31 agosto 2007

inevitável

Paulo Teixeira Pinto demite-se da presidência do Conselho de Administração do BCP, onde será substituído por Filipe Pinhal.
A pergunta que anda agora no ar é se voltará à política activa e ao PSD, e com que intenções e apoios. Há já mesmo quem jure que esta foi uma das melhores notícias dos últimos meses lá para as bandas de Belém...

30 agosto 2007

Recobrar a consciência



Quem disse que o tema não é fundamental?



Como é que Husserl concebe a consciência?



Dantes pensava-se que a consciência se excitava em contacto com o objecto e se reabilitava tomando “consciência”. Um “entendimento” que pressupõe uma espécie de dualismo corpo-alma, misterioso (ou quase mecânico, como em Descartes), mas cheio de equívocos.


Ora Husserl não se põe numa atitude dualista mas numa atitude tipicamente unitária.


A consciência não está adormecida, nem é a tábua rasa de Hume. Muito menos o white-paper de Locke. É um jacto de luz, só que a luz é invisível, daí que só se possa ver em contacto com os objectos. A consciência para Husserl é um jacto de intencionalidade que com os objectos ganha corpo.

Será que ainda não nos apercebemos de que a filosofia não é uma ciência preponderantemente racional mas intuitiva?

É verdade que o racionalismo na filosofia teve um arranque interessante com Descartes mas, como vimos em post anterior, acabou por levar a grandes sofismas (ou produtos falsos).

Para o tirolês Edmund Husserl, a razão não serve para ver. A razão não nos mostra nada, tão-só ajuda a que o entendimento (o “eu”) possa ver, se possa colocar numa atitude de poder ver.

Para Husserl como que se intuiciona a partir de dentro, mas não será isto uma fantasia?

Husserl falava em relação a Deus numa prova a-confessional. Intui-se Deus por implicação. Era como atingir Deus sem o auxílio de Deus, sem uma fé teológica, mas com uma fé filosófica ou uma intuição categorial.

Aqui distingue-se de Heidegger que, ao contrário de Husserl, admite a fé teológica mas rejeita a fé filosófica.

conservadores e conservadores, liberais e liberais

O André tem razão: ele há conservadores e conservadores, e não são seguramente todos iguais. Mas eu diria, em contrapartida, que também há liberais e liberais, e que não só não pensam todos o mesmo, como se costumam desentender muito frequentemente em torno de questões fundamentais: a descriminalização do aborto, a guerra no Iraque, a relação com a religião e a Igreja Católica, por exemplo, para não irmos mais longe.
Por outro lado, no século XX, a que partidos liberais devemos algumas conquistas importantes em favor da liberdade individual e do mercado. Assim, que me lembre de cor, a nenhum. Em contrapartida, a líderes de partidos conservadores e, naturalmente, aos seus partidos, julgo que devemos alguma coisa. Sem ser exaustivo, a Thatcher, a Reagan, a Kolh, a Aznar, a Fraga Iribarne e, porque não, a Aníbal Cavaco Silva.
O ponto é, pois, este (deixando de lado algumas questões teóricas já anteriormente desenvolvidas): os liberais não têm tradição de governo e de Estado; os conservadores têm; uns e outros não estão tão distantes quanto se possa pensar; logo, é mais do que natural que cooperem, se querem diminuir o peso do socialismo.

ainda os liberais e os conservadores

Em décadas sucessivas, antes até, mas pelo menos a partir de 1945, os conservadores europeus viveram em torno de um único problema: a questão soviética e a ameaça comunista. O resto estava relativamente «bem» resolvido, com o keynesianismo, a doutrina social da Igreja e o sufrágio universal. O surto desenvolvimentista que a Europa Ocidental conheceu no pós-guerra, parecia confirmar que esse modelo de organização política, económica e da sociedade era de todos o melhor e mais seguro.

Isto foi assim até à crise petrolífera de 73 e ao fim das ilusões com o intervencionismo desmesurado na década de 80. Durante esse período de tempo, os conservadores reformistas foram colher ao liberalismo hayekiano os fundamentos teóricos para as transformações necessárias dos seus países. O fim do bloco de leste, iniciado em 1989, por um lado, fez acelerar a reconversão das economias nacionais, privatizando-as, e, por outro, deixou os conservadores sem inimigo à vista.

Daí que, nos últimos anos, o que os conservadores têm vindo a fazer é procurar desalmadamente um novo inimigo. A razão é simples: o conservadorismo é uma ideologia reaccionária, no sentido de que se afirma em reacção e em contraposição a algo, invariavelmente a um qualquer «perigo» real ou imaginário (a revolução, a modernidade, a ciência, a laicização, o comunismo, etc.). A existência de um «inimigo» é condição fundamental para que o conservadorismo se defina. Falhando o «inimigo», falha o essencial da sua doutrina.

Daí que, nos últimos anos, o único movimento assumidamente conservador na política ocidental tenha sido o neoconservadorismo americano, marcado pela busca desesperada de um novo «inimigo» global, que viesse substituir o comunismo soviético. Como sabemos, esse «inimigo» foi encontrado no Médio Oriente. Os resultados dessa opção têm sido desastrosos, ensombrando os dois mandatos republicanos de George W. Bush e tendo disseminado, quase por completo, o que foi um importante movimento político no começo do século actual.

Quanto ao mais, isto é, ao conservadorismo europeu, ele perdeu praticamente qualquer sentido. As suas ideologias mais marcantes, a democracia cristã e a democracia social, não afirmam nos dias correntes um valor, um princípio, uma regra para a polis. Os seus partidos pairam no espaço etéreo da vacuidade intelectual, onde ninguém pensa, nem acha sequer que isso seja necessário. São agremiações que visam a conquista e o exercício do poder do Estado a qualquer custo, com qualquer programa político, a tal ponto que um cidadão médio não os consegue praticamente distinguir dos seus competidores mais próximos, os partidos socialistas.

Em contrapartida, os liberais pensam, mas não têm qualquer pretensão a executar o que defendem. Os liberais são, por regra e princípio, avessos ao Estado, ao ponto de lhes desagradar envolverem-se com ele. O que, de resto, se compreende: se o liberalismo é uma filosofia e uma pedagogia de cidadania para defesa do indivíduo perante os poderes públicos, ele dificilmente poderia nascer de quem exerce estes últimos.

Em síntese, os liberais poderão fornecer aos partidos conservadores aquilo de que eles mais carecem: uma ideologia e um pensamento para a sua actuação política. A condição mínima parece evidente: que esses valores sejam honrados, quer na oposição, quer no governo, pelos seus responsáveis. Se assim for, e enquanto for assim, o casamento entre liberais e conservadores poderá ser (quase) perfeito.

29 agosto 2007

conversão

Quando, há pouco mais de um ano, eu fui vítima de um abuso por parte de um departamento do Estado português, eu tinha de decidir rapidamente o que fazer. O abuso já existia há algum tempo, mas, subitamente, ganhou uma intensidade que não me permitia aguentá-lo por mais dias.

Eu tinha de me libertar dele e sem demora. Havia meses que eu já fizera dois requerimentos sucessivos para que o abuso fosse terminado. Nunca obtive resposta. Recorrer à justiça, agora que o abuso tinha ganho uma dimensão intolerável, também não era opção, porque a justiça em Portugal demora meses e anos a resolver qualquer assunto, se é que o resolve, e eu não podia esperar.


Eu tinha de agir rapidamente, mas não por instinto. Precisava de encontrar uma acção a tomar e uma base racional para essa acção. Decidi isolar-me uma tarde para meditar. Então eu, que em certos círculos tinha ficado conhecido por ser um liberal, que tinha feito a minha própria pregação contra os abusos do Estado, não era capaz agora de encontrar uma solução para eu próprio me libertar de um abuso do Estado?

Nessa tarde, percorri, no meu espírito, toda a literatura neoliberal - Hayek, Rothbard, Mises, Rand, Friedman, etc. - à procura de uma ideia que me ajudasse a agir, mas não encontrei nenhuma. Concluí que a ideia de liberdade deles era uma ideia meramente instrumental, uma abstracção, um meio para alegadamente chegar a uma sociedade melhor ou mesmo ideal. Eles não estavam preocupados com a minha liberdade ou a de qualquer outra pessoa em particular, eles estavam preocupados com a liberdade de toda a humanidade, que é a maneira mais certa de não estarem preocupados com a liberdade de ninguém.

Passei aos clássicos, primeiro os escoceses - Hume, Smith, Ferguson - e os resultados foram ainda mais frustrantes e, depois, aos católicos - como Tocqueville, Acton e Herculano - e, aqui, acendeu-se uma luz. Alguns deste homens tinham equacionado o problema da liberdade em termos da consciência. Eu podia perfeitamente recordar a definição de Alexandre Herculano: "A liberdade é a verdade da consciência, como Deus".

Talvez a solução ao meu problema - pensei - estivesse nos Evangelhos e, atalhando caminho, peguei no Catecismo da Igreja Católica. Passado algum tempo, eu tinha, de facto, encontrado a solução para o meu problema. Ela estava, não só, mas principalmente, no artigo 2242 do Catecismo, que está reproduzido em baixo em post.

A leitura que fiz desse artigo foi a seguinte. Quando um homem é abusado ou oprimido pelos poderes públicos, ele não tem apenas o direito de reagir, ele tem a obrigação de reagir. É preciso que ele esteja perfeitamente certo, em consciência, de que está a ser vítima de um abuso - e eu estava perfeitamente certo de que estava a ser vítima de um abuso. A reacção deve ser proporcional ao abuso, mas pode, em última instância, recorrer à violência. E se a reacção implicar a violação da lei, não faz mal porque um homem "(d)eve obedecer antes a Deus que aos homens".

Eu decidi que iria utilizar a violência, embora uma forma de violência proporcional ao abuso - a violência verbal. E passei essa noite a escrever um artigo sobre o assunto que iria fazer publicar num jornal onde habitualmente colaboro. Na manhã seguinte, enviei o artigo por e-mail ao director do departamento do Estado que cometia o abuso sobre mim, com a indicação: "Este artigo será publicado no jornal tal e tal na próxima sexta-feira".

O resultado foi imediato. Duas horas depois, um assessor do director do departamento estava a falar para o jornal a tentar dissuadir a publicação do artigo, enquanto outro assessor me telefonava para casa a dizer que o problema estava resolvido. O artigo nunca chegou a ser publicado.

Eu vou agora responder em tribunal pela tripla acusação dos crimes de injúria, calúnia e difamação cometidos sobre o Director Geral dos Impostos, Dr. Paulo Macedo.

Não faz mal. Foi, porém, a ideia de liberdade católica que me sugeriu a solução para o problema e me forneceu a fundamentação moral e intelectual para que a prosseguisse, a qual, passado mais de um ano, me faz ainda hoje sentir perfeitamente seguro da minha acção. Não foi a ideia de liberdade abstracta e instrumental que é considerada pelos modernos autores liberais - essa, eu não estou hoje certo que sirva para alguma coisa.

pela porta dentro

Eu tenho em alta consideração muitos dos escritos de Hayek em economia, na filosofia do direito e na história das ideias. Não tenho apreço pela sua filosofia política que, na sua maior parte, é pura ideologia, ou mera superstição, como ele gostava de dizer. Gostaria hoje de explicar porquê.

Hayek toma os moralistas escoceses, em especial Bernard de Mandeville e David Hume, como ponto de partida. David Hume tinha negado a possibilidade do conhecimento humano, em particular as relações de causalidade. Na opinião de Hume, entre a decisão de um homem e as suas consequências não existe relação nenhuma - ou, se existe, é meramente por acaso. Daí a extensa literatura de Hayek sobre as limitações do conhecimento humano, e de que o ensaio "The Pretence of Knowledge" é talvez a principal.

Hayek divide a sociedade em duas esferas, a esfera pública e a esfera privada. Na primeira, prevalecem as relações de comando, na segunda as relações voluntárias. Mas se o conhecimento humano é limitado, as decisões tomadas na esfera pública - isto é, as decisões tomadas pelos políticos e pela administração pública - e que visam afectar toda a sociedade são decisões de efeitos necessariamente imprevisíveis e frequentemente opostos aos pretendidos.

Daí a tese do Estado Mínimo - a tese que consiste em minimizar a esfera das decisões que são tomadas na esfera pública por políticos e burocratas e maximizar a esfera privada da sociedade. Esta é esfera que está baseada nas relações voluntárias ou espontâneas estabelecidas entre as pessoas e portanto a sua maximização pressupõe a maximização da esfera de liberdade individual que é reconhecida aos homens. Assenta aqui o liberalismo de Hayek.

Hayek é agora chamado a provar que o complexo das relações voluntárias ou espontâneas estabelecidas entre as pessoas no domínio da economia, da família, da empresa, da acção política e social, etc., conduz a uma ordem social - a sua célebre ordem espontânea em que se traduz a sua Grande Sociedade -, e não a uma desordem.

Hayek nunca introduziu na sua teoria da sociedade - excepto num momento muito tardio, as vésperas da sua morte -, a religião e muito menos a ideia de Deus, nem isso era científico na sua época, nem agora. Porém, nunca tendo existido na historia da humanidade - menos ainda prosperado - alguma sociedade sem a ideia de Deus, seria, pelo menos legítimo perguntar sobre que tipo de sociedade Hayek passou a maior parte da sua vida a teorizar - e a resposta não podia ser senão a de uma sociedade fantasiosa ou, para usar uma das suas expressões favoritas, a de uma superstição.

Na realidade, o que é que impedia que no processo social espontâneo, os pais abandonassem generalizadamente os filhos (como Hayek fez aos seus e à mãe deles), as partes não cumprissem generalizadamente os contratos, os políticos e os burocratas usassem o dinheiro público em seu próprio benefício, os juizes não trabalhassem, as mulheres traíssem generalizadamente os maridos, os polícias se tornassem ladrões, os devedores nunca pagassem aos credores - o que é que impedia, em suma, que o processo social espontâneo resultasse, não numa ordem social, mas numa desordem?

A resposta, dizia Hayek, é que o processo social espontâneo (a que ele abusivamente chamava ordem espontanea, sem nunca ter provado que o resultado desse processo seria uma ordem, e não uma desordem) tinha de ser enquadrado por regras de justa conduta. Estas regras de justa conduta (v.g., honestidade, boa-fé nos negócios diários, cumprimento da palavra dada, etc.) eram elas próprias o resultado de um processo espontâneo de evolução e selecção ao longo da história da nossa civilização e estavam contidas na tradição, na moral e no direito.

Esta resposta, porém, apenas sugeria mais uma pergunta: porque é que a nossa civilização, através da tradição, da moral e do direito seleccionou essa normas de justa conduta que conduziram ao seu progresso e prosperidade, e não outras, por exemplo, regras de injusta conduta que tivessem conduzido ao seu declínio e extinção?

Foi somente no último escrito publicado ainda durante a sua vida, e não obstante várias pressões para que não o publicasse, no último capítulo do seu último livro The Fatal Conceit: The Errors of Socialism (1989), sob o título "Religion and the guardians of tradition", que Hayek, depois de reiterar o seu conhecido agnosticismo, enfatizou a importância da religião em suportar, encorajar e manter vivas as regras de boa conduta que tornaram possível à civilização ocidental - cristã, diria eu - sobreviver e prosperar, como nenhuma outra conseguiu na história da humanidade.

Hayek (1899-1992) passou a maior parte da sua longa vida convencido de que era possível construir uma sociedade sem a ideia de Deus. Enganou-se. A ideia de Deus entrou-lhe pela porta dentro pouco anos antes de morrer. Tarde de mais, porém, para que tivesse tempo de refazer toda a sua filosofia política.
Embora agnóstico, Hayek considerava que a religião católica era a preferível porque "continha os artigos da fé" e via no protestantismo uma ameaça ao sentimento religioso. Por sugestão do seu amigo Erik von Kuehnelt-Leddihn aceitou receber a benção da Igreja Católica antes de morrer. O seu funeral, realizado em Viena de Austria, a sua cidade natal, em 4 de Abril de 1992, foi presidido pelo padre católico, e seu amigo, Johannes Schasching, que proferiu a homilia.

legalizem-na!

É sabido que os recentes problemas de violência na cidade do Porto, a fazerem lembrar a velha Chicago da fascista «Lei Seca», se devem à droga. Como, aliás, qualquer agente da autoridade esclarecerá sem hesitações que a esmagadora maioria da nossa criminalidade se deve à droga: desde os pequenos furtos de rua, aos assaltos a lojas e estabelecimentos comerciais, a insegurança urbana, sobretudo durante a noite, até às redes mais complexas do tráfico e da corrupção dentro das instituições policiais.

A droga tem um preço de venda muito elevado, porque o risco da sua comercialização é ele também muito elevado. Na origem da produção dos vários produtos, os custos são muito baixos, sobretudo quando comparados com o custo final. Neste último está obviamente incorporado o risco inerente a qualquer actividade criminosa. Por ser muito cara e de consumo repetido, frequente e obrigatório, alguns dos seus consumidores (poucos, ainda assim, se olharmos para as estatísticas do consumo) vêem-se obrigados a enveredar pelo crime para conseguirem dinheiro para o seu vício.

Por essa razão, a droga é uma actividade de marginais, que arrasta atrás de si o perigo e a criminalidade, da qual somos todos vítimas. Por outro lado, o seu consumo encontra-se generalizado e faz-se às claras. Veja-se, a esse respeito, uma muitíssimo interessante reportagem da última Sábado feita no Algarve, onde um repórter «comprou» droga sem quaisquer dificuldades em todas as discotecas da região. De resto, não deixa de ser curioso que o consumo se encontre, na lei e na prática, descriminalizado, e o comércio criminalizado.

Parece evidente que, se legalizada, a venda da droga afastaria a actividade da criminalidade e permitiria que uma venda que é feita actualmente sem reservas, mas sob a ameaça da prisão, passasse a obedecer às regras de mercado, com preços muito mais baixos e sem o peso da criminalidade social. Desde que, naturalmente, o Estado não se substituísse às actuais redes criminosas, taxando o custo dos produtos cinco ou mais vezes, como faz actualmente com o tabaco e as bebidas alcoólicas...

quem manda, quem manda, quem manda?

O cesarismo, ou a ausência dele, é, segundo o meu amigo Pedro Arroja, o grande mal das sociedades onde predomina uma cultura católica, como é o caso da nossa.

Eu concordo em boa medida com a sua análise: o título deste «post», o célebre «quem, manda, quem manda, quem manda», com que habitualmente se homenageava o Doutor Salazar, podia ser bem o ex libris da portugalidade. Ou o seu epitáfio, consoante os pontos de vista.

De facto, os portugueses habituaram-se a que mandem por eles e não são capazes de assumir a responsabilidade de viverem livremente. Se isso é devido ao catolicismo dominante (espero bem que não…), ou a qualquer outra coisa, não sei. Mas o que sei é que não é por causa da falta de «Césares», por outras palavras, de tipos que façam disto e de nós o que querem e bem lhes apetece, que o país é a lástima que todos conhecemos. Porque, entendamo-nos: José Sócrates faz o que quer de Portugal, do governo, do Partido Socialista, do presidente da República e da oposição; Durão Barrosos idem aspas, com a nuance de não ser o PS o partido do governo, mas sim o PSD; Guterres também (Sampaio implorou-lhe para que ele, depois das maravilhas que operou durante seis longos anos, não deixasse de fazer o favor de nos continuar a governar); quanto a Cavaco e a Soares, bom, penso que não precisamos de dizer nada; se ultrapassarmos a fronteira quase simbólica, neste aspecto, que foi o 25 de Abril, Salazar tratou-nos a todos como velhas sopeiras da província, e Marcelo Caetano só caiu por ter sido incapaz de mandar nesta corja que somos.

Mais para trás, meu caro Pedro, o panorama não nos beneficia: faltam «césares» de todas as cores, formas e feitios, para todos os paladares. Não quero massacrá-lo, nem a si nem aos leitores, com um «post» gigantesco a fazer uma cesariana dos nossos 800 anos da nossa gloriosa história. Mas permita-me que lhe lembre aqui esse grande «César» que foi Afonso Henriques, porventura o maior de todos (embora tenha perdido o concurso da RTP), que correu à espadeirada a senhora sua mãe para fundar a pátria que nos viu nascer e dar-nos a alegria de sermos portugueses. Por mim, meu caro, e a todos o s Césares que lhe sucederam, bem podia ter estado quieto. Porque, meu caro, o que nos faltam não são Césares, mas plebeus que os ponham no sítio, como os da República Romana fizeram durante mais de 500 anos, para glória da cidade e do Império!

28 agosto 2007

liberalismo presbiteriano

O liberalismo do Hayek a que se refere o Rui. A. no seu post anterior é um liberalismo fundado nos moralistas escoceses do século XVIII, David Hume, Adam Ferguson, Francis Hutchison, Adam Smith - e no seu precursor, Bernard de Mandeville que, embora nascido na Holanda, emigrou mais tarde para a Escócia.

A Escócia era na altura o centro do presbiterianismo, uma doutrina protestante saída do calvinismo. Hume, Ferguson, Smith, Hutchison foram todos educados nesta cultura, que era, na altura, militantemente anti-católica, com a sua contestação da autoridade, a sua interpretação individualista e relativista das escrituras, a ideia de que não existem intermediários - como a Igreja pretende ser - entre o homem e Deus, a sua confiança nos processos de governação "bottom-up" (isto é, representativos), por oposição ao processo "top-down" da Igreja Católica.

O próprio Hayek, no ensaio que o Rui cita em baixo (Why I am not a conservative), depois de explicar porque é que não é um tory (conservador), declara-se mais próximo da tradição do outro partido que, alternadamente com os tories, governou a Inglaterra por mais de um século - os whigs.

Porém, esta designação de whigs foi uma alcunha que os seus adversários políticos - os tories - lhes atribuiram devido ao seu anti-catolicismo e que foram buscar à Escócia presbiteriana. Em português, o seu equivalente mais próximo seria talvez mata-frades.

O Rui parece acreditar que o liberalismo presbiteriano do Hayek baseado na cultura protestante escocesa, profundamente anti-católica e mata-frades, tem probabilidades de vingar em Portugal. Eu não acredito.

a factura


Nos últimos vinte anos, acompanhando o dinheiro da União Europeia que veio dos países predominantemente protestantes do Norte da Europa, foi chegando a Portugal também a factura - mais acentuadamente na última década.

Esta factura tem assumido a forma de uma invasão gradual e subtil em Portugal dos valores prevalecentes nesses países predominantemente protestantes e que, em certos casos, contrastam de forma marcante com a cultura tradicionalmente católica da sociedade portuguesa.

Assim: a desvalorização da autoridade, a despersonalização das relações sociais, a estandardização dos modos de viver, o relativismo moral, a supremacia esmagadora do colectivo sobre o indivíduo, a depreciação do fenómeno religioso, a ideologia da liberdade.

Eu não estou nada certo que a sociedade portuguesa vá absorver tudo isto, sem rechaçar a maior parte. Para já, os sinais da crise e da desorientação são evidentes na educação, na justiça, na família, no estado e numa economia que não consegue sair da recessão há mais de seis anos.

porque sou liberal e conservador

É comum entre os liberais a convicção de que não é possível conciliar-se o liberalismo com o conservadorismo. Essa ideia parte de várias premissas, mas principalmente das que foram expostas por F. Hayek no posfácio do seu livro The Constitution of Liberty (publicado em 1960), a que deu significativamente o título de «Why I am not a Conservative». Em minha opinião, considero ultrapassadas essas razões e errado tal preconceito. Tentarei explicar porquê.

A distinção estabelecida por Hayek tem como referência a velha Inglaterra dos séculos XVII, XVIII e XIX, onde se contrapunham whigs e tories. Sucede que estes últimos estavam nessa altura mais identificados com uma ordem política avessa aos princípios do liberalismo, que os whigs representavam e defendiam. Entre eles, a defesa de um poder limitado pelo direito e pela Constituição, a separação de poderes de soberania, a liberdade civil perante o poder público, a tolerância religiosa, etc..

O conservadorismo, doutrina política que Hayek identifica com autores como Coleridge, Bonald, De Maistre, Justus Möser e Donoso Cortès, seria, assim, caracterizado pelo reaccionarismo, pelo receio da evolução das instituições, o temor da mudança, o medo ao que é novo. Daí resultaria a reacção permanente dos conservadores à inovação científica e tecnológica, às hipóteses científicas que rompem com velhos dogmas estabelecidos. Por último, os conservadores ter-se-iam aproximado nos séculos XIX e XX do estatismo, bem como de um nacionalismo exacerbado e avesso ao internacionalismo.

Estas são as críticas essenciais de Hayek ao pensamento conservador. Em compensação, ele reconhece aos conservadores uma atitude sensata em relação ao construtivismo social e político, na análise lúcida que costumam fazer da evolução das instituições sociais, onde coincidem com o ordinalismo (a importância da «ordem espontânea, meu caro Pedro...) liberal.

Ora essa convergência não é de somenos importância. Porque ela fundamenta, como aqui temos vindo a escrever, o ponto de partida do liberalismo: trata-se de uma atitude inicialmente epistemológica, que se transforma no seu princípio filosófico e político estruturante donde se desenvolvem todas as tendências liberais. A esse propósito, muito oportunamente, Miguel Freitas da Costa cita, no Futuro Presente, Owen Harris, numa passagem que poderia ser subscrita por qualquer liberal, que aqui transcrevo, agradecendo-lhe: «Há dois problemas de que os conservadores sempre tiveram aguda consciência. O primeiro é o das consequências indesejadas - de que, dada a complexidade e a inter-relação das coisas, quando se inicia um processo de mudança a grande escala põe-se em marcha muito mais do que tinha em mente o iniciador e o resultado pode ser muito diferente daquele que se pretendia. (…) O segundo problema é o da função latente. Para além das suas funções aparentes, as instituições muitas vezes desempenham outras, funções ocultas de natureza muito importante - o que pode não se tornar visível senão depois de se terem desmantelado essas instituições.»

Esta atitude crítica perante o construtivismo, quando bem compreendida, poderá ser de extrema utilidade no exercício do poder, evitando intervencionismos excessivos e desnecessários, permitindo a libertação das forças do mercado em substituição das decisões do legislador e do governante. Como, igualmente, impedirão um poder sensato de mexer na ordem social ao capricho da vontado passageira dos governantes de circunstância, respeitando as suas instituições sociais naturais.

Por outro lado, o reaccionarismo conservador do passado para com o Estado de Direito, que marcou a atitude conservadora, já não faz hoje qualquer sentido. Como o não faz, também, a crítica do nacionalismo exagerado (os conservadores têm sido, nessa matéria, frequentemente ultrapassados pelos comunistas sobreviventes à queda do Muro nas suas reservas à integração europeia, por exemplo) e do receio da internacionalização (hoje, «globalização»). O mesmo diríamos sobre as posições retrógradas contra a ciência, que sem dúvida continuam a existir, mas que não podem de modo algum ser identificadas na maioria dos conservadores. Em boa verdade, não seria difícil contra-argumentar em relação ao liberalismo, condenando-o genericamente por algumas posições anti-clericais que o marcaram no passado. Nem uma nem outra atitudes estão correctas, como é óbvio.

E o que é verdade é que se o liberalismo político tem tido alguma influência ao nível da governação nas últimas décadas, ela é devida a alguns partidos conservadores. O melhor exemplo encontramo-lo na chamada «Revolução Conservadora» da década de 80 do século passado, no Reino Unido e nos EUA, com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Em contrapartida, não há memória de um «partido liberal» que tenha honrado esse nome. Por isso, se há vida político-partidária para o liberalismo ela poderá ser encontrada nos partidos conservadores. Infelizmente, em Portugal, não é isso que sucede. No limite máximo, alguns dirigentes atrevem-se a dizer que são «liberais em economia» e «conservadores nos valores». Não perceberam nada de coisa alguma, como se torna evidente.

Porque, de facto, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de valores e de princípios que poderá ser útil à praxis política, isto é, poderá inspirar quem governa, enquanto que o liberalismo é uma filosofia de cidadania, no sentido de que incute aos indivíduos uma forte pedagogia individual e social perante o poder público e o Estado, o conservadorismo poderá ser a expressão desses mesmos valores na sociedade e na organização política.

De resto, tranquilamente conformado, diria mesmo, entusiasmado com o Estado de Direito, a democracia, a economia de mercado, a ciência e a liberdade de culto, não restam, nos dias de hoje, ao conservadorismo quaisquer valores do passado. Como, também, não criou quaisquer outros para o futuro, só o liberalismo lhe poderá dar o sentido teórico e os fundamentos filosóficos de que tanto tem sentido a falta.

27 agosto 2007

da perfeição da ordem espontânea

is the enemy

"The account of Christianity presented in this book has necessarily stressed its failures and shortcomings, and its institutional distortions. But we have been measuring it by its own stupendous claims, and its own unprecedented idealism. As an exercise in perfectionism, Christianity cannot succeed, even by its internal definitions; what it is designed to do is to set targets and standards, raise aspirations, to educate, stimulate and inspire.

Its strength lies in its just estimate of man as a fallible creature with immortal longings. Its outstanding moral merit is to invest the individual with a conscience, and bid him follow it. This particular form of liberation is what St. Paul meant by the freedom men find in Christ. And, of course, it is the father of all freedoms. For conscience is the enemy of tyranny and compulsory society; and it is the Christian conscience which has destroyed the institutional tyrannies Christianity itself created - the self-correcting mechanism at work.

The notions of political and economic freedom both spring from the workings of the Christian conscience as a historical force; and it is thus no accident that all the implantations of freedom throughout the world have ultimately a Christian origin".

(Paul Johnson, "Epilogue", A History of Christianity, New York: Atheneum, 1976, p. 516)

26 agosto 2007

a (des)«ordem espontânea»

A «ordem espontânea» que, jura o Pedro Arroja, orientou estes 33 anos da nossa III República, pode caracterizar-se a partir dos seguintes acontecimentos mais significativos:

- Uma revolução no dia 25 de Abril de 1974;

- A radicalização da revolução entre 28 de Setembro de 1974 e 25 de Novembro de 1975, período durante o qual o Partido Comunista e a extrema-esquerda nacionalizaram e expropriaram o país, e promoveram uma descolonização criminosa;

- Uma Constituição política que entrou em vigor em 1976, onde se instituiu um regime político e económico marxista, no qual a propriedade privada era tolerada como o terceiro modelo de propriedade;

- Vários governos socialistas e social-democratas, que aumentaram desmesuradamente a despesa pública com o crescimento descontrolado da burocracia;

- 10 anos de cavaquismo;

- 6 anos de pântano guterrista e de aumento exponencial da despesa pública com paixões como a «educação pública», entre muitas outras;

- Dois primeiros-ministros que desertaram;

- Um sistema de governo semipresidencialista, criado pelos founding fathers do regime para que ninguém se conseguisse entender;

- 28 governos em 33 anos (contribuição generosa do PA na caixa de comentários a este «post»)

Para «ordem espontânea», meu caro Pedro, é, de facto, muita coisa em 33 anos.

Ainda “EU” e DesCartes: o novo Sócrates?




Parece não haver dúvida do influxo que Descartes exerceu no seu tempo a ponto de ter sido chamado “pai da Filosofia”, ainda que a sua influência passe também pela Física (refracção da luz, por exemplo) e pela matemática (geometria analítica).



Descartes pretendeu apresentar-se como um “novo Sócrates”, talvez por estar convencido da sua força renovadora. Daí que no seu “Discurso do Método” tivesse considerado que, atendendo a que os métodos até aí seguidos para a investigação da verdade originavam tão grande diversidade de opiniões e levavam a tantos erros, se tornava necessário estabelecer um novo método, e, baseado nele, uma ciência universal devidamente fundamentada na Metafísica, que estaria na base da Física e demais ramos de saber de carácter prático.



O seu “penso, logo existo” é por isso o protótipo da ideia clara e distinta, de um racionalismo que afirma, mesmo quando se duvida, o mais radicalmente possível.



É verdade que o racionalismo é inseparável de René Descartes (1596-1650) mas também podemos dizer que o seu modo de chegar ao “ego cogito” não é inteiramente novo na Filosofia. Já Plotino se referiu a ele, e pertence a S. Agostinho a célebre expressão “si fallor sum”. A novidade de Descartes esteve em pretender fundar nele toda a filosofia. Não começa pela experiência dos objectos exteriores, como se fizera até então, essa mesma experiência passa a estar fundada no “ego cogito”.


Passemos adiante as famosas provas da existência de Deus, acanhadas pelo seu critério de evidência, e o seu voluntarismo que ao exagerar o papel da vontade, cavou um abismo demasiado profundo entre entendimento e vontade, bem como o seu dualismo exagerado entre corpo e alma, que levou ao "mecanicismo" e à redução da matéria ao à quantidade e desta ao número que é uma idealidade (unidade mental) a sintetizar a pluralidade.


Uma certa tendência para o idealismo conduziu à redução da sensação à ideia. Daí a sucessão de críticas posteriores, mesmo de racionalistas com Leibniz, que levaram à reformulação do “penso, logo existo” em “existo, logo penso”, ou “penso porque existo”.


Para os que – como o nosso querido amigo Pedro Arroja – pretendem arrojar-se de novo às questões de natureza teológico-filosófica seria melhor dar guarida a um outro grande austríaco. Um homem do Tirol: Edmund Husserl. Ganhariam tempo e superariam com vigor muitos equívocos e velhos sofismas, como o que mais “empalmou” Spinoza e o levou a pensar que tudo o que vem da razão é bom. Daí o exagero: é como pensar-se que tudo o que vem dos EUA é bom…


A Descartes deve-se uma maior exigência do raciocínio matemático e uma maior atenção do sujeito no problema do conhecimento.
Mas nem todos sabem que Descartes deriva do antigo nome Quatris que alatinado deu Cartesius. Só que René não gostava dele, por isso passou a Descartes e algumas vezes usou mesmo a forma DesCartes.


Hobbes, filósofo empirista inglês, contava-se entre os mais determinados adversários do idealismo cartesiano, daí que Descartes gostasse pouco dele e menos ainda das suas objecções. Isso explica que um dia tenha afirmado que “seria dar-lhe demasiado valor responder-lhe longamente”.


Resolvi seguir só em parte o conselho de René quanto às insinuações e exageros do post (“EU”) de Pedro Arroja (aliás, aparentemente, corrigidos para logo a seguir serem contrariados em posts subsequentes), que parecem ter tido como alvo um post anterior de Rui A.


Como PA diz aí ser um hipercartesiano compreendem-se melhor os hiper-exageros a que dá largas na sua aproximação entre Descartes e Hayek.


Husserl (na foto) seria aqui de grande ajuda (e caridade católica) para se perceber como passar do “eu” ao “nós” sem que cada um, na sua individualidade, perca o que há de singular e único.



Aproveito para subscrever o pronto comentário do Helder no referido post (“EU”)


P.S. – Texto inspirado nos ensinamentos do meu querido amigo, o saudoso jesuíta e professor de filosofia Júlio Fragata a quem (a par do Arq. Fernando Lanhas) dediquei a minha tese de doutoramento.

a resistência à opressão

Os abusos que são cometidos pelo Estado Democrático sobre os cidadãos em Portugal continuam sem possibilidade de reparação (cf. artigo do VPV abaixo), e o Estado Democrático já vai em 33 anos no país.

A questão importante é, então, a de saber como deve comportar-se um cidadão que é sujeito a uma abuso reiterado do Estado - sujeitar-se à opressão, já que não há lei feita pelos homens que o proteja dela, ou agir e, neste caso, agir mas com base em que lei?

A resposta é: Deve agir com base na Lei de Deus:
"O cidadão está obrigado em consciência a não seguir as prescrições das autoridades civis, quando tais prescrições são contrárias às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas ou aos ensinamentos do Evangelho. A recusa de obediência às autoridades civis, quando as suas exigências são contrárias às da recta consciência, encontra a sua justificação na distinção entre o serviço de Deus e o serviço da comunidade política. 'Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus' (Mt 22, 21). 'Deve obedecer-se antes a Deus que aos homens' (Act 5, 29):

Quando a autoridade pública, excedendo os limites da sua própria competência, oprime os cidadãos, estes não se recusem às exigências objectivas do bem comum; mas é-lhes lícito, dentro dos limites definidos pela lei natural e pelo Evangelho, defender os próprios direitos e os dos seus concidadãos contra o abuso dessa autoridade (GS 74, § 5).

A resistência à opressão do poder político não recorrerá legitimamente às armas, senão nas seguintes condições: (1) em caso de violações certas, graves e prolongadas dos direitos fundamentais; (2) depois de ter esgotado todos os outros recursos; (3) sem provocar desordens piores; (4) havendo esperança fundada do êxito; (5) e não sendo possível prever razoavelmente soluções melhores"(*).

Foi assim que a Igreja Católica, e o Cristianismo em geral, serviram a causa da liberdade humana ao longo dos séculos.

(*) Catecismo da Igreja Católica: 2242.

Nota: O actual Catecismo da Igreja Católica foi promulgado pelo Papa João Paulo II em 1992. A sua redacção esteve a cargo de uma comissão de doze cardeais e bispos presidida pelo então cardeal Joseph Ratzinger.

Ordem espontânea: entre a Abelha e o Arquitecto





Só pode ser ignorância ou queda para a provocação desconhecer que Hayek nunca poupou na sua crítica os intelectuais que animados pelo racionalismo construtivista não se dão conta de que a nossa civilização, fruto da evolução de uma sociedade fechada para uma Sociedade ´Aberta´, não resultou (e a sua manutenção não depende, contrariamente ao que supõe Marcuse) nem da reposição do instinto nem do controle da razão, mas justamente do negar ao instinto e à razão as suas pretensões.



A opção não é, simplesmente, como, ao que parece, pretendia um antigo secretário-geral do Partido Socialista Francês, entre a Abelha e o Arquitecto. Tal opção deve ser denunciada como falsa não só porque o lugar do homem está mais entre esses dois extremos mas ainda porque os países do ´socialismo real´ mostraram que o entregar uma Sociedade aos desejos de uns tantos Arquitectos e Engenheiros sociais significou o ´limpar a tela´ das mesmas tradições e valores que no que Ocidente impediram a Vitória (trágica) do Socialismo Real. O dar a uns poucos o direito de serem verdadeiros arquitectos do social transformou a maioria dos seus concidadãos em abelhas (pouco) trabalhadoras e alguns outros em zangões ao serviço das Abelha-Mestra.

Disto mesmo nos deu conta (em entrevista ao Expresso, 14-X-89) Alexandre Tsypko, doutor em filosofia e membro do CC do Partido Comunista da URSS, que a uma pergunta sobre quando é que pode surgir um fenómeno como o estalinismo, respondeu:

Quando são destruídos todos os mecanismos de contenção. Em muitas sociedades existem forças elementares de contenção que se expressam através da moral, do sistema de instituições religiosas, na divisão entre poder secular e poder laico. Na Europa, por exemplo, a religião, especialmente o catolicismo, desempenhou o papel de uma força que conteve a tendência totalitarista. Infelizmente o catolicismo não estava representado na Rússia, a destruição da Igreja como instituição social e o ateísmo forçado contribuíram para a formação de uma situação em que tudo era permitido.


Continuando a fazer uso da prata da casa, não resisto a deixar aqui uma sábia advertência que, já em 1933, o Professor Joaquim de Carvalho fazia numa altura em que a atracção pelo planeamento, pelo Estado e pelo modelo de ´centralismo democrático´ proposto pelos socialistas em nome do interesse público ia a ponto de se exprimir no ódio ao liberalismo numa cantiga a que ele alude´:



Quando ouve a cantiga do ´liberalismo já lá vai, [deu a alma ao Criador] ...´ entende o democrata que o governante, eleito democratissimamente por sufrágio directo e universal, tem o direito de nos impôr a crença religiosa que ele quiser, de nos coagir a pensar o que ele entender, de nos determinar a profissão que seguiremos, de regular toda a nossa vida como se fosse a peça de um relógio? Pois quem assim pensa que lhe preste, e se satisfaça em ver nas formigas e noutros insectos o espelho da vida que lhe convém. A democracia foi uma conquista grega, e desde então persistiu sempre em numerosíssimas cabeças, sem esquecer as de, por vezes resolutos, teólogos cristãos; o liberalismo pelo contrário, é uma conquista moderna, dos povos civilizados, e combatê-lo é no íntimo, destruir a civilização e rasgar a mensagem eterna de Jesus - a dignidade da pessoa humana.


No fundo Joaquim de Carvalho está a fazer eco da diferença e mesmo possível oposição entre liberalismo e democracia. Uma distinção que é essencial para perceber a tradição de pensamento bem presente também no nosso Alexandre Herculano e que Joaquim de Carvalho vê espelhada numa frase do Novo Testamento:"Veio Jesus e disse que se desse a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus e desde então foi possível a generosa atitude de espírito e de coração donde brota o liberalismo."


Mas Joaquim de Carvalho também percebe que este acento na liberdade pessoal poderia levar a um dualismo entre a Sociedade e o Estado (e de uma forma mais particular entre a política e a economia) daí que coloque algumas interrogações:


Há na neutralidade do liberalismo, como dizia, salvo erro, Oliveira Martins, a liberdade de morrer de fome e na zona que o século XIX considerou apolítica, isto é, a esfera económica, um dualismo que a justiça e o interesse público aconselham que cesse, tornando-a política e estatizada?
Se assim é, que se não tome a parte pelo todo, se não confunda o revestimento com a essência, se não façam calar aquelas vozes que querem que a economia da prosperidade do século XIX se não volva no nosso século em economia de miséria.

Talvez a questão – e nisso PA parece andar no certo – seja de facto, em última instância, religiosa, e embora não seja possível abordá-la aqui é talvez útil e educativo recordar uma distinção que nas suas Noções Elementares de Filosofia Geral, o nosso Silvestre Pinheiro Ferreira faz entre a concepção clássica de divindade formadora (arquitecto) e a concepção cristã de divindade criadora.
Ou seja, em perceber que o verdadeiramente extraordinário sobre o Deus cristão é ser um Deus ´ordinário´: um Deus humilde que respeita a diversidade das leis.

Quem sabe não seja de todo abusivo dizer que o Deus Biblico é um deus secular e um deus sagrado, isto é, um Deus que revela o seu mistério mas que ao mesmo tempo também respeita as leis naturais, reconhecendo autonomia parcial à sua criação e de forma especial ao homem. O Deus cristão é por certo um Deus que intervém por acções extraordinárias mas a sua intervenção normal e essencial faz-se através da providência ordinária. O que verdadeiramente diferencia a ordem "espontânea" do socialismo do capitalismo é que o capitalismo apela mais a um deus ´ordinário´ e a pessoas comuns e o socialismo a uma actuação à margem das leis, ou pelo menos acima das regras comuns. Já o socialismo, assim como as diversas formas de o nacional-socialismo, revestem de Providência Extraordinária os seus ´génios´ de que o culto da personalidade é apenas um sintoma.

ordem espontânea

A ordem espontânea do regime de democracia liberal em Portugal mais do que duplicou o peso do Estado na sociedade no espaço de uma geração (19.9% do PIB em 1973; 48% actualmente), produziu um Estado irresponsável e incorrigível (cf. artigo do VPV abaixo), paralisou a administração da justiça, lançou o país na mais longa recessão de que há memória no último século e colocou a taxa de desemprego a nível record.

Estes são os resultados em Portugal de 33 anos de ordem espontânea do Hayek.

Razão e DesRazão



A razão é um explosivo perigoso que, manipulado com cautela será muito benéfico, mas se manipulado sem prudência pode fazer explodir uma civilização. (F. A. Hayek)




Tal como Hayek, estou com o grande Montesquieu quando este no auge da “idade da Razão” tão claramente salientou: la raison même a besoin de limites.

Mas também faz bem governarmo-nos com a a prata da casa, mais ainda quando as peças são de boa qualidade:




Nada define melhor a fraqueza que o fictício predomínio da razão. (Agustina Bessa-Luís)

O pensamento e a crença são dois domínios que não se aniquilam, mas antes se completam, pois o pensamento radica na crença. Não há demonstração racional sem crença no valor da demonstração. E a frase vulgar do pseudo-culto: “Só acredito no que me for demonstrado racionalmente”, é já por si a confissão que admite o que pretende abolir ou negar. Mas não é a razão que é a base da crença, mas a crença o fundamento da razão. A palavra grega que significa ciência inclui na sua composição morfológica a raiz que significa crença. A ciência é, pois, uma espécie de crença que exige antecipadamente a crença em si própria. E se, de facto, o demonstrável é criador de convicção, não esqueçamos que esse demonstrável e racionalmente evidente é uma parte que da crença se desenvolveu. É a raiz oculta no húmus que alimenta a parte visível da árvore da ciência ... (Delfim Santos)

porque é o liberalismo necessário?

«Forças de Bloqueio*

O Presidente da República vetou ontem o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado. Se a Assembleia confirmar o veto, isto significa que o Estado deixará de ser legalmente responsável por qualquer dano que infligir a um cidadão (a si ou a mim), faça o que fizer ou tome as decisões que tomar. O Estado pode, por exemplo, condenar um inocente por pressão política sem o indemnizar, pode legislar ad hominem como bem entender e lhe convier e pode com uma lei, um regulamento ou uma obra anular o valor de uma propriedade. Pode tudo e ninguém lhe pode pedir contas, porque goza de uma impunidade absoluta, que nega os próprios fundamentos do direito como até agora entendido no Ocidente civilizado.»

Extracto do artigo de VPV, no Público de hoje.

hayek e as baratas

Estado e governo não são necessariamente o mesmo, se daquele tivermos um conceito estrito que, em regra, coincide com o exemplo de escola do Estado Moderno. Se, pelo contrário, partilharmos de uma noção mais alargada de Estado, no sentido das instituições e magistraturas que exercem o poder público, é óbvio que o Estado é universal e intemporal. Se o tivermos apenas como o tipo histórico referido, ele corresponderá a um modelo temporalmente delimitado.

Seja como for, em sentido estrito ou lato, o Estado é sempre uma instituição que resulta da evolução social e, quase sempre (com excepção dos tipos ditatoriais impostos aos cidadãos pela força) da vontade dos indivíduos. Ele é, em boa medida, produto das nossas fragilidades e do medo que acompanha os homens ao longo da sua existência. A sua extensão é sinónimo de subdesenvolvimento: o Estado é sempre funcionalmente mais extenso em meios sociais incapazes de o substituir ou de impedirem (e não desejarem) o seu crescimento. Por isso, o Estado intervencionista espelha uma sociedade (não necessariamente, mas quase sempre, um país) com capacidades reduzidas e muito limitadas. Subdesenvolvidas, por conseguinte.

Isto poderá ter várias e diferentes explicações: desde as de ordem histórica, como sucede com a maior parte dos países africanos, onde os poderes públicos emergentes de estados de colonização ou/e guerra prolongada não tiveram dificuldade em se imporem ditatorialmente a sociedades escravizadas; ao entorpecimento dos cidadãos, que os economistas tão bem explicam, habituados a viverem em Estados assistencialistas, a quem eles não se importam de entregar a sua liberdade em troca de condições minimamente satisfatórias de vida e poucos riscos, como é o caso português das últimas décadas; aos processos lentos de centralização e de ampliação das funções sociais por via legal, sempre inspiradas pelas melhores e mais democráticas razões, como sucede em quase todas as democracias contemporâneas.

Os liberais devem ter a consciência disto, em vez de virarem as costas ao Estado e de especularem como se ele não existisse ou para além da sua existência. Hayek, de resto, já avisara quanto à imprevisibilidade do «seu» evolucionismo: «Não afirmo que os resultados da selecção das tradições por parte do grupo sejam necessariamente "bons" – assim como não afirmo que outras coisas que sobreviveram por muito tempo no decorrer da evolução, como as baratas, têm valor moral» (The Fatal Conceit-The Errors of Socialism).

hayek: a ideologia da liberdade?

É óbvio que Hayek compôs um sistema de ideias. E que, como todos os compositores, pretendeu que o conjunto da sua obra fosse harmónico e coerente, que as partes não se contradissessem e que o resultado final fizesse sentido. Como era um filósofo político, a sua reflexão incidiu sobre o indivíduo, a sociedade e as suas várias formas de uns e outros se ordenarem e governarem. Preocupou-se, como qualquer filósofo que se preze, com que a sua teoria espelhasse a realidade. E, como todos os filósofos também, pretendeu, por vezes, que a realidade se encaixasse na sua teoria. Quererá isto dizer, por outras palavras, que Hayek construiu uma ideologia? Que o liberalismo é, segundo ele, a ideologia da liberdade? Não o creio, embora conceda também que existem fortes vestígios disso nalgumas partes da sua obra.

De facto, Hayek não era exactamente um sociólogo, isto é, um filósofo que se arrogasse no conhecimento da sociedade humana e das suas «leis». Não é propriamente um herdeiro de Spencer, para quem a sociedade não tem mistérios que se não possam descobrir. Como não é um positivista, degenerescência mais do que compreensível do racionalismo cartesiano, Hayek proclama-se impotente para compreender os mecanismos que determinam o comportamento dos indivíduos e dos agregados sociais que os compõem e, por essa razão, não lhe resta outro caminho senão enjeitar qualquer outro «dirigismo» que não seja o dos indivíduos sobre as suas próprias vidas. A essa forma de «dirigismo» chama-se liberdade, conceito cuja definição é, como tão bem escreveu Hanna Arendt, «uma missão sem esperança». Contudo, uma missão de que não podemos desistir.

Dessa liberdade individual, mesmo quando ela é fortemente reduzida, resultam comportamentos imprevisíveis, logo, impossíveis de prever e de planificar. A sua recusa do intervencionismo baseia-se nisto. Por outro lado, a acção humana vai gerando formas de comportamento, normas de conduta, regras de resolução de conflitos e instituições que as fiscalizam e aplicam. Nesse sentido, ele é um herdeiro de Locke, para quem o governo e as suas instituições nunca fizeram espécie, nem contradizem o ideal da liberdade, antes o reforçam e garantem. Hayek é, por isso, um evolucionista, no sentido de que, como ele mesmo escreve (LLL), «a teoria da evolução, em si, não fornece mais do que a descrição de um processo cujo resultado dependerá de uma enorme quantidade de factos particulares, excessivamente numerosos para que pudéssemos conhecê-los na sua totalidade, e, portanto, não permite previsões de futuro. Por conseguinte, estamos restritos a ‘explicações de princípio’ ou, simplesmente, a previsões de padrão abstracto a que o processo obedecerá.»

Todavia, há que reconhecer que, para Hayek, ainda no seguimento de Locke, a liberdade, a propriedade, a segurança dos indivíduos são valores fundamentais, ao serviço dos quais devem estar as instituições públicas e as magistraturas. Neste sentido, ele é um ideólogo, porque propõe objectivos e finalidades para o poder político. Há, de facto, quem não pense deste modo e, por exemplo, quem considere que o poder político deve diminuir, ou mesmo suprimir, a propriedade privada, que deverá sobrepor a sua soberania à liberdade, e que será por estes meios que a felicidade dos homens se alcançará. Estamos perante um outro tipo de ideologias, isto é, de propostas de programação dos poderes públicos. Numa sociedade democrática, todos temos direito a pensar o que quisermos e a exprimir livremente os nossos pensamentos. O que não podemos é acreditar que pensamos todos o mesmo e que todos os valores sociais e políticos são igualmente benévolos, sob pena de cairmos no mais puro relativismo.

Curiosamente

Como é possível que um país tão pequeno como Portugal, que, no século XV, não tinha mais de um milhão de habitantes, tenha colonizado meio mundo?

Num post anterior, citando o historiador americano David Landes, indiquei uma razão. Portugal, ao contrário da Espanha, empreendeu a aventura dos Descobrimentos de uma forma sistemática e científica e isso implicou, entre outras coisas, colocar os seus escassos postos comerciais e militares em locais estratégicos, judiciosamente escolhidos nas rotas marítimas descobertas.

Noutro post, citei a escritora brasileira Dutra de Meneses: "Quem já fez amor com um português compreende porque é que eles colonizaram meio mundo". E, na realidade - ao contrário dos espanhóis -, não dispondo de um exército numeroso, que a população do país não dava para isso, não restava aos portugueses senão misturarem-se com a população local.

A verdade, porém, é que por mais judiciosamente escolhidos que fossem os entrepostos comerciais e militares, e por melhores que os portugueses fossem na cama, como é que um país de apenas um milhão de habitantes - dos quais apenas metade seriam homens e, destes, apenas uma pequena fracção partiu nas expedições - conseguiu colonizar, ao mesmo tempo, várias territórios em África, ainda outros na Índia, também na China, pôr ainda um pé no Japão, para além da imensidão do Brasil e mais umas quantas ilhas entre oceanos?

A razão principal foi a Igreja Católica e os missionários. Foram os missionários que, convertendo as populações ao cristianismo, asseguraram a sua lealdade à coroa portuguesa. Os missionários fizeram pacificamente para a coroa portuguesa aquilo que as armadas fizeram pela força para a coroa espanhola, sendo o papel dos missionários neste caso comparativamente menor.

O Marquês de Pombal viveu oito anos em Inglaterra (1735-43), onde a Igreja Católica era perseguida, e meteu-se-lhe na cabeça que um país moderno - como ele olhava a Inglaterra - era um país que perseguia a Igreja Católica. E foi isso que ele fez quando tomou o poder em Portugal, expulsando os jesuítas (1759) e confiscando-lhes os bens e, de uma maneira geral, perseguindo os padres e iniciando no país uma tradição de anti-clericalismo que ainda hoje perdura.

A partir daí o nosso império tremeu e não podia senão decaír. A primeira vítima foi o Brasil. Os missionários jesuítas tinham sido decisivos na colonização do Brasil. Agora, que os jesuítas eram perseguidos na metrópole, e os seus bens confiscados, os padres jesuítas no Brasil, e os de outras confissões, começaram, eles próprios, a incentivar a população local a cortar os laços com Portugal. A influência decisiva que tinham na educação não demorou muito tempo a produzir uma geração de independentistas no Brasil. E o Brasil tornou-se independente em 1822.

Curiosamente, logo após a independência, o país que tomou o lugar de Portugal no monopólio do comércio que este possuía com o Brasil, foi precisamente aquele país que tinha ensinado o Marquês de Pombal a construir um país moderno e próspero - a Inglaterra.

25 agosto 2007

uma desgraça

Quando, num post abaixo, o Rui desafiou os seus leitores a escolherem entre o Descartes e o Hayek, eu fui o primeiro a responder: Descartes!

Posteriormente, avancei uma razão, mas não a mais profunda, que na altura, eu não me sentia ainda em condições de formular. Faço-o agora.

Descartes, que é considerado o primeiro filósofo moderno, é também às vezes referido como o último dos escolásticos. E, na realidade, ele foi o último de uma longa série de filósofos, ao longo de muitos séculos, que reportavam a Deus. Ele foi o último dos filósofos genuinamente comprometido com a verdade, e sempre guiados pela preocupação de chegar à verdade. Não interessa se lá chegou ou não e quantos erros cometeu.

A partir de Descartes - não obstante algumas excepções, é certo - foi uma desgraça. Os filósofos passaram a reportar a si próprios, ao povo, aos seus colegas de departamento académico, ao partido ou ao poder político. Não era possível mais acreditar que eles estavam genuinamente empenhados na procura da verdade.

E a filosofia, que até aí tinha sido uma prodigiosa aventura do espírito humano em busca da transcendência, tornou-se uma teologia secular - para conhecer o eu, para vender um novo projecto de sociedade ao povo, para obter uma promoção académica, para conseguir uma sinecura do partido ou para aconselhar o mais recente primeiro-ministro a conservar o poder.

Eduardo Prado Coelho

Faleceu hoje o Eduardo Prado Coelho.
Deus o guarde, e o meu desejo é genuíno.
Mas, enquanto intelectual público como ele foi, eu acho que devo dizer, precisamente no dia da sua morte, que ele representava para mim aquilo que de pior um intelectual pode ter - o seu espírito permanentemente hipotecado ao poder político.

pura demagogia

A tese neoliberal, segundo a qual existe uma relação de causalidade inversa entre a dimensão do Estado e o grau de desenvolvimento dos países não encontra nenhuma - mas nenhuma - confirmação empírica, e é pura demagogia.

Existem hoje vários indicadores estatísticos para medir o peso do Estado numa sociedade. Um deles, o mais utilizado, fá-lo calculando a percentagem da despesa pública no PIB. Existem também vários indicadores estatísticos que permitem medir o grau de desenvolvimento de um país, sendo o mais utilizado o Indice de Desenvolvimento Humano (IDH) compilado pela ONU e que é um índice sintético do desenvolvimento económico (PIB per capita), do desenvolvimento social (esperança de vida à nascença) e da educação (taxa de alfabetização da população adulta).

No mundo, os países com o maior peso do Estado na sociedade são os países ocidentais de tradição cristã, sobretudo os da Europa Ocidental e da América do Norte. A tese neoliberal faria prever que estes países são os menos desenvolvidos do mundo. Mas não são - são os mais desenvolvidos do mundo, com a Noruega à cabeça, seguida da Islândia, Austrália, Canada, Luxemburgo e Suécia.

Dentro da tradição cristã do Ocidente, os países com a maior dimensão do Estado são os países nórdicos da Europa. Segundo a tese neoliberal deviam ser os menos desenvolvidos. Mas não são - são os mais desenvolvidos do mundo, colocando essa pequena região três países entre os seis mais desenvolvidos do mundo e aparecendo a Finlândia e a Dinamarca, respectivamente, em 13º e 14º lugares. (1)

(1) The Economist, Pocket World in Figures, 2007 Edition, London, p. 30.

o seu principal inimigo

O carácter ideológico do neoliberalismo, tal como protagonizado por Hayek, Mises e outros autores possui uma das suas expressões mais interessantes na militância anti-estatista dos neoliberais. A sua sociedade ideal constrói-se com mais liberdade individual e menos coerção e, possuindo o Estado o poder de coerção na sociedade, o Estado torna-se, assim, o seu principal inimigo.

Mises afirmava que todas as acções do Estado produzem sempre efeitos que, mesmo do ponto de vista de quem as recomenda, são exactamente opostos aos pretendidos. Hayek não foi tão longe. Porém, a sociedade é, para ele, um sistema de tal modo complexo e as possibilidades do conhecimento humano tão limitadas, que qualquer intervenção do Estado na ordem espontânea da sociedade gera necessariamente consequências imprevisíveis e algumas delas inevitavelmente nefastas. Daí a sua defesa do Estado mínimo e, sobretudo, do Estado não-intervencionista.

Para Mises, tudo o que o Estado faz é asneira - o que levou o seu mais ilustre discípulo, Murray Rothbard, directamente ao anarquismo; para Hayek a probabilidade é elevada de que seja asneira. O Estado torna-se o principal inimigo da sociedade, mesmo se, como o Rui A. frequentemente tem insistido aqui, o Estado não é senão, ele próprio, uma instituição espontânea da sociedade, e não uma entida imposta de forma exógena à sociedade.

Para os neoliberais na linha de Mises e Hayek, a liberdade conquista-se ao Estado, e cresce na mesma proporção em que é diminuída a esfera de acção do Estado na sociedade. E quando eles tiverem conquistado o poder político, a liberdade será mesmo uma concessão do Estado, porque eles encarregar-se-ão, então, de revogar as leis necessárias para diminuir a influência do Estado na sociedade. Mesmo que este acto do Estado seja mais uma asneira certa ou de elevada probabilidade, como, segundo eles próprios, são todos os actos do Estado.

tap e financiamento partidário

Terminou a nossa sondagem sobre a TAP. À pergunta «considera a TAP uma das melhores companhias de aviação do mundo?», responderam 51 leitores, do seguinte modo: «prefiro andar a pé», com 18 votos (35%), «sim», com 16 votos (31%), «não», com 11 votos (16%), «só se viajar sem malas», com 6 votos (11%).
O inquérito desta semana é sobre o financiamento partidário.

24 agosto 2007

Eu


Friedrich Hayek (1899-1992) é certamente um autor muito importante para a história das ideias, para a economia e, sobretudo, para a filosofia do direito - e, portanto, um autor que em Portugal deveria ser estudado em todas as faculdades de direito, e logo no primeiro ano.

Na sua globalidade, porém, o pensamento de Hayek possui uma agenda, é uma ideologia - no sentido de um sistema de ideias para mudar a sociedade - e, portanto insere-se na tradição construtivista saída de Descartes e da revolução francesa e que ele próprio denunciou.

Hayek foi um combatente da guerra-fria, embora um combatente no campo das ideias. O seu inimigo principal era o socialismo em todas as suas variantes, desde a social-democracia ao comunismo, com o seu projecto de construcção de uma sociedade onde todos os homens fossem iguais, e utilizando o Estado como instrumento privilegiado.

A este projecto, Hayek contrapôs um projecto alternativo, o da Grande Sociedade como ele próprio lhe chamava. Esta era uma sociedade em que cada homem maximizava as probabilidades de atingir os fins que ele próprio se propõe na vida e utilizando a liberdade individual como o instrumento privilegiado.

Os edifícios sociais a construír são diferentes, num caso, uma sociedade onde prevalece a igualdade, no outro, uma sociedade onde prevalece a diversidade, tanto quanto ela é permitida pela variedade dos fins da vida humana. As tecnologias de construcção também são diferentes, num caso, o poder coercivo do Estado, no outro, a maximização da esfera de liberdade individual. Mas o processo é idêntico: uma sociedade ideal a construír e uma tecnologia de construcção.

Hayek não conseguiu escapar à corrente do mau racionalismo - o racionalismo construtivista -, a qual, tal como a corrente que ele considerava ser a do bom racionalismo - o racionalismo crítico -, tinha tido origem em Descartes.

Ao contrário de Hayek, Descartes nunca procurou impôr à humanidade - nem mesmo pela razão, como fez Hayek, menos ainda pela força - qualquer projecto de sociedade. Ele não produziu nenhuma ideologia - a principal fonte das tragédias da era moderna.

Pelo contrário, Descartes exprimia-se sempre na primeira pessoa do singular - e, neste aspecto, para todos os que me lêem regularmente, eu próprio sou um hipercartesiano convicto. Ele é o primeiro filósofo a exprimir-se consistente e permanentemente na primeira pessoa do singular. É aqui que, quanto a mim, reside o carácter inovador e revolucionário do cartesianismo e que me leva a preferir Descartes sobre o seu discípulo Hayek. Cartesiano por cartesiano, antes o produto genuíno.

jantar

Rui,

Peço-lhe desculpa por ontem não ter podido responder àquela questão da minha preferência do Descartes sobre o Hayek, a que fiz referência numa das caixas de comentários.

A razão é que fui jantar com a Miss Pearls e a coisa durou até tarde. Espero que me releve a falta e compreenda a minha escolha. Entre a Miss Pearls e os carantonhas do Descartes e do Hayek que você postou aí em baixo...

Ela manda-lhe cumprimentos. Acha que você é um cavalheiro.



«não funciona!»

Terá sido a frase que Margareth Thatcher mais terá ouvido nos primeiros anos do seu governo, quando as suas políticas de choque para reduzir o peso do Estado na sociedade britânica começaram por produzir desemprego, instabilidade social e aumento dos preços, ao invés daquilo que os eleitores estavam à espera.

O Reino Unido era, ao tempo da sua primeira vitória eleitoral, em 1979, um país estatizado, cujo poder se encontrava nas mãos das Trade Unions e do funcionalismo público do Civil Service. As políticas de Thatcher assustavam o país, começando pelos seus colegas de governo e de partido. No Congresso de 1980 dos tories, Thatcher fez um célebre discurso onde se mostrou inflexível no caminho a seguir. Quando muitos apostavam já um volte-face nas políticas do seu governo, semelhante ao célebre «U-turn» de Edward Heath no começo da década de 70, Thatcher disse ao Congresso esta frase célebre: «To those waiting with bated breath for that favourite media catch-phrase—the U-turn—I have only one thing to say: you turn if you want to; the Lady's not for turning.»

Nos dez anos que se seguiram, Margareth Thatcher recuperou o país, liberalizou-o e soltou as forças do mercado livre. A sua herança do «capitalismo popular» é ainda hoje reclamada pelos tories, e foi inspiradora para a formação da personalidade política de Blair enquanto governante, que nunca enjeitou os paralelismos que com ela foram estabelecidos pela opinião pública, sobretudo pela de esquerda. A mulher que em tempos confessou ter decidido abraçar a política após ter lido o The Road to Serfdom, de Hayek, conseguiu fazer do seu país um país mais livre, muito mais livre, do que aquele que encontrou. Os ingleses sabem disso e ainda hoje lhe agradecem.

23 agosto 2007

Lugo Liberal








Às vezes de Espanha chegam bons ventos... e da Galiza quase sempre bons ensinamentos, como este de Lugo liberal que aqui deixo antes de ir dormir.


F. A. HAYEK (Nobel de Economía en 1974): "A diferencia de socialistas y conservadores, el liberal no es un hombre de partido. Es, más bien, un partidario de la libertad."


EDMUND BURKE: "Lo único que se necesita para que triunfe el mal es que los hombres buenos no hagan nada."

embasbacados

O Marquês de Pombal foi o mais influente dos estrangeirados em Portugal. Ele próprio viveu oito anos em Inglaterra (1735-43) e ambicionava recontruir Portugal à imagem da Inglaterra. Durante os anos que lá viveu, ele pôde aperceber-se, na sua mente de burocrata, como é que se fazia um país novo e à imagem britânica - perseguindo a Igreja Católica.

O catolicismo tinha sido objecto de perseguição violenta na Grâ-Bretanha desde, pelo menos, o Tratado de Westfalia e um acto do parlamento de 1701 decretou que nenhum rei católico poderia subir ao trono britânico - uma legislação que ainda hoje se mantém em vigor na liberal Inglaterra (enquanto na intolerante cultura católica de Portugal ainda há pouco tivemos um Presidente da República judeu).

O reinado do Marquês (1750-78) e a expulsão dos jesuítas marcam um ponto de viragem dramático na história de Portugal. A partir de então, tudo o que era católico - por outras palavras, tudo aquilo que representava a nossa cultura de séculos - passou a ser mau e desprezível; pelo contrário, tudo o que vinha de lá de fora, significando sobretudo os países protestantes, é que era bom e recomendável.

Em meados do século XVIII, a Inglaterra possuía uma cultura protestante que podia florescer, sobrepondo-se e até marginalizando a cultura católica. Pelo contrário, Portugal (e a Espanha), que tinham liderado o movimento da contra-reforma, possuíam apenas uma cultura católica. Quando esta cultura foi atacada, e os próprios intelectuais e políticos portugueses (e espanhóis) se juntaram ao inimigo, nada mais seria de esperar senão o declínio.

A substituição dos jesuítas por professores laicos na universidade de Coimbra produziu uma intelectualidade secular que, desprezando a sua própria cultura e não possuindo outra, ficou permanentemente a olhar para o estrangeiro à espera das ideias que haviam de modernizar o país, nunca se apercebendo que, com a sua atitude, em lugar de o modernizar, cada vez mais o enterrava.

Os intelectuais saídos da Universidade de Coimbra ao longo de todo o século XIX e até 1926 são, na sua esmagadora maioria, um bando de arruaceiros especializados em desprezar a cultura do seu próprio país, embasbacados com tudo o que vem lá de fora, peritos em escarnecer e perseguir frades - e fazer tudo isto a partir de empregos seguros no Estado, pagos com os impostos do povo cuja cultura eles tanto desprezavam. À parte o interregno do Estado Novo, é esta cultura que em larga medida permanece ainda hoje na universidade portuguesa.

Na viragem do século XIX para o século XX o catolicismo atingiu provavelmente um dos pontos mais baixos da sua história e havia quem previsse a sua extinção - entre nós, o célebre Afonso Costa, o rei dos mata-frades. Pode ter tido origem nesta fase difícil do catolicismo o preconceito de Hayek que, vindo de um país católico - a Austria - não atribuiu qualquer importância ao pensamento católico na génese do liberalismo. Pelo contrário, foi buscá-lo à Escócia do século XVIII, um dos centros mais virulentamente anti-religiosos e anti-católicos do Iluminismo.

Quando em 1890 o governo português decretou a fusão do Banco de Lisboa e da Companhia Confiança Nacional, dando lugar ao Banco de Portugal e ao monopólio da emissão monetária no país - o regime que até então vigorava era de pluralidade de bancos emissores - Alexandre Herculano protestou e expôs as vantagens de um regime concorrencial na emissão monetária.

Cerca de um século depois, Hayek considerou uma das maiores contribuições que deu à Economia a defesa da tese da concorrência na emissão monetária, por oposição ao monopólio de um banco central.

Quando, em 1905, Max Weber publicou a sua Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, numa altura em que era moda denegrir o catolicismo, e se tornou mundialmente famoso, Antero de Quental já tinha exposto essa tese mais de trinta anos antes nas Conferências do Casino.

E quando, nas últimas décadas, os países do norte da Europa e da América do Norte passaram a andar à procura de soluções aos problemas do multiculturalismo, já nós tínhamos criado países multiculturais há séculos. E a escritora brasileira Dutra de Meneses, autora do best-seller O Português que nos pariu, numa entrevista recente à Visão explicou até a técnica mais eficaz (cito de memória): "Quem já fez amor com um português compreende como é que eles colonizaram meio mundo".

Na minha opinião, a cultura católica não precisa de ser mais criticada e desprezada. Necessita, em primeiro lugar, de ser recuperada, e a seguir, desenvolvida. Duvido que as universidades o consigam fazer. Mas, se não conseguirem, alguém vai ter de o fazer por elas.