asserção marxista-leninista, isto é, um cacique intriguista controlado pelo Comité Central? Ou, na versão mais conservadora, um cacique intriguista incontrolável?

Por qualquer um destes critérios, duvido que, com excepção dos partidos que estão ciclicamente no governo, todos quantos estejam na oposição cumpram a lei. Lei que é mais do que absurda, já que em vez de dontrolar o acesso dos partidos políticos aos fundos públicos e aos benefícios que lhes concede (tempos de antena, subídios, etc.) se eles tiverem patamares eleitorais medíocres, atenta, pura e simplesmente, contra o direito constitucional de livre associação política.

Estado-Máximo

O menino-mimado ambiciona viver - e sente-se com direito a viver - à custa dos outros. Tal é, porém, impossível, numa sociedade onde todos são meninos-mimados, e enquanto as relações entre eles se mantiverem relações voluntárias. Sendo cada um deles um egoísta radical, nesta sociedade ninguém dá nada a ninguém - excepto se fôr forçado.

O Estado representa o monopólio da coerção na sociedade. Daí a atracção que o Estado exerce sobre o menino-mimado. O Estado é a única instituição que permite ao menino-mimado viver à custa de todos os outros. Numa sociedade de meninos-mimados, o Estado torna-se a instituição mais disputada da sociedade. Aqueles que já conseguiram lugares na esfera do Estado protegem-se. Os que estão de fora, protestam, esperneiam, gesticulam, fazem greves, minam, não com o objectivo de pôr o Estado ao serviço dos cidadãos - porque não existe uma réstea de altruísmo no menino-mimado - mas com o propósito de desalojar e substituir os que já lá estão ou, no mínimo, partilhar com eles os benefícios.

Entre as diferentes facções de meninos-mimados que nesta sociedade tendem a surgir com vista a conquistar o poder do Estado, a solução que acomoda as diferentes facções, concedendo a cada uma delas um certo número de lugares na esfera do Estado, tende a prevalecer, porque é aquela que envolve menor risco, em comparação com a estratégia alternativa de confronto, em que uma facção dominante exclui as demais.

Por isso, numa sociedade de meninos-mimados, o Estado tende a crescer sem limite à medida que a facção que, em cada momento, é dominante se vê obrigada a respeitar as posições conquistadas pelas demais facções e a acomodar novas posições, em nome da paz social. Numa sociedade livre e de meninos-mimados o crescimento do Estado é a condição sine qua non da paz social porque é ele que, pelos privilégios que dispensa a um número crescente de meninos-mimados, cala as vozes contestatárias e evita aquilo que, de outro modo - isto é, se os meninos-mimados ficassem em grande maioria fora da esfera do Estado - seria um verdadeiro pandemónio e uma sociedade em que seria impossível viver.

Estão, por isso, equivocados os autores liberais como von Mises, Ayn Rand ou Rothbard que, defendendo um individualismo radical, apelam, em seguida, ao Estado-Mínimo. Trata-se de uma contradição lógica. Numa sociedade onde prevalece o individualismo radical do menino-mimado, o Estado que vai prevalecer é o Estado-Máximo, não o Estado-Mínimo. Alternativamente, para que o Estado-Mínimo pudesse prevalecer na sociedade, esta teria de ser composta por cidadãos predominantemente altruistas - exactamente o contrário daquilo que os meninos-mimados são.

Pixotes


Apesar de estar convencido de que a maioria dos portugueses concorda intuitivamente com a tese do nosso individualismo infantil, talvez seja útil ilustrar a teoria com algumas demonstrações desta realidade. Uma dessas demonstrações poderá ser o crescente número de gays que tem surgido em Portugal, a acreditar na influência do respectivo lobby.

Como se trata de um fenómeno relativamente novo poderíamos e bem interrogarmo-nos sobre a sua origem. Seriam seres humanos que, em grande número, sofriam no armário as vicissitudes da sua condição e que só devido à evolução dos costumes puderam agora emergir socialmente? É possível, mas um cientista de renome internacional, Desmond Morris, autor de "O Macaco Nu", parece ter opinião diferente. Num livro recente, intitulado "The Naked Man", Desmond Morris afirma que os homens têm uma maior tendência para se tornarem gays quando retêm características infantis ou juvenis quando já são adultos.

A acreditar nesta teoria de um cientista de renome é fácil deduzir que o crescente número de gays em Portugal poderá estar relacionado com o nosso individualismo infantil.

Mas Desmond Morris vai mais longe e explica que os homossexuais são mais criativos porque guardam a agilidade mental e a jocosidade própria de uma criança. Ora nem tudo portanto são más notícias, deste infantilismo poderão surgir ideias novas que nos ajudem a encarar o futuro de forma mais positiva. Talvez estejamos a atravessar um período de destruição criativa.

Autor: Joaquim Sá Couto, enviado por mail

Que fazer?



Num post anterior defendi a tese de que Portugal não é um país culturalmente colectivista. É, pelo contrário, um País de individualistas radicais mas que são infantis na expressão desse individualismo. Especulei depois sobre as origens desta singularidade que chamei proto-liberalismo e concluí que se ficou a dever à influência nefasta do Estado Novo e do período do Post-25 de Abril (Novo Estado?).

Agora interrogo-me sobre o que fazer? Perdoem-me os puristas a Leninada. Qual deverá ser a melhor estratégia política para liberalizar Portugal? Fundar um novo partido? Organizar congressos? Ensinar? Teorizar?Nada disto resultará. Neste sentido subscrevo a tese do Prof. Pedro Arroja de que estas acções serão inúteis. Então o quê?

A resposta é muito simples, se aceitarmos as premissas da minha tese. Precisamos apenas de disciplina. A meninada que anda numa algazarra que nos torna ingovernáveis anseia por disciplina. Necessita de regras claras de comportamento e de um sistema de penalizações e de recompensas que todos entendam. Este anseio explica muito do sucesso de Sócrates e de Cavaco.

Em termos políticos essa disciplina depende inteiramente de uma reforma do sistema judicial que garanta a igualdade perante a Lei e a sua aplicação célere e rigorosa. Ainda, o respeito absoluto pelos direitos cívicos dos cidadãos.

A tarefa de todos os que defendem a liberdade, nos seus mil paladares e nuances, deve portanto ser, na minha opinião, uma luta firme e cerrada por um Estado de direito que garanta a nível cultural a disciplina de que precisamos com urgência. A ideia de Liberdade tem tanta força intrínseca que não necessitará de gurus para se impor. Apenas de regras claras e de diciplina para que todos entendam como dela podem beneficiar, sem ficarem expostos aos abusos de bullies.

Precisamos, talvez, de organizações, como a American Civil Liberties Union (ACLU) que tenham grande exposição mediática e que pugnem em tribunal pela defesa de princípios fundamentais. Precisamos apenas de disciplina.

Autor:Joaquim Sá Couto, enviado por mail

afinal, o beto era «maluco»?

«Beto Maluco» morreu metralhado pelas balas que, segundo se julga, os seus rivais da noite portuense lhe terão destinado. A origem do conflito estará, ao que tudo indica, nas vinganças de gangs ligadas a negócios ilícitos, sobretudo ao tráfico de droga, e em disputas de territórios e quotas desse mercado negro. Ele não será, no fim de contas, muito diferente dos outros inúmeros casos de criminalidade violenta organizada, que existem por esse mundo fora.

O que leva pessoas como, supostamente, o «Beto Maluco» a entrarem neste tipo de negócio não é, como uma certa esquerda se esforçou durante décadas por demonstrar, nem a pobreza congénita dos protagonistas, nem as condições sociais onde nasceram e viveram, menos ainda a falta de estudos ou de educação. Não são, por isso, «bons selvagens» que a sociedade estragou e encaminhou, por falta de recursos e condições, para uma vida criminosa. Eles são, como quaisquer outros, profissionais que fizeram escolhas e tomaram decisões racionais.

Na verdade, o que leva as pessoas a este tipo de crime é a apetência por uma actividade de baixo esforço e elevadíssimos lucros obtidos num curto prazo de tempo. Se comparada com outras profissões, o comércio de droga confere ganhos fáceis, rápidos e muito consideráveis, que permitem atingir rapidamente elevados níveis de vida a quem a exerce. Os riscos da profissão são grandes, é certo, desde a prisão até à morte, mas, apesar de tudo, não são tão frequentes, nem atingem tantos profissionais, quanto isso. Veja-se, concretamente, quantas pessoas morrem, por ano, devido a homicídios provocados pelo tráfico de droga em Portugal? Provavelmente, durante anos seguidos, nenhuma.

Afinal de contas, nem o Beto era «maluco», nem malucos são os que fazem do comércio da droga a sua actividade profissional principal. Se esta passar a ser lícita e, consequentemente, os ganhos diminuírem substancialmente em virtude da normalização da actividade e da diminuição do risco, a probabilidade de os criminosos se afastarem dela será também muito elevada.

bad mouthing


Para desenvolver uma teoria do menino-mimado, a primeira tarefa é caracterizá-lo. O menino-mimado é um egoísta radical. Ele não gosta de ninguém, excepto de si próprio. Ele não mexe uma palha na vida, excepto se daí esperar retirar um benefício pessoal. Não existe nele uma ponta de altruísmo. Para ele, todos os meios justificam os fins, desde que conduzam à gratificação do seu ego. Ele invoca as leis básicas da moralidade quando elas o beneficiam, mas recusa-se a cumpri-las quando elas beneficiam os outros. Na sua visão, a vida é uma rua de um só sentido. Os motivos que o gratificam são frequentemente irracionais, meros caprichos, devaneios e fantasias. Quando contrariado, ele reage sempre de forma intempestiva - esperneia, faz birras, insulta, vinga-se.

Imaginemos agora uma sociedade ou um país constituído por um milhão de meninos-mimados. Como funciona esta sociedade, quais as suas principais características, supondo um regime de liberdade política ou democracia?

A primeira é a maledicência. Cada um diz mal de todos os outros. Numa sociedade equilibrada, a maledicência é um instrumento de reprovação e condenação social. Na sociedade dos meninos-mimados, a maledicência banaliza-se e perde esta função, tornando-se um mecanismo de igualização social. Na medida em que o menino mimado não suporta que alguém tenha mais do que ele, ou seja mais do que ele, a maledicência é apontada a todos aqueles que alcançaram algum relevo na sociedade como meio de os degradar e trazer de volta à norma geral. Na sociedade dos meninos-mimados, os melhores da sociedade são frequentemente aqueles acerca de quem se diz pior.

comunitarizem-na

Um leitor comentou neste «post» que tratava da liberalização do consumo e, sobretudo, do comércio da droga, que sua despenalização exclusivamente nacional, em Portugal ou em qualquer outro país, comportaria consequências complicadas e indesejáveis. Por exemplo, a concentração de drogados dos países mais próximos, ou mesmo mais longínquos, em busca de maior facilidade na compra e no consumo, e, pior do que isso, o desvio de comércio de outros países para o país despenalizador, trazendo consigo as redes criminosas.

O leitor tem toda a razão. Naturalmente que a despenalização da droga teria que ser transnacional, envolvendo um conjunto de países pelo menos pertencentes a uma região considerável.

Em Portugal e na Europa, ao contrário da quase totalidade do mundo, essa questão poderia ser aplanada através da União Europeia. Se a segurança e a protecção dos cidadãos é uma das prioridades comunitárias, a resolução de parte substancial dos problemas que a droga envolve daria uma excelente contribuição. Até aqui, as políticas comunitárias sobre a droga têm sido tratadas no âmbito da cooperação, e visam principalmente objectivos de prevenção e articulação das polícias. Os resultados, porém, estão à vista.

Na verdade, se há tantas (cada vez mais) políticas comuns, isto é, já comunitarizadas pela União, não se vê por que razão não poderão vir a ser supranacionais e transnacionais as questões relacionadas com o maior problema social com que se enfrentam todos os seus vinte e sete países. Avançar no sentido da despenalização, eventualmente acompanhada com medidas nacionais de compensação e de apoio, está longe de ser uma impossibilidade no espaçom da União Europeia.

o diabo e o estado

O Semanário O Diabo publica, hoje, um artigo sobre a crise do Estado Social português, da autoria da jornalista Ana Clara. O texto incorpora declarações dos Professores João Miranda e José Adelino Maltêz, e também minhas. O artigo está bastante interessante, sobretudo pelas participações dos dois referidos professores universitários e, na parte que me toca, pelo talento da jornalista. Só um pequeno reparo: não sou professor catedrático, como certamente por lapso a peça refere. Embora o equívoco não tenha importância de maior, não posso deixar de o assinalar.

17 dezembro 2007

legalizem-na

A violência das grandes cidades modernas tem origem, como é sabido, no tráfico de droga. A criminalização da actividade e a sua grande procura empurram-na necessariamente para gangs de criminosos, que crescem à medida que aumenta o seu consumo.Tratando-se de uma actividade ilegal e perigosa para quem a pratica, ela faz encarecer substancialmente o seu preço final, prejudica a qualidade dos produtos vendidos e entrega o seu comércio a marginais, empurrando também para a marginalidade os consumidores. Por outro lado, os elevados lucros que proporciona fazem com que muitas vezes se não distinga com exactidão quem está do lado de cá e do lado de lá da lei.

Há pouco mais de um mês, foram revelados os resultados das políticas norte-americanas de repressão ao tráfico e venda de droga em Nova Iorque. A primeira e mais destacada consequência foi o aumento substancial do preço de venda ao consumo. Mas o consumo não baixou e os criminosos não abandonaram a actividade. Apenas o preço subiu e, conhecendo-se o elevado grau de dependência que as drogas provocam, provavelmente aumentará a pequena criminalidade que a necessidade origina.

Por isso, a detenção hoje ocorrida dos presumíveis membros do «gang da Ribeira» é capaz de pôr um ponto final na violência recente das noites do Porto, mas não resolverá o problema principal. Mais tarde ou mais cedo, acontecimentos como esses repetir-se-ão, e a segurança nas ruas da cidade não vai melhorar. A diminuição substantiva da violência urbana terá que passar necessariamente pela legalização da droga – do consumo e do seu comércio -, e do desvio dos enormes fundos públicos gastos em repressão para a prevenção e para o tratamento.

Se querem acabar com a criminalidade ligada à droga, transformem-na numa actividade legal.

the rotten kid

Numa série de posts que escrevi para o Blasfémias há alguns meses atrás, eu desenvolvi o tema do individualismo do menino-mimado. A minha suspeita na altura era a de que muitos dos comportamentos individuais e colectivos dos portugueses podiam ser explicados à luz de uma teoria do menino-mimado.

Esta teoria não é inteiramente original. Num artigo de 1974, o economista Gary Becker tinha já apresentado o teorema do menino-mimado (the rotten-kid theorem), um tema que ele desenvolveu mais tarde no seu Tratado sobre a Família.

Os posts recentes de Joaquim Sá Couto em baixo vieram reforçar a minha suspeita acerca da validade da teoria para explicar muitos dos comportamentos públicos dos portugueses - para não mencionar os privados. E estatísticas recentemente coligidas pelo The Economist, e que citei num post anterior, vieram revelar que Portugal é o segundo país do mundo onde a família e o círculo de amigos tratam melhor as crianças, sendo o primeiro a Itália. Por outras palavras, se há pessoas mimadas no mundo, os portugueses só são excedidos pelos italianos.

Por isso, eu decidi embarcar no projecto de, ao longo dos próximos meses, procurar explicar os comportamentos públicos dos portugueses na política e na sua relação com o Estado - sem esquecer os da blogosfera - à luz de uma teoria do menino-mimado que irei expondo pelo caminho. Eu antecipo que os resultados vão ser surpreendentes.

16 dezembro 2007

há dias felizes

O melhor blog de Portugal é o Bitaites. Parabéns. Embora desconhecesse a sua existência, não duvido que seja o melhor do nosso país. O 4º lugar pertence ao Obvious. É «obvious» que é, também, um dos melhores de Portugal. O Peopleware é o 5º, o Dias Úteis o 6º, o Reflexões de um Cão com Pulgas o 8º. Pelo meio, em 7º, o Blasfémias. O Arrastão e, em 10º, O Insurgente, em 11º, o Corta-Fitas em 12º, o Abrupto em 18º. Já agora, leiam isto aqui.

14 dezembro 2007

leitura recomendada


Joaquim Sá Couto, O Sonho Americano e o Pesadelo Europeu, Porto: Vida Económica, 2003 (Prefácio meu).

ao colo


Dois eventos históricos contribuiram de forma determinante para o individualismo infantil dos portugueses. A tutoria e o mamismo, que se reforçaram mutuamente pela sua sequência temporal. Refiro-me ao Estado Novo e ao post-25 de Abril.

Salazar, enquanto patriarca, não foi um líder iluminado que nos tivesse preparado para os desafios futuros, nem um déspota prepotente que inspirasse revoluções. Penso que lhe podemos atribuir a figura de um tutor que foi chamado para meter a canalha na ordem e que levou a tarefa a preceito. Reprimiu a "funesta mania de pensar" e castigou os que dele discordavam, castrando a inciativa individual e menorizando a cidadania. Governar, dizia-se, era uma complexa tarefa que não estaria ao alcance de qualquer um e afirmava-se mesmo que o povo não estava preparado para a democracia. Salazar, enquanto pater familias, tomava conta de tudo e de todos. Este regime de tutoria, ao longo de décadas, deixou as suas marcas.

Uma dessas marcas é o ódio que os portugueses têm a qualquer pessoa que se arroje a ter opinião própria. O homunculus Salazarista que nos habita considera que quem tem opinião própria deve ser condenado na praça pública ou até desterrado para o Tarrafal.

Após o 25 de Abril tornou-se logo evidente que o Estado Novo nos tinha deixado impreparados para nos governarmos. O mamismo destes últimos anos agravou porém o nosso infantilismo e desenvolveu um individualismo radical, feito de birras e caprichos.

Após liquidarem o Pai, os meninos penduraram-se nas mamocas do Estado e dedicaram-se a desconstruir o País. O problema agora é que as mamocas estão secas e o recreio terminou. Os meninos, contudo, recusam-se a encarar a realidade e preferem continuar a acreditar no Pai Natal !

Aproveito para agradecer aos donos do blog a oportunidade de dar a minha opinião.

Autor: Joaquim Sá Couto, enviado por e-mail

porreiro, pá?

Os festins que têm acompanhado a assinatura do Tratado de Lisboa dão a sensação de que a coisa está fechada e encerrada, pronta a consumir. Não está. Falta, como faltou no Tratado Constitucional, a ratificação dos vinte e sete Estados-membros. Como já se percebeu, estes estão a tentar fazer a coisa o mais discretamente possível, tentando evitar a consulta aos cidadãos, para que não suceda o mesmo que aconteceu com aquele outro tratado. Só que muito dificilmente o tratado passará sem que pelo menos alguns países o referendem, e, nesses, o que a opinião pública vai exprimir não é exactamente a sua opinião sobre o objecto referendado (o tratado, que, de resto, desconhece por completo), mas sobre o modo como julga que os novos príncipes da Europa os estão a tratar. Um chumbo redondo, portanto.

13 dezembro 2007

«uma» argumento liberal

O Jansenista não gosta de liberais. Execra liberais. Os portugueses, então, não os pode nem ver. Abomina-os, verdadeiramente, por serem «parvenus» e pategos. E por usarem «camisas listradas», com «botão de punho». E por serem vulgares e ridículos. E por serem «avatares do Prof. Espada». Uns «espadinhas» de terceira. Uns espadartes! E por serem «dóceis». E por serem «férreos». E por serem «anafados». E por serem «chefes de família». E por serem «frustrados» (só a partir dos «trinta»). E por terem «mulher e filhos» (só a partir dos «quarenta»). E por terem «plumas».

Do que o Jansenista gosta, do que ele gosta mesmo a valer, é de mulherio bravo. De pequenas roliças com seios grandes. E generosos. E com coxa grossa, olhar malandro e sinal na cara. E com marmanjos à volta. A dominar a marmanjada, as malandras. E pernas à mostra! Grandes e compridas, se for possível. Do que o nosso Jansenista gosta mesmo a valer é de fêmeas do género da Eva Mendes, essa moçoila com ar ligeiro, que povoa os delírios sensuais dos espectadores do cinema americano mais exigente. Do que ele gosta é, no fim de contas, de «bombas latinas».

Este tipo de obsessão, também costuma acontecer a partir dos quarenta. Quando a mulher e os filhos já nos levaram muito mais do que o «dinheiro», o «botão de punho», a «camisa listrada» e a «compota de laranja amarga», e só nos deixam ficar as amarguras da vida. Também, isto é uma «doença», bem mais perigosa do que sonhar «com um país quimérico». Delirar com inacessíveis «bombas latinas» hollywodescas, que nos atormentam o espírito e corroem a alma, não dá saúde. A partir dos cinquenta, contudo, costumam-se pacificar os ânimos e acalmar os corpos.

Até lá, enquanto sobram vida e esperança, deixo aqui um, ou antes, «Uma» argumento ao nosso Jansenista, de muito mais bom gosto do que as suas voluptuosas «bombas latinas». Digamos, um argumento menos vulgar. Não sei se será «Uma» argumento liberal. Mas não me importava que fosse.

poder, apenas poder

1. Admitamos que, como diz o Corcunda, a «Fé Cristã» prevalecia como princípio moral e político na ordenação do mundo medieval. E que, mesmo até, nesse mundo, a soberania não existia, porque o governo local se pressupunha em «comunidade no seio espiritual da Igreja». Como justifica ele, então, a separação entre o regnum e o sacerdocium, isto é, entre o Imperador e o Papado? E para que serviam os esforços dos canonistas, como Egídio Romano, para justificar a supremacia do poder absoluto do Papa desde logo sobre o Imperador? O Corcunda conhece certamente os esforços de Inocêncio III para impor o seu poder ao do Imperador. Ou os de Inocêncio IV, que procurou agradar ao Rei dos Francos e aos príncipes alemães para diminuir o poder de Frederico (que, aliás, excomungou). Mais tarde, os fundamentos que invocara em favor dos seus súbditos, acabariam por se virar contra o papado, em favor dos reis que emergiam nos novos Estados em formação. E, também aqui, as relações de poder entre as duas partes – a Igreja e o Estado, o Papa e os Reis – foram tudo menos pacíficas. A História de Portugal está cheia de episódios que relatam esses conflitos: a excomunhão de Afonso II por Honório III, devido a questões comezinhas do «vil metal»; a excomunhão de Sancho II por Inocêncio IV, considerado «rex innutilis» pelo Papa, por supostamente não saber administrar a justiça no reino, mas, segundo parece, por razões bem mais prosaicas de politica interna; a excomunhão de Afonso III decretada por Gregório X, por aquele ter feito frente aos bispos portugueses proibindo-os de cobrar o dízimo; o Beneplácito Régio de Pedro I; etc.. No âmbito do Direito, a preferência do Direito Romano sobre o Direito Canónico, e do ius proprium sobre o ius commune, remetido este para direito subsidiário daquele, e incorporando os direitos nacionais o essencial do Corpus Iuris Civilis. Aliás, por esta altura, já o dogma do Papa como o «pai da cristandade» fora arrasado por Filipe IV, o Belo, e pelo seu original papado de Avinhão. Na verdade, caro Corcunda, se o Papa procurou tomar para a sua mão os dois gládios, e se chegou momentaneamente a consegui-lo, o poder profano, assim que teve oportunidade, retirou-lhe o que lhe não pertencia e, mesmo até, o que até deveria ser seu. No fim de contas, em qualquer das circunstâncias, seja nas relações entre o Papa e o Imperador, entre este e os Reis, e destes últimos com o Papa, foram sempre disputas de poder que estiveram em causa. Política, apenas.

2. E só por maldade congénita pode o Corcunda considerar Rousseau um inspirador do Liberalismo Clássico. Ele sabe bem que nenhum liberal o tem nessa conta, e que os principais autores do liberalismo clássico refutam a sua putativa influência. Como ele sabe, também, que em circunstância alguma um liberal defende a soberania ilimitada do Estado, seja qual for a sua origem ou «legitimidade». Para o liberalismo, nenhuma soberania ilimitada é legítima, ainda que decretada pelo sufrágio universal. Nós mesmos, aqui no Portugal Contemporâneo, temos vindo a assinalar reiteradamente as limitações naturais que a regra democrática deve conhecer numa sociedade livre, bem como temos escrito que a sua transformação em fim legitimador do poder político, em vez de permanecer como método legitimador dos governantes, conduziu às democracias totalitárias em que vivemos. A herança de Rousseau poderá, portanto, caber em muitos lados, mesmo até num certo liberalismo racionalista francês, que certamente terá inspirado. No liberalismo clássico, seguramente que não. Estas duas tradições encontram-se muito bem demarcadas. Entre nós, por exemplo, por José Manuel Moreira, que estudou e que escreveu abundamente sobre o assunto.

3. Não quero deixar de assinalar que o Modernista, no excelente «post» que aqui editou, colocou um conjunto de questões sobre as quais os liberais deveriam pensar e para as quais deveriam procurar respostas. Por mim, que não tenho a veleidade de as pretender conhecer a todas, não gostaria de deixar de dizer-lhe, por ora, que partilho da crítica de Hayek ao utilitarismo, que ele considera uma forma de construtivismo normativo, seja ele particularista (de acto), à Bentham, ou genérico (de regra), à Paley. Em ambos os casos, o problema é epistemológico: não podemos prever cabalmente os efeitos particulares das nossas acções. É exactamente por essa razão que existem normas de conduta: não por sermos capazes de prever as consequências de uma acção particular, mas precisamente pela razão inversa. É nesse contexto que me situo e é por essa mesma razão que, embora a saiba falível como qualquer outro sistema de interacção, me parece que a catalaxia, ou a ordem de mercado, poderá permitir que se encontrem melhores soluções para a generalidade dos nossos problemas, do que qualquer outro sistema onde operem intermediários. Voltarei, mais tarde, a algumas das questões levantadas pelo Modernista, não exactamente para as tentar «esclarecer», mas para as procurar compreender e interpretar à luz do liberalismo, tal como o vou concebendo.

12 dezembro 2007

palavras para quê?

As duas sondagens que publicámos, em simultâneo, ao longo desta semana, registaram uma participação inaudita de leitores. No conjunto, totalizaram 264 votos, repartidos quase equitativamente. Curiosamente, ambas levantavam questões sobre o «liberalismo português».

A primeira («O liberalismo português é:») obteve os seguintes resultados: 1º Está a falar de quê? (54 votos, 40%); 2º Não é (31; 23%); 3º Nunca será (28; 20%); 4º Vai ser (14; 10%); 5º Já foi (7; 5%).

A segunda («O liberalismo português não funciona por causa:») obteve as seguintes votações: 1º De falta de substância (38 votos; 29%); (2º Das peixeiradas frequentes entre os seus adeptos (37 votos; 28%); 3º Das influências nefastas da Opus Dei (22; 16%); 4º Da falta de protagonistas (19; 14%); 5º Das influências nefastas da Maçonaria (14; 10%).

Como diria o outro, «palavras para quê? É o liberalismo português!»

no índex

Ao que parece, segundo se lê aqui, estamos num índex de blogues proibidos de aceder ao Rua da Judiaria. A ser verdade, é caso para dizer que ele há coisas extraordinárias! E absolutamente caricatas, como não pode deixar de dizer-se.

11 dezembro 2007

a constituição da modernidade política

Devo dizer que acedo a este convite com muitas reservas. Por duas razões. Primeiro, porque não tenho a certeza que tenha mais a dizer do que o que já escrevi no Pasquim da Reacção. Eu sou uma criatura do domínio da Teoria, não da História.

Segundo, porque num blogue que se diz «liberal» e que e visitado pelos «liberais portugueses», como este, gostava de fazer outras perguntas e debater outras ideias. Gostava de saber, por exemplo, se o entusiasmo com a propriedade privada que floresce por estas bandas tem um fundamento ético-deontologico, na linha da doutrina dos direitos naturais, ou económico-utilitarista, como na teoria da coordenação dos austríacos.

E se for fundamentado nestas duas ordens de argumentos gostava de saber se os consideram duas fundamentações diferentes ou — será possível? — duas vertentes de uma única fundamentação. E depois queria mais debate sobre direitos de propriedade: O que é que uma ética dos direitos de propriedade tem a dizer sobre regras de apropriação do ar limpo? Ou sobre a regulação de actividades que geram riscos? Ou sobre servidões de passagem em diversas gradações de necessidade? Ou sobre a escolha entre proibir uma actividade ou forçá-la a internalizar custos sob forma de obrigação de compensar vitimas? Ou sobre a quantidade marginal proibida de uma actividade? Ou sobre a articulação das ideias «quem causa paga» e «damnum absque injuria»?

E sobre a economia austríaca: Se adoptar-mos uma teoria subjectivista do custo, como é que podemos criticar objectivamente a oferta massiva de bens públicos? Se a economia é uma ciência fundamentada em axiomas evidentes sobre a acção humana, porque e que a astronomia Copernica e superior a Ptolomaica (muito mais intuitiva) ou a teoria da relatividade a mecânica Newtoniana e esta a teoria dos vortex do Leibniz? E será que uma resposta razoavelmente bem sucedida a pergunta anterior pode fugir ao estigma temível do cepticismo Humiano? Se não, que tal saltarmos todos de um avião sem pára-quedas para desafiarmos a indução? E o que e que a catalaxia tem a dizer a uma teoria política — Aristóteles, Rosseau, Hegel e Marx, por exemplo — que rejeita, com fortes argumentos, o individualismo metodológico?

No entanto, a fraqueza humana e forte em mim e não consigo resistir ao simpático desafio do RA.

Começo por deixar três notas. A primeira é que não tenho acesso a um teclado português o que me obriga, para evitar deseconomias irracionais, a ignorar os acentos. Não há nada a fazer: o leitor que se amanhe*.

A segunda para sublinhar, com veemência, que este debate está dominado pelo amadorismo: a questão que estamos a discutir não á nem uma questão de historia das ideias — uma questão que dependa da exegese de um conjunto definido de textos-de-autor — nem uma questão de historia factual, que possa ser resolvida por um juízo sobre o valor de fontes documentais que representem factos empíricos. Pertence antes a um domínio historiográfico subtilmente complexo, que exige uma bagagem metodológica e histórica que não julgo ser carregada por qualquer dos intervenientes. De modo que estamos aqui num domínio bem perigoso para amadores: o domínio da historia do que certa historiografia, muitas vezes dominada por preconceitos metodológicos um tanto sinistros, chama historia das «categorias», «discursos» ou «representações».

A terceira nota e para chamar a atenção do leitor para o facto de que sobre estes temas há muita e boa bibliografia, a qual merece mais tempo e dedicação do que o meu post. O que sei sobre estes temas e sobretudo o que podem encontrar em: António Hespanha, CULTURAL JURIDICA EUROPEIA — SÍNTESE DE UM MILÉNIO; Maurizio Fioravanti, COSTITUZIONE; Maurizio Fioravanti, STATO E CONSTITUZIONE; Otto Brunner, LAND UND HERRSCHAFT. GRUNDFRAGEN DER TERRITORIALEN VERFASSUNGSGESCHICHTE OSTERREICHS IM MITTELALTER (há uma excelente tradução inglesa); Otto Von Gierke, POLITICAL THEORIES OF THE MIDDLE AGES. Como não sou historiador, esta lista e muito idiossincrática e limitada. Claro que estou a excluir fontes de pouca confiança, como, por exemplo, o malogrado Manual que ridicularizei no Pasquim.

O problema, tal como o vejo, e o problema da «constituição». Mas «constituição» aqui designa algo de mais amplo do que e habitual no pensamento jurídico-político e no senso comum modernos. Designa uma conjunto de traços fundamentais, referências simbólicas, conhecimento tácito, procedimentos e formas institucionais que «constituem» o imaginário politico.

O constitucionalismo moderno é uma forma de «constituição» neste sentido. Não é possível defini-la com maior rigor porque, tanto quanto me é dado ver, as alternativas que restam são «palavras de combate», que estão carregadas de uma carga metodológica e ideológica (muito)contestada: «estrutura», «paradigma», «modelo», «arquétipo», «tipo», «espírito», «forma de vida», «discurso», «episteme», etc.

Não estou com isto a fazer a apologia da «neutralidade», que considero uma falsa virtude, muito menos da sua versão kitsch no «politicamente correcto». Só não quero e desviar a atenção do problema que aqui nos preocupa. Um aspecto fundamental, no entanto, é que a «constituição» não é uma descrição no sentido comum da palavra: é uma articulação de traços gerais que dá lugar a concretizações muito diversas. Nos termos de uma certa tradição conceptual, e o que se pode considerar uma «linguagem» ou «gramática» que permite um conjunto quase ilimitado de «actos de fala» ou «frases».

Um apontamento metodológico. Citar um texto, particularmente um texto doutrinário, como o fez o RA, não resolve nada. Os romanos usavam as palavras «Estado» e «família», mas claro que seria absurdo interpretá-las como referências ao que hoje entendemos por «Estado» e «família». A família em Roma, por exemplo, incluía os escravos, os animais e todos os bens que pertenciam à «economia doméstica». Ora, o excerto de Phillipe de Beaumanoir é deliciosamente ambíguo: todas as noções que o RA identificou podem ser objecto das mais diversas interpretações, varias deles consistentes com a narrativa constitucional pré-moderna que vou resumir de seguida. Ao que há a acrescer o facto de que a noção de poder imperial nas fontes Romanas nada tem que ver com os conceitos políticos modernos de «Estado» e «soberania».

Alem do mais, estamos aqui a falar do imaginário político e não de «ideias politicas». As opiniões isoladas de um autor não são uma fonte credível neste género de discussão. O Maquiavel usou a palavra «Estado». Se a usou num sentido mais ou menos moderno ou não é uma discussão que ainda ocupa muito tempo de investigação académica. Mas que seja qual for a resposta não a usou de uma forma relevante para descrever a «constituição» do seu tempo e algo que me parece incontroverso.

Só uma leitura cruzada, diversificada, densa e ampla das fontes é que pode conduzir a reconstruções interpretativas plausíveis. Não que eu tenha mais a apresentar do que os resultados da investigação de outros: já confessei as minhas fontes, todas secundárias, porque nelas se pode encontrar a interpretação historiográfica dos textos e documentos antigos.

A «constituição» política medieval é a constituição de uma sociedade com uma ordem diversificada de poderes e funções. O rei é apenas um desses poderes e funções, um poder que é absoluto no interior da sua esfera de actividade legítima: a coordenação do corpo social. O poder régio e regulado, no seu aspecto mais fundamental, pelas doutrinas da tirania do titulo e do exercício: quem usurpa o poder régio não é rei legítimo; o rei que exerce o seu poder para criar «desordem» e «caos» — por outras palavras: corrompendo o seu papel social — tem de ser contrariado. O controlo da actividade régia — da «cabeça» do corpo social, de acordo com uma metáfora do Antigo Regime — passa por uma panóplia de recursos políticos que vão desde o controlo de «jurisdições» até ao tiranicídio.

O aspecto mais importante da «constituição» medieval é o estatuto jurídico das pessoas. O indivíduo político, titular de prerrogativas, não tem um papel relevante. O indivíduo «representa» um papel social — não porque exprime uma vontade alheia mas porque «está em lugar» de um «quid» que não pode estar presente. Os direitos e deveres são atribuídos a pessoas enquanto representantes de um estatuto. Cada estatuto é uma unidade jurídica que define uma esfera de actividade na fisiologia geral do corpo social. O corpo «funciona» quando as diversas esferas de actividade estão coordenadas na direcção do bem comum. Em certos períodos, o bem comum é a orientação de uma unidade politica amplíssima e complexíssima — a «Res publica Christiana». Mas a geografia do poder na Idade Media era, como se sabe, altamente instável.

A viragem paradigmática ocorre com a dissolução da constituição medieval e a emergência da política moderna. Para isso concorrem, reflexamente, ideias de proveniências temporais e intelectuais muito diversas, tais como: o nominalismo, o antropocentrismo, o racionalismo, o instrumentalismo. (Claro que para alem desta leitura «estruturalista» há alternativas «idealistas» e «materialistas»). O ponto de viragem simbólico é a emergência do indivíduo, da distinção público/privado, e a contraposição direito/poder. O despotismo iluminista, o jusracionalismo, o contratualismo — todos são criaturas políticas modernas.

Do ponto de vista sociológico — não o das elites letradas, as «cultas e polidas» porta-estandartes da «Nação», mas dos centros de poder — a centralização estadual nunca foi «absoluta». A resistência do poder «constituído» pelas formas constitucionais pré-modernas ao projecto de centralização foi notável e resiliente. Um «liberal» deveria interessar-se francamente por este aspecto. É que a soberania real e a soberania oficial raramente coincidem e com certeza não coincidiram até o Estado, já no séc. XIX, se dotar de uma aparelhagem burocrática, administrativa e militar com proporções megalómanas para os padrões de um Luís XIII ou de um D. José. O Estado tentacular e uma coisa muito recente. (E colocando agora entre parêntesis as questões de saber se (a) o Estado e, nos dias de hoje, realmente soberano no plano interno e (b) se faz sentido falar do “Estado”, ou para esses efeitos qualquer instituição, como se de um centro de decisão unipessoal se tratasse).

Outra história é a de saber quando é que a viragem paradigmática ocorre. Neste capítulo as coisas são difíceis: a história das grandes narrativas considera espúrias as alusões cronológicas. Eu diria, numa atitude cautelosa, que a modernidade politica só triunfa de forma decisiva entre 1648 — o fim da Guerra dos Trinta Anos — e 1789. Falar de modernidade politica no séc. XIII parece-me — insisto — um tremendo disparate.


O Modernista

* Que, entretanto, acrescentei. (RA)