29 junho 2007

My grandmother

Ainda hoje representam uma percentagem mínima da população mundial, apenas 0,25%, e nunca representaram muito mais. Viveram durante milénios dispersos pelo mundo, sem nunca perderem a sua identidade e a sua coesão nacional. Onde quer que se estabeleceram ao longo da história, acabaram, quase que invariavelmente, a ser ressentidos pelas populações locais e, por isso, foram frequentemente discriminados, confiscados, perseguidos e mortos.

A experiência histórica deste povo - única na história de humanidade - há-de permitir realçar características únicas da sua cultura, e traços únicos do seu carácter nacional. Gostaria de deduzir aqui apenas dois. O primeiro é o extraordinário sentimento comunitário dos judeus. Sem este sentimento extraordinário, há muito que a nação judaica teria sido extinta. O cimento que uniu a comunidade judaica, e lhe permitiu atravessar as maiores vicissitudes da história e ainda assim sobreviver, foi a sua religião e o seu Deus.

Na realidade, se nenhuma cultura, menos ainda uma civiilização, alguma vez existiu sem uma religião e um Deus, a experiência histórica da comunidade judaica está aí para demonstrar que a única Nação pequena, vivendo ao longo de milènios sob as circunstância mais adversas que a história pode proporcionar, e que, ainda assim, conseguiu sobreviver e prosperar, é uma Nação que tem uma religião e um Deus.

Naturalmente que uma comunidade que vive assim tanto tempo sob o assédio, a perseguição, a confiscação e a ameaça de morte há-de encontrar mecanimos culturais de defesa e de luta pela sobrevivência, e que passam a ficar entranhados no seu carácter nacional. Um deles é uma certa tendência para a dissimulação, a ambiguidade, a ambivalência e, no limite, a mentira. Kant foi ao ponto de considerar os judeus como o exemplo acabado dos mentirosos.

Não é difícil imaginar, nas condições de perseguição em que frequentemente viveram ao longo de milénios, aquilo que poderia suceder a um judeu se respondesse com perfeita verdade à pergunta: Você é judeu?. Não é difícil também imaginar o risco que corria se à pergunta Qual é a sua religião?, ele respondesse com inteira sinceridade.

A questão da verdade, por um lado, em contraposição com a mentira ou a mera dissimulação, por outro, não é aqui uma mera questão de carácter pessoal. É uma questão de sobrevivência pessoal e comunitária e, por isso, perfeitamente compreensível e até aceitável. Mas nem por isso deixa de fazer justiça à reputação que os judeus possuem, aos olhos das comunidades exteriores, de uma certa propensão para a dissimulação e a mentira.

Eu gostaria de mencionar a este respeito, e meramente como exemplo ilustrativo, um episódio passado com o Presidente Jorge Sampaio em 2003. Numa entrevista ao The Jerusalem Post, o jornalista perguntou ao Presidente português se se considerava judeu. O Presidente respondeu que a sua avó materna era uma judia originária da comunidade judaica de Marrocos . ("My grandmother belonged to a Jewish family that came from Morocco...")

Perante esta resposta, dir-se-ia que o Presidente não respondeu à questão. Na realidade, respondeu, embora de forma dissimulada. Na realidade, segundo a lei judaica, a condição judaica de uma pessoa define-se pela sua filiação materna: é judeu todo aquele que é filho de uma mulher judia, independentemente da nacionalidade do pai. Ora, sendo judia a avó materna do Presidente, a sua mãe também era judia e ele, obviamente, é judeu.

Mas então, porque é que O Presidente não respondeu com clareza à pergunta, dizendo simplesmente Sim, sou judeu? A resposta só pode, provavelmente, ser dada olhando a herança cultural do judaísmo a qual, sobre ele como sobre qualquer outra pessoa pertencente a esta tradição, haveria de deixar as suas marcas de milénios.

28 junho 2007

dupla precaução (reimpressão)

A minha regra é a de usar dupla precaução a interpretar os movimentos filosóficos, científicos ou meramente de opinião cuja liderança seja feita predominantemente por intelectuais judeus. Estão, neste caso, o neo-conservadorismo americano, o neo-liberalismo e o libertarianismo e várias correntes do chamado politicamente correcto.

Presumo que os intelectuais de cultura judaica são sempre mais fieis à sua cultura do que à verdade e que, em caso de conflito entre ambas, optam pela primeira em detrimento da segunda - e sem hesitação.

(A versão completa deste post foi originalmente publicada no Blasfémias em 23/04/2007)

referendos

Referendar o próximo tratado comunitário não faz muito sentido. Ele será sempre um tratado de revisão, note-se, de revisão de uma outra coisa que o precede e já existe, a saber, os tratados comunitários em vigor - o Tratado da União Europeia e o Tratado da Comunidade Europeia. De resto, versando o conteúdo do novo tratado, como se supõe, sobre questões eminentemente técnicas - regras de votação, maiorias, etc., já que as questões políticas ficaram enterradas com o Tratado Constitucional, ninguém perceberá minimamente do que se está a falar e em que é que está a votar. Daí a que o voto sobre o tratado comunitário se transforme rapidamente num referendo sobre a popularidade do governo português será um pequeno passo. De mau gosto, diga-se.
Mas há coisas sobre a Europa comunitária que os portugueses percebem. Duas, pelo menos: a presença de Portugal na União Europeia e no Euro. E podem ser referendadas. Era sobre elas que eu gostaria de ver os nossos defensores da soberania popular e dos referendos, entre eles o Dr. Marques Mendes, a exigir que o povo português se pronunciasse. Se para isso tivessem coragem e não apenas manha, obviamente.

um filme liberal


Ou melhor, um filme libertário. Sobre um homem que perseguia um sonho e alguns homens que não o queriam deixar realizá-lo. A não perder.

27 junho 2007

toda a liberdade

Um primeiro-ministro que se sinta difamado por um blogger, provavelmente vai colocar uma acção judicial contra ele, ainda que não tenha razão. Um Papa que seja difamado ou insultado por um blogger não faz nada disso. Na realidade, não faz nada.

A diferença reside em que um primeiro-ministro à procura de ser reeleito não é um homem livre, está escravizado à opinião pública, e a acção judicial dá pelo menos a aparência de que é ele que tem razão - e não o blogger -, favorecendo a sua imagem junto do público.

Pelo contrário, se o Papa é insultado ou difamado - como por vezes tem sucedido na blogosfera portuguesa - ele não reage, nem com processos judiciais, nem com perseguições pessoais, nem sequer retribuindo os insultos.

Quem insulta o Papa (ou qualquer outra pessoa) não é de certeza um homem livre, porque só o poderá ter feito para agradar - porque se encontra escravizado - à opinião de algum grupo ateísta ou anti-católico militante. Mas o Papa é um homem livre, o seu lugar é vitalício, não depende de ninguém. Para quê, então fazer o mal - pondo um processo judicial ao autor dos insultos ou vingando-se dele por outra forma, em qualquer caso produzindo-lhe um dano - se ele tem toda a liberdade para fazer o bem - ignorando os insultos e até contribuindo para reeducar o seu autor?

O Papa possui sobre a hierarquia da Igreja, que inclui muitas centenas de milhar de eclesiásticos espalhados pelo mundo, e sobre todos os assuntos da Igreja, um poder que, nos termos da lei canónica, é um poder "pleno, supremo e universal, que pode sempre livremente exercer". Dotado deste poder, o Papa pode, se quiser, instrumentalizar à vontade a vida de todos os eclesiásticos que dependem dele, subjugando-os, discriminando entre eles, penalizando-os, perseguindo-os. Mas não o faz. Na realidade, para quê fazer o mal se ele tem toda a liberdade para fazer o bem?

Ainda por cima o poder do Papa é vitalício. Todo junto, este é um poder extraordinário - o mais absoluto de todos os poderes que se podem conceder a um homem. Lord Acton escreveu que "todo o poder corrompe e o poder absoluto tende corromper absolutamente". E, embora a história da Igreja contemple casos de Papas que se deixaram corromper, esses foram as excepções, não a regra. Na realidade, porque é que um Papa se há-de deixar corromper, fazendo o mal, se ele tem toda a liberdade para fazer o bem?

Uma palavra irresponsável ou mal intencionada do Papa seria suficiente para levar por maus caminhos mais de um bilião de fieis católicos espalhados pelo mundo, e provavelmente mais alguns biliões de homens e mulheres - se calhar, toda a humanidade - que, embora não sendo católicos, olham para ele como um líder e uma autoridade moral. Mas porque haveria o Papa de agir assim, fazendo o mal, se ele tem toda a liberdade para fazer o bem?

26 junho 2007

a pessoa mais livre


Quando, recentemente, o Rui A., no seguimento da minha colaboração no Blasfémias, me sugeriu que continuasse a escrever na blogosfera, desta vez no Portugal Contemporâneo, mas sempre numa perspectiva liberal, voltou ao meu espírito uma questão com que me debato há vários anos, e agora a exigir uma resposta sob pressão redobrada.

Na realidade, na ânsia de poder corresponder da melhor forma que eu fosse capaz à sugestão do Rui, a minha questão - posso admiti-lo agora - era a de procurar eleger, entre todas as pessoas que eu conheço de perto ou distantemente, públicas ou privadas, ainda vivas ou já falecidas, aquela que, homem ou mulher, personificasse perante mim o ideal liberal, e de algum modo me pudesse servir de padrão.

Ao longo de anos fui colecionando na minha mente muitas pessoas, algumas que conheço ou conheci privadamente, outras que eram autores considerados liberais que li ou estudei, outras ainda figuras públicas pertencentes à história ou à actualidade - mas permaneci sempre hesitante e sem capacidade para decidir.

Até que, há cerca de dois meses, a minha própria espontaneidade me traiu. Falando perante um grupo de jovens sobre a profissão de economista e os benefícios e os custos inerentes a essa profissão, no final, uma jovem interrogou-me:
-Se pudesse recomeçar a sua vida, voltaria a ser economista?
-Sim, respondi eu, e acrescentei: Mas há uma coisa que eu gostaria ainda mais de ser.
-O quê?, perguntou ela.
-Papa da Igreja Católica.
-Porquê?, quis ela saber.
-Porque é a pessoa mais livre que existe no mundo.

a democracia mata a liberdade

Alexis de Tocqueville, provavelmente o maior estudioso da democracia, nunca se convenceu que a democracia fosse um regime político de aplicação universal e com os mesmos benefícios que ele observou na América.

Depois de muita hesitação e já quase no final da sua obra clássica, ele declarou que a viabilidade da democracia num país dependia críticamente da sua cultura (moeurs).

Alexandre Herculano, na minha opinião o mais ilustre liberal português dos tempos modernos, era um adversário da democracia, e não é difícil perceber porquê. A noção que Herculano possuía da liberdade não era, obviamente, a noção tirânica segundo a qual a liberdade é o direito de cada um a fazer aquilo que quer (apenas limitado pelo reconhecimento de igual direito a todos os outros).

Para Herculano, um homem livre é aquele que pensa, fala, decide e actua de acordo com a sua consciência, e independentemente da forma como pensam, falam, decidem e actuam os outros - todos os outros.. Daí as alusões recorrentes na obra de Herculano segundo as quais "a liberdade é o eu moral" ou "a liberdade é a verdade da consciência, como Deus". Esta é também a noção de Lord Acton, embora para além da coincidência de serem contemporâneos e ambos historiadores, não exista evidência de que alguma vez tivessem tido conhecimento um do outro e da suas respectivas obras.

Numa democracia parlamentar, as pessoas agrupam-se em partidos para conquistar o poder. Os políticos democratas são os primeiros a perder a liberdade e isso constitui um péssimo exemplo para toda a população. Porque, a partir de agora, eles têm de dizer e fazer, não aquilo que eles consideram que está certo, mas aquilo que presumem que os eleitores querem ouvir e querem que seja feito - se é que desejam captar votos e ser eleitos. Eles passam a estar sujeitos à tirania da opinião pública.

A um nível mais modesto, um membro de um qualquer partido em democracia perde também a sua liberdade. Entre aquilo que está certo e a linha oficial do partido é melhor que ele se submeta a esta última, caso contrário será expelido. Por isso, um homem livre não tem lugar na política partidária de um regime democrático. E qualquer homem livre que tente fazê-lo acabará inevitavelmente por ser rejeitado, a menos que aceite matar a sua liberdade.





tradições

Provavelmente, uma das características mais marcantes da tradição cultural portuguesa é o desprezo que os seus intelectuais nutrem por ela e pelas suas instituições seculares, e a prontidão com que se dispõem a importar qualquer ideia ou instituição estrangeira, mesmo que alheia à sua tradição.

Este traço do carácter nacional, que possui pelo menos três séculos, tem levado gerações sucessivas de portugueses a serem educados com uma espécie de complexo de inferioridade em relação ao estrangeiro. Em consequência desta atitude, a intelectualidade portuguesa ambiciona permanentemente pela modernização do país, mesmo se a modernização nunca significa mais do que legislar para imitar o passado dos países que ela considera avançados. A França, a Inglaterra e, mais recentemente, os EUA têm constituído os modelos por excelência ao longo dos últimos dois séculos. Noutros casos, o país é humilhado pelos estrangeiros na sua cultura e nas suas instituições, sem que a intelectualidade levante um braço em sua defesa, em parte porque ela própria acredita que as tradições e instituições seculares portuguesas não merecem consideração.

Aconteceu assim, recentemente, com o desaparecimento da pequena Madeleine McCann no Algarve. As críticas dirigidas pela imprensa britânica à forma como foi conduzida a investigação tiveram um impacto profundo na opinião pública britânica e internacional, e fizeram Portugal e os portugueses parecerem mal aos olhos do mundo, quando a realidade é que Portugal possui, na sua tradição, soluções para lidar com o rapto de crianças que são muito mais eficazes do que as soluções da Grã-Bretanha e dos demais países anglo-saxónicos. É por esta razão que o rapto de crianças, com o intuito de lhes fazer mal, é um crime muito raro em Portugal e bastante frequente na Grã-Bretanha.

Antes de prosseguir, eu gostaria de reportar a este respeito uma experiência pessoal. Na década de oitenta, vivi durante vários anos num país anglo-saxónico e, em certo momento, considerei ficar a viver lá para sempre. Porém, à medida que os anos foram passando, eu fui conhecendo melhor a cultura anglo-saxónica, e alguns aspectos dessa cultura acabaram por se revelar sob a forma de um choque. Um deles foi o rapto de crianças.


Em determinada altura eu e a minha mulher, que tínhamos então dois filhos pequenos, apercebemo-nos dos avisos nas rádios e nos jornais para os pais exercerem uma vigilância apertada sobre os seus filhos, sempre que saíam com eles. Várias crianças tinham vindo a desaparecer dos espaços recreativos destinados às crianças em supermercados e centros comerciais, enquanto os pais faziam as compras.

A partir daí, sempre que saíamos, enquanto a minha mulher fazia as compras, eu seguia atrás, um filho bem seguro em cada mão, e olhando frequentemente por cima do ombro. Certo dia, num centro comercial, um homem que - provavelmente, de forma acidental - seguia atrás de nós havia já alguns minutos, chegou a causar-nos pânico, levando-me a puxar bruscamente os meus filhos contra contra o meu corpo, e protegendo-os com as mãos, enquanto a minha mulher avançava contra mim, deixando as crianças ensanduichadas entre os dois.

Deixar as crianças irem brincar sozinhas para a rua ou para o jardim, sem serem acompanhadas, estava totalmente fora de questão. E, no entanto, eu e a minha mulher tínhamos sido educados em Portugal, no centro de Lisboa, e alguns dos melhores momentos da nossa criancice tinham sido passados a brincar com as outras crianças na rua, ou na praia, e só remotamente vigiados pelos nossos pais.

A insegurança que sentíamos em relação à protecção dos nossos filhos acabou por ser uma factor na nossa decisão de regressar definitivamente a Portugal. Em Portugal, os nossos filhos passaram a ir brincar para a rua com as outras crianças como sempre foi normal, e até iam sozinhos ao supermercado mais próximo fazer alguma compra que era necessária para a casa. Nunca mais nos passou pela cabeça que eles pudessem ser raptados, uma preocupação que era permanente enquanto vivíamos no referido país anglo-saxónico.

No caso da pequena Madeleine, a imprensa britânica focou dois aspectos. Primeiro, aquilo que ela considerou a relativa ineficiência da nossa polícia. Em segundo lugar, aquilo que ela considerou uma extraordinária manifestação de solidariedade e carinho da "local community". A imprensa britânica referia-se aqui a todas aquelas pessoas da Praia da Luz e arredores, homens e mulheres de todas as idades, que dias a fio choraram pelo desaparecimento da criança, ofereceram flores aos pais, mandaram rezar missas sem fim e que, do nascer ao pôr do sol, a procuraram por todos os recantos. Na Inglaterra, uma manifestação de solidariedade e empenho com esta dimensão e esta duração por parte da comunidade local seria de todo impensável.

Porém, é precisamente aqui, na acção desta comunidade local mobilizada para um crime que ela considera de todo inaceitável, que reside a superioridade da nossa tradição a lidar com raptos de crianças em relação à tradição britânica.

A imprensa britânica tem provavelmente razão quando afirma que a nossa polícia é menos eficiente que a polícia britânica. Afinal, todos os serviços públicos portugueses são provavelmente menos eficientes que os serviços públicos britânicos. Porém, também é provavelmente verdade que as "local communities" britânicas são menos eficientes a tratar de raptos de crianças do que as comunidades locais portuguesas.

Se, em Inglaterra, no decurso das suas buscas, a "local community" apanhasse o raptor, chamava logo a polícia, que provavelmente iria aparecer imediatamente de helicóptero e com agentes armados até aos dentes e coletes à prova de bala, levando o raptor algemado para a esquadra, lendo-lhe a carta de todos os direitos humanos que lhe cabia invocar na situação, e entregando-o depois em tribunal, o qual, no espaço de um ou dois meses, o condenava a uma pena de sete a dez anos de cadeia.

A comunidade local da Praia da Luz, aquele grupo de mulheres vestidas de negro e ar choroso, algumas permanentemente a rezar, mais os seus homens de barba por fazer e olhos inchados pelo cansaço, actuariam de maneira muito diferente se deitassem a mão ao raptor. Sabendo que a polícia portuguesa é comparativamente menos eficiente que a britânica, e os seus tribunais demoram anos a resolver qualquer assunto, a primeira preocupação da população local não seria entregar o raptor à justiça. Seria, pelo contrário, e muito provavelmente, dar-lhe uma sova de dimensões grandiosas, de tal modo que não é certo que ele saísse dali com vida.

É por isso que, em Portugal e nos países de tradição católica, os crimes de rapto de crianças são muito mais raros do que na Inglaterra e nos países de tradição protestante. Mesmo se as polícias e os tribunais são consideravelmente menos eficientes.

rui moreira

Rui Moreira, Presidente da Associação Comercial do Porto, destacou-se nas últimas semanas por duas intervenções sensatas e oportunas, uma sobre o novo aeroporto de Lisboa, e uma outra criticando o absurdo que é o futuro TGV não ter uma paragem prevista no Aeroporto Francisco Sá Carneiro. Ontem, no «Prós e Contras» foi a única voz a representar dignamente a cidade do Porto, perante um Rui Rio cada vez mais histriónico, a falar numa cidade que só existe na sua imaginação. Muitas destas coisas que diz o Presidente da Associação Comercial do Porto deviam ser ditas pelo PSD, enquanto maior partido da oposição, e que continua a ver passar os comboios, à espera da próxima derrota eleitoral em Lisboa e, daqui por dois anos, no país.

25 junho 2007

«prós e contras»: porto

Na 2ª parte do «Prós e Contras» de hoje, que versa sobre a «decadência» do Porto, vai falar um senhor da Galiza, o presidente da Xunta, para explicar as razões do desenvolvimento dessa região espanhola. Fica aqui uma profecia: as provincias autonómicas e a efectiva regionalização política e administrativa que esse país realizou na década de 80. Vamos a ver.

uma família liberal

Num post abaixo, eu citei o historiador inglês Lord Acton, contrastando duas concepções de liberdade e salientando que uma delas conduz à opressão, enquanto a outra é a única que impede que o interesse colectivo se sobreponha aos direitos individuais.

A citação completa é a seguinte: "A noção católica, definindo liberdade, não como o poder de cada um fazer aquilo que quer, mas como o direito de cada um fazer aquilo que deve ser feito, impede que o interesse colectivo se sobreponha aos direitos individuais".

Neste post, eu pretendo demonstrar esta tese. Faço-o, por simplicidade, no seio da mais elementar de todas as sociedades humanas - a família - afim de que o esforço de abstracção exigido seja menor e a clareza desejavelmente maior. Pretendo, em seguida, ir mais longe, para mostrar que a liberdade não existe sem autoridade.

Considero, em primeiro lugar, uma família com três filhos, pai e mãe. A concepção de liberdade prevalecente nesta família é a primeira mencionada por Lord Acton, segundo a qual cada um tem a faculdade de fazer aquilo que quer, uma faculdade só limitada pela faculdade que é igualmente reconhecida a todos os outros de fazerem aquilo que querem - a noção de liberdade às vezes traduzida na ideia de que a liberdade de cada um termina onde começa a do outro.

Quem já criou uma família, e sobretudo tratando-se de rapazes, sabe como é normal a tendência do irmão mais velho - o big brother - para bater nos mais novos, ou assediá-los de outra forma (v.g., tirando-lhes os brinquedos, metendo-lhes medo, etc.), e assim acontece nesta família. O irmão mais velho, seguindo a concepção de liberdade prevalecente na família, reconhece aos outros igual direito de lhe baterem a ele, mas quando o confronto se esboça, a sua superioridade física prevalece e, invariavelmente, é ele a submeter os irmãos mais novos.

O pai desta família possui a mesma concepção de liberdade e, por isso, não apenas permite a opressão do filho mais velho sobre os mais novos, como ele próprio, por vezes, agride a mulher, embora reconhecendo a ela igual direito de o agredir a ele. Porém, quando o confronto ocorre, é ele que prevalece, submetendo a mulher.

Nesta família não existe liberdade nenhuma - certamente que não para os dois filhos mais novos e para a sua mãe. Para já, só existe liberdade para o pai e para o filho mais velho, mas este último em breve vai aprender também aquilo a que conduz o seu conceito de liberdade. No dia em que ele se confrontar com o pai é a força física deste último que vai prevalecer e ele próprio será submetido. Esta família está agora completamente oprimida pela tirania do mais forte.

É certo que, nesta altura, pode entrar o legislador - fazendo leis que impeçam o marido de bater na mulher, o pai de bater nos filhos e o irmão mais velho de bater nos mais novos - e também o Estado com o seu poder de coerção para fazer respeitar essas leis. O ponto importante a notar, porém, é o de que estas leis só são necessárias porque esta sociedade (família) não é nada liberal e não seriam necessárias de todo, como procurarei demonstrar a seguir, se esta sociedade (família) fosse liberal.

Na verdade, a necessidade e a multiplicidade das leis numa sociedade é consequência directa - e está na proporção - da sua falta de liberdade. Não são as leis que fazem uma sociedade liberal. É uma sociedade iliberal que torna as leis e o Estado necessários.

Considero agora uma outra família, também com três filhos, mais pai e mãe. A única diferença em relação à família anterior é que nesta família prevalece a segunda concepção de liberdade mencionada por Lord Acton, a saber, a de que a liberdade é o direiro de cada um a fazer aquilo que deve ser feito.

Num dia em que o irmão mais velho bate nos mais novos, estes queixam-se ao pai, e este tem agora um problema para resolver: ou deixar que a situação permaneça ou impedir que o filho mais velho abuse os mais novos.

O economista liberal Friedrich Hayek diria que, para resolver esta questão, o pai se deve socorrer da tradição, do código moral que a sociedade foi evoluindo ao longo dos séculos. E o código moral da sociedade ocidental é, predominantemente, o código moral do cristianismo, o qual indica ao pai a solução, que é a de impedir que o filho mais velho e mais forte trate mal os irmãos mais novos e, por isso, mais fracos.

O pai assim faz. O filho mais velho é castigado e severamente avisado de que não serão tolerados mais abusos sobre os seus irmãos mais novos. Este pai tomou uma decisão de consciência, fez aquilo que deve ser feito de acordo com o código moral da sua civilização - daí a definição de Alexandre Herculano, citada em post abaixo, segundo a qual "a liberdade é a verdade da consciência, como Deus".

Não apenas este pai se comportou como um homem livre - fazendo aquilo que deve ser feito - como vai contribuir para que a sua família seja uma família de pessoas livres. Doravante, nenhum dos seus filhos abusará qualquer dos outros. Ele próprio dá o exemplo tratando bem os seus filhos e a sua mulher, e recebe reciprocidade da parte de todos eles. Esta é uma família de pessoas livres. Esta família, ao contrário da anterior, não precisa de leis para nada - leis que impeçam o pai de bater na mãe e o irmão mais velho de bater nos mais novos -, nem de Estado que faça cumprir essa leis.

Mas esta família só forma uma sociedade livre porque possui uma autoridade, protagonizada pelo pai (embora esta autoridade pudesse ser protagonizada pela mãe ou por ambos) a qual, em primeiro lugar, impediu o filho mais velho de maltratar os mais novos.

«compromisso portugal»: um equívoco

«O Compromisso Portugal não propõe um Estado mínimo, propõe antes um Estado forte e independente, garante da coesão e inclusão social e subsidiário, sempre que tal seja possível e desejável.
Um Estado que acredite nos cidadãos e na sua valorização, iniciativa e responsabilização e que deixe para a iniciativa privada todas as actividades que esta melhor possa desempenhar sem prejuízo da preservação do interesse público.
Além do acesso à educação, incluem-se nesses direitos o acesso à justiça, à saúde (onde se propõe a existência de um Serviço Nacional de Saúde com qualidade e bem estruturado), um ordenamento e qualidade ambiental adequados, etc....
A iniciativa privada deve dispor das condições necessárias para poder prestar os serviços públicos garantidos pelo Estado em áreas como a educação e a saúde, mas mantendo-se o Estado nestas áreas com uma forte presença, como prestador directo desses serviços, sempre preservando uma sã concorrência com os privados. (...)
O Compromisso Portugal defende, portanto, um Estado muito mais forte e independente do que o actual (inclusive, relativamente aos poderes económicos), com elevadas competências de regulação e fiscalização (...)»
«Revolucionários - Passado, presente e futuro do Liberalismo em Portugal»
, p. 133

«Estado forte», «com elevadas competências de regulação e fiscalização», «garante da coesão e da integração social», que perpetue o «Serviço Nacional de Saúde» (de «qualidade», claro está), que «deixe» algum espaço para a «iniciativa privada» em áreas como a «saúde» e a «educação», embora deva manter nelas uma «forte presença». Esta é, em síntese, a ideia que os empresários do «Compromisso Portugal» fazem do Liberalismo português, e como antevêem o seu futuro. Pouco animador, como se vê.
De facto, já o título anunciado do livro onde se podem ler estas e outras coisas, «Revolucionários - Passado, presente e futuro do Liberalismo em Portugal», fazia recear o pior. Do seu conteúdo ressaltam um conjunto de reformas de natureza social-democrata, no sentido de reformar o Estado para o tornar mais «eficaz» e «competente», garante do «interesse público», e concessionário de serviços que considera também como «públicos. São propostas tão legítimas como quaisquer outras. Liberais é que não são, certamente.

modelo político

"A Igreja como modelo político: Praticamente todos os elementos da ideia moderna de Liberdade estão prefigurados (na Igreja Católica): Representação, Igualdade, Tradição, Ausência de poder arbitrário, Auto-governo local, Dinheiro para os pobres, Humanidade das penas, Libertação dos escravos, Ausência de legislador, Julgamento pelos pares (e Autoridade)".
(Lord Acton, c. 1890, in J. Rufus Fears (ed.), Essays in Religion, Politics and Morality - Selected Writings of Lord Acton, vol. III, Indianapolis: Liberty Classics, 1988, p. 612)

do referendo

O instituto do referendo pressupõe, pelo menos, que as pessoas entendam o que se lhes está a perguntar, no mínimo, que sejam sensíveis ao assunto em causa e que tenham sobre ele um forte sentimento compreensivo.
Por essa razão é que se devem evitar referendos sobre questões eminentemente técnicas, ao passo que perguntar às pessoas se são favoráveis ou desfavoráveis à ilicitude do aborto, à regionalização do país, ou à presença deste em organizações internacionais, como a União Europeia, faz sentido. Tratam-se, todos eles, de assuntos que, ainda que não prescindam de importantes pormenores técnicos e científicos, atingem a vida quotidiana dos cidadãos, não lhes sendo difícil, por conseguinte, exprimir a seu respeito uma opinião favorável ou desfavorável.
Daí que não se compreende o empenho do PSD e de Marques Mendes em forçar a realização de um referendo sobre o futuro tratado comunitário, ao que parece agora circunscrito a um mero tratado de revisão dos existentes, ao invés do que sucederia com o Tratado Constitucional, cuja carga simbólica certamente careceria de legitimidade referendária. Como, de resto, não faria muito sentido ter referendado o Tratado de Nice, nem mesmo o de Amesterdão. Já, por exemplo, referendar a permanência de Portugal na União Europeia e no Euro pode fazer sentido, sobretudo para quem está tão preocupado com o futuro tratado. Ou seja: não é razoável dizer-se que devem colocar-se ao arbítrio popular as regras procedimentais da União Europeia – as votações, os procedimentos legislativos, as maiorias, etc., e esquecer o essencial, isto é, a própria integração comunitária de Portugal. Não é sério, e só pode servir interesses de baixa política interna.

Conversão

Existe a presunção de que, quando esta semana abandonar a chefia do governo britânico, o primeiro-ministro Tony Blair irá anunciar a sua conversão ao catolicismo.

A mulher de Blair é católica e os quatro filhos do casal são educados segundo a tradição católica. Blair é anglicano.

Para além do factor familiar, eu gostaria de especular sobre uma outra razão - esta de carácter político - que, a confirmar-se a presunção, levará Blair para os braços da Igreja Católica.

Como político, a partir do 11 de Setembro e mais tarde na sua própria Grã-Bretanha, Blair viveu aquilo que tem sido por vezes chamado de "ameaça muçulmana", ou o risco de uma "guerra de civilizações", a qual seria uma guerra predominantemente entre cristãos e muçulmanos, e não seria a primeira da história.

Foi o Presidente George Bush que a partir de 2001 tentou liderar uma coligação de nações cristãs perante a alegada "ameaça muçulmana", e Tony Blair foi o seu primeiro aliado. Porém, George Bush nunca foi uma figura inspiradora da unidade das nações cristãs - e dificilmente qualquer outra figura política o seria - e a coligação resultou num fracasso.

É bem provável que Blair tenha chegado à conclusão de que, no caso de um conflito de civilizações, a única figura capaz de unir e liderar o mundo cristão é o Papa da Igreja Católica - e que a sua presumível conversão ao catolicismo não seja estranha a esta conclusão.

23 junho 2007

antes da eutanásia: ainda o aborto e a liberdade


por Pedro Arroja

O Rui pediu-me que escrevesse sobre a eutanásia na perspectiva do liberalismo. A eutanásia é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida na fase final da vida humana. Senti necessidade de recuar primeiro, voltando ao outro extremo do espectro da vida humana e ao tema do aborto, que é uma decisão de terceiros de pôr termo a uma vida, mas agora na fase inicial da vida humana.

«A liberdade é a verdade da consciência, como Deus», escreveu Alexandre Herculano - na minha opinião o mais distinto liberal português da modernidade. Pela mesma altura, no Reino Unido, Lord Acton escrevia no mesmo sentido: «A noção católica, definindo liberdade, não como o poder de cada um fazer aquilo que quer, mas como o direito de cada um fazer aquilo que deve ser feito, impede que o interesse colectivo se sobreponha aos direitos individuais».

Mais recentemente, seguindo esta linha de argumentação num «post» que escrevi no Blasfémias, eu defini uma sociedade liberal como aquela em que todos cumprem as suas obrigações para com os outros. Na realidade, esta sociedade não necessita de coerção. Ela dispensa inteiramente as leis penais e certamente a maior parte das leis civis. Uma sociedade assim é a mais livre de todas as sociedades. Em particular, ela não necessita de leis nem sobre o aborto nem sobre a eutanásia.

Ela não necessita de leis sobre o aborto porque todas as mulheres grávidas cumprem as suas obrigações para com os seus filhos – ainda que eles se encontrem ainda no seu útero – que é a obrigação de lhes dar vida e os educar. Nesta sociedade, vão existir abortos – por exemplo, quando o nascimento do filho ponha em perigo a vida da mãe. Terá de ser a mãe, então, a decidir, em consciência, o que fazer, eventualmente assistida pela sua família e pelo seu médico. Qualquer que seja a sua decisão – abortar ou não abortar, pondo em risco a sua própria vida – ela toma-a livre de coerção e é uma mulher livre.

A lei que possuíamos sobre o aborto era, neste sentido, uma lei profundamente liberal. Proibindo o aborto, como princípio, ela apenas se limitava a confirmar e a dar cobertura ao princípio liberal segundo o qual seria de esperar que todas as mães cumprissem as suas obrigações para com os seus filhos, dando-lhes vida. E abrindo excepções, ela dava também cobertura àquelas mães que, em consciência, decidissem abortar porque o nascimento dos seus filhos punha em risco as suas próprias vidas.

Porém, a sociedade ocidental, ao longo das últimas décadas tem-se tornado cada vez menos liberal – e a sociedade portuguesa tem-no feito a um ritmo acelerado nos últimos dez anos. Muitas mulheres grávidas deixaram de cumprir a sua obrigação para com os seus filhos, que é a de lhes dar vida. E, por isso, foi necessário modificar a lei, passando de uma lei que era liberal para uma outra que é opressiva.

A legislação que progressivamente vai emergindo do resultado do referendo sobre o IVG realizado recentemente em Portugal é uma lei opressiva para todos os seres humanos que existem no ventre materno com menos de dez semanas de idade. Coloca todos sobre ameaça discricionária de morte, e alguns vão morrer sem que os autores da morte sejam punidos.

Curiosamente, os defensores do Sim no referendo foram aqueles que mais frequentemente reclamaram o título de liberais. Porém, a noção de liberdade que eles invocavam, era uma noção muito diferente daquela que possuíam Herculano e Lord Acton. A liberdade era agora o direito de cada um a fazer aquilo que quer (e, em particular, o direito da mulher a dispor do seu corpo) – e um direito só limitado por igual direito que é reconhecido aos outros.

Esta concepção de liberdade conduz à opressão (no caso do aborto, à opressão sobre todos os seres humanos com menos de dez semanas de gestação). Na realidade, quando a esfera de liberdade, assim definida, e pertencente a uma pessoa intersecta a esfera de liberdade pertencente a outra pessoa, o conflito emerge: qual das duas esferas de liberdade vai prevalecer?. A resposta é a do mais forte, conduzindo à opressão do mais fraco. Esta sociedade deixou de ser liberal – certamente que deixou de ser liberal para os mais fracos. E, ainda que, quando o conflito ameace resultar em violência, a lei seja chamada a intervir para o regular, a intervenção da lei só pode ser no sentido de restringir as esferas de liberdade de ambas as partes afim de prevenir o conflito - em qualquer caso tornando a sociedade menos liberal.

As novas leis do aborto que agora emergem do referendo não significam que a sociedade portuguesa se esteja a tornar mais liberal. Significam exactamente o contrário. Elas, na realidade, só se tornaram necessárias porque a sociedade se tornou menos liberal, como qualquer ser humano que consiga escapar à ameaça legal de morte que sobre si passou a pairar até às dez semanas provavelmente reconhecerá, e como certamente reconheceriam todos aqueles que não conseguiram escapar a tal ameaça – caso estivessem cá para pronunciar julgamento sobre o assunto.

22 junho 2007

«a relevância social» da eutanásia

Afinal, caro Tiago, parece que ambos nos enganámos, e que, afinal, a eutanásia tem, em Portugal, uma relevância social que não suspeitávamos. À atenção, redobrada, dos nossos liberais e da nossa direita, portanto. E vamos lá ver o que aí vem.

eutanásia, liberalismo e moral

Tornar legal um comportamento, ou um acto, representará sempre, pelo menos, um estímulo indirecto à sua prática. Isto é tanto verdade para a eutanásia, como salienta correctamente o Tiago Mendes, como o é para o aborto, para o consumo de drogas, de álcool, de tabaco, ou de outras substância nocivas à saúde das pessoas.
Mas, também, não deixa de ser verdadeiro que, em todos estes comportamentos, o que está verdadeiramente em causa é a pessoa do agente que os pratica, pelo menos na primeira linha dos interesses e dos direitos lesados. Por isso, aparentemente, o Tiago tem razão quando diz que, no plano teórico, um liberal não pode ter a veleidade de «querer proibir a eutanásia alheia». Na verdade, obedecendo ao velho adágio liberal de que a liberdade individual deve cessar se, e só se, colidir com a liberdade dos outros, aparentemente, repito, parece que, neste caso, isso não se verifica.
Sucede, todavia, que o liberalismo é uma filosofia, que inevitavelmente comporta uma dimensão moral da existência humana. Para a maior parte dos autores liberais, realçando Hayek e Mises, as normas da moral são as que representam os princípios e valores mais adequados à vida humana, individual e socialmente considerada, e que vão sendo apurados pela interacção dos indivíduos em sociedade, e transmitidas pela tradição. Consistem, por isso, nos melhores procedimentos comportamentais, que acabam por transformar-se em «regras de justa conduta», quase inquestionáveis, em verdadeiros valores morais. Quando os liberais defendem intransigentemente a propriedade, a segurança e a liberdade, fazem-no porque eles são valores que têm uma dimensão metajurídica, pertencem ao elenco dos direitos naturais dos homens, e possuem, por isso, uma dimensão moral inquestionável.
Ora, nesta perspectiva da moral individual e social, a vida é o primeiro de todos os valores: ela precede todos os outros direitos, que só se justificam, na sua maioria, enquanto ela se mantém. Acresce ainda, e por outro lado, que o instinto de conservação, de conservação da vida, claro está, é inato a muitas espécies animais, entre elas a humana. É por esta razão que a vontade de morrer, de pôr voluntariamente termo à vida, não é natural, porque colide com o mais elementar instinto da nossa espécie. Por isso, repugna mais, na defesa de valores, o suicídio do que o homicídio, já que o resultado deste é diferente da vontade da vítima, que não deseja morrer, enquanto que no primeiro é a própria vontade de anulação do mais elementar instinto da espécie que está em causa.
É claro que a eutanásia não é o mesmo que suicídio. O desejo de pôr fim à vida deve-se, no primeiro caso, a circunstâncias externas à vontade do próprio, que a tornaram insuportável. Por essa razão, é que a eutanásia não tem resposta fácil: ela resulta do sofrimento humanamente insuportável que leva ao desejo de lhe pôr termo, e não exactamente da vontade de morrer. Deverá a lei proibi-la, aceitá-la, ou esquecê-la, eis a questão. Para a qual, julgo, os liberais não terão uma resposta unívoca: ela poderá variar, pelo menos, conforme se privilegie a liberdade individual ou a moral. Como vimos, nem uma nem outra lhes são estranhas ou indiferentes.

21 junho 2007

pedro arroja

Escreverá, nos próximos dias, no Portugal Contemporâneo, um «post» em torno do problema da eutanásia. Um tema importante para o liberalismo, como aqui temos vindo a dizer.

os limites da liberdade

Excluindo a vontade presumida de quem já a não consegue declarar, ou a vontade declarada com muito tempo de antecedência e sem possibilidade de confirmação, não vejo com facilidade, caro Carlos, que um liberal, defensor do direito de propriedade como direito absoluto e o direito ao corpo como o primeiro de todos (Rothbard), possa defender a proibição legal da eutanásia.
A não ser que se distinga o direito à vida do direito à propriedade do corpo, terminando este quando puser aquele em causa. Só que isto abre-nos um campo quase ilimitado de possibilidades, que podem ir até proibicionismo mais absurdo da utilização de quaisquer substâncias nocivas à saúde, como o tabaco e o álcool, para já não falar nas drogas.
Por outro lado, não deixa de ser razoável, do ponto de vista liberal, a condenação jurídico-penal da eutanásia por razões de convicção religiosa. Se um liberal entender que a vida tem origem transcendente, então, a possibilidade de a fazer terminar por um acto humano voluntário e intencional não pode ser equacionada. Aí, todavia, há que ser coerente e reconhecer a anterioridade de Deus sobre os homens (o que é pressuposto num crente), bem como condenar todos os tipos de guerra, a pena de morte, etc. E, também, admitir limitações à liberdade individual em nome de alguns ditames religiosos.
Por último, as razões de ordem moral. Se a entendermos, à moral, como o conjunto de regras de justa conduta (Hayek), que vão sendo geradas pela interacção social e apuradas pelo tempo, a morte voluntária e consentida de um ser humano, mesmo em casos extremos, não será nunca um acto moral. Ainda que se discuta se é moralmente mais degradante ver um ser humano sofrer no limite do que é humanamente possível, ou permitir que decida terminar a sua vida com alguma dignidade. Porém, mesmo aqui é necessário decidir se a lei deve reflectir as convicções morais da sociedade, e se deve transpô-las para juízos normativo-criminais. Por outras palavras, se a moral deve limitar o direito de propriedade.
Por mim, que continuo sem ter posição assente, continuo a pensar que o tema é difícil de tratar com os quadros habituais do liberalismo clássico. Uma coisa, porém, parece-me evidente: não é assunto que deva referendar-se, até porque, pelo menos por enquanto, não tem a relevância social que o justifique, ao contrário do que sucedeu com o aborto.

20 junho 2007

eutanásia: um desafio aos liberais

Como era mais do que previsível desde a realização do referendo do aborto (embora as coisas não tenham qualquer relação entre si), o debate sobre a eutanásia entrou na ordem do dia e veio para ficar. Dele têm feito eco todos os meios de comunicação social e, agora, trata-se de saber, como no aborto, se o seu regime legal pode e deve ser revisto, e se sobre o assunto se fará, ou não, um referendo.
Não querendo, por ora, tomar posição sobre o assunto, sempre adiantaria que me parece que os liberais devem começar a pensar nele. Se aceitarmos, como muitos liberais aceitam, o direito ao próprio corpo enquanto um, e o primeiro, direito de propriedade, parece que não restam dúvidas sobre o que deverá ser uma atitude liberal nesta matéria. Aqui não se coloca a questão, como no aborto, de saber se falamos num segundo corpo e numa segunda pessoa. A discussão poderá, quando muito, centrar-se em questões de ordem religiosa, nomeadamente sobre a origem da vida e o direito de lhe pôr termo. O que obrigará cada um a assumir as suas convicções religiosas e a trazê-las, ou não, para este debate.
Parece-me, por isso, que as consequências do debate sobre a eutanásia serão, para os nossos liberais (e já não falo da direita), ainda mais devastadoras que o foram no caso do aborto.

meu deus!, assim o estado vale a pena

19 junho 2007

lapsus linguae

O que o ministro Mário Lino disse sobre a margem sul, não foi «jamais, jamais», como por aí maldosamente se disse, mas sim «j'aime, j'aime». Como, de resto, as suas mais recentes declarações não deixam dúvidas.

a crise da união

Com a queda do muro de Berlim, a então Comunidade Económica Europeia tomou a decisão histórica de se abrir a todos os países da Europa, desde que eles obedecessem aos seus princípios constitucionais da democracia e do mercado livre.
Na sequência dessa nova estratégia, orientada para transformar um restrito clube de países desenvolvidos, ou em vias de o serem, numa estrutura ampliada e eminentemente política, os, então, doze Estados-membros prepararam e aprovaram, em 1992, o Tratado de Maastricht, que entraria em vigor no ano seguinte, não já sem algumas dificuldades no processo de ratificação.
Estava, assim, definitivamente criada a Europa política, consubstanciada na nova designação «União Europeia», cujas aspirações iam muito para além da criação de um espaço económico integrado. As dificuldades, se até aí já se sentiam, passaram a ser muito maiores.
Desde logo, porque a dimensão política da nova União excluía, por vocação e princípio, a hipótese de não serem aceites os Estados europeus que pedissem a adesão, desde que reunissem as condições políticas consideradas necessárias pelos Tratados: democracia e mercado livre. Até porque, não seria moralmente confortável a União deixar à sua porta os antigos Estados do bloco de leste, a quem acenara com a prosperidade das democracias ocidentais durante décadas.
Assim, em quinze anos, a União Europeia passou de doze para vinte e sete Estados-membros. As reformas institucionais, necessárias para criar governabilidade, isto é, para permitir que as instituições comunitárias decidissem num contexto de alargamento, nunca foram feitas. Nem no Tratado de Amesterdão, nem do de Nice. O Tratado Constitucional adiantava algumas modificações, que foram consideradas muito arrojadas. Na verdade, ao misturar a dimensão político-constitucional, com a orgânico-instrumental (para os liberais, note-se, devem ser uma e a mesma coisa…), a Convenção matou qualquer hipótese de reforma institucional. Que será, doravante, muito mais difícil de fazer, já que os Estados-membros estarão mais atentos, e vão fazer sentir mais os seus interesses na fase negocial, do que sucedia no passado. À vista de todos temos o caso actual da Polónia.
A União Europeia alargou, como teria de alargar, mas fê-lo antes de preparar as suas instituições para decidirem nesse quadro. Arrisca-se a estagnar e a desaparecer por causa disso.

fome e fartura


Para Ana Teresa Vicente, presidente da Câmara de Palmela, o novo aeroporto de Lisboa deve ser construído em Poceirão ou na Faia.
Rui Moreira, presidente da Associação Comercial do Porto, propõe a solução Portela+1, estando a preparar um estudo técnico sobre essa possibilidade.
A CIP reuniu juntou umas massas, mandou estudar o problema, e concluíu que em Alcochete é que é.
O Governo, pela voz autorizada do ministro Mário Lino, assegura que vai analisar a proposta da CIP, poucos dias depois de a ter considerado impensável, e, até, outras que entretanto apareçam. O Dr. Santana Lopes rejubilou de satisfação com tanta sensatez governativa.
Esta é uma das coisas boas que nos caracteriza: somos incapazes de nos entendermos sobre o essencial. O que garante níveis baixos de rentabilidade, mas elevadíssimos de diversão.

«o primeiro império não imperial»

Foi a melhor definição da União Europeia que o Presidende da sua Comissão conseguiu. Parabéns.

obsessões

Para o Presidente da Comissão Europeia as preocupações da União com a «economia de mercado» não são «obsessões neoliberais», mas sim formas de protecção dos países-membros em relação às outras grandes economias mundiais, como os EUA. Ainda bem.

18 junho 2007

contabilidade

O Dr. Carvalhas contou-cento-e não-sei-quantas-vezes a palavra «economia de mercado» no Tratado Constitucional, e só duas vezes uma outra coisa qualquer. O Dr. Carvalhas não é um economista. É um contabilista.

samuelson

Foi quem lançou, nos anos 80 e 90, o liberalismo económico nos EUA. Nos Prós e Contras está-se sempre a aprender.

onde é que está o psd?

Curiosamente, não há ninguém da direcção actual do PSD na assistência do Prós e Contras. Em contrapartida, o anterior governo, com excepção de Santana Lopes e do CDS, está lá todo. Até Ângelo Correia, que não simpatizava especialmente com o actual Presidente da Comissão, disse presente. É estranho que Marques Mendes, ou algum emissário seu, não tenha aparecido. Mais estranho ainda é que, para além do dito Marques Mendes, não me consiga recordar de mais ninguém da dita direcção do partido social democrata. Deve ser da idade.

de regresso à pátria

Parece estar José Manuel Durão Barroso: discurso para dentro do país, sobre as virtudes da integração europeia em Portugal.

o que faz falta é regular a malta

1ª conclusão do debate sobre a União Europeia no Prós e Contras.

o estado do estado

O Ricardo Alves meteu na gaveta as picardias habituais, que dão animação à discussão mas, reconheço, retiram-lhe alguma seriedade, e levantou questões interessantes, em torno das quais a conversa pode evoluir favoravelmente. Vou tentar responder-lhe, transmitindo-lhe a minha opinião, dentro daquilo que considero ser a tradição liberal.

Sobre o Estado, Ricardo Alves pede-me que me pronuncie sobre aquele que foi, na minha opinião, o seu momento fundador, em que se dá o contrato social que permite a passagem do estado de natureza para a sociedade política. Sintomaticamente, avança com três hipóteses, correspondendo cada uma delas a uma das marcas da soberania enunciadas, no século XVI, por Jean Bodin: a justiça, a paz e a guerra, e a tributação.
Admito que, ainda hoje, essas são as principais marcas da soberania do Estado. E, por isso, se percorrêssemos a sua genealogia, provavelmente encontraríamos o momento fundador do Estado. Não de qualquer tipo de Estado, note-se, mas do Estado Moderno, precisamente daquele modelo que tem em Bodin o seu primeiro grande teorizador.
Só que, julgo que ao inverso do que defende o Ricardo Alves, eu não identifico o Estado com o seu modelo de Estado Moderno e Contemporâneo, que é o que resulta da centralização europeia pós-medieval, tecnicamente apurado a partir da Revolução Francesa. De resto, eu não acredito no «estado de natureza» e creio que ele não foi mais do que uma alegoria criada pelos contratualistas modernos para encontrarem um «fundamento» que permitisse sugerir limitações ao seu poder sem ofender excessivamente os soberanos. Nessa medida, eu sou mais estatista que o Ricardo Alves, porque acho que a organização política da sociedade, isto é, a criação de instituições representativas dos cidadãos, é muito anterior à modernidade, melhor dizendo, é de sempre. Por isso, eu não tenho qualquer repugnância em chamar «Estado» a uma certa forma de organização política medieval (onde os defensores do modelo contemporâneo defendem a inexistência de Estado), como nos períodos anteriores da História. Nessa medida, também, considero-me aristotélico, porque acho que a polis é a condição natural da sociedade humana, e que os homens só são capazes de viver em sociedade, logo, na sociedade política.

Coisa substancialmente distinta é saber o que querem os homens do Estado, isto é, das suas instituições representativas. Aqui é que volta a ser muito importante a alegoria do «estado de natureza» e as extrapolações que os contratualistas retiraram do facto, para alguns deles histórico, da criação contratual do Estado e da redução, por essa via, da liberdade individual. É a partir daqui que começa o liberalismo e, por consequência, que me assumo como reduzidamente estatista, enquanto o Ricardo Alves prefere a soberania do Estado à soberania individual. Porque, no momento da determinação das funções e das competências do Estado, podemos optar pela tradição liberal, neste aspecto, em minha opinião, definitivamente enunciada por Locke, ou por uma tradição estatizante, de que vejo em Hobbes o moderno fundador. Seja como for, para a tradição liberal os fins do Estado, as suas funções soberanas, devem cingir-se à garantia dos direitos individuais dos cidadãos: segurança, propriedade e liberdade. Estes valores não são, ao contrário do que Ricardo Alves possa presumir, princípios de classe, nomeadamente da burguesia emergente da Revolução Industrial. Tratam-se, a meu ver, de regras da ordem moral, esta entendida como o conjunto de normas societárias que melhor se adequam ao indivíduo em contacto com os outros, isto é, à vida em sociedade. A segurança e a propriedade são as duas traves mestras da liberdade individual, e, em conjunto, são a condição necessária (mas não suficiente) para que os homens possam almejar a felicidade. Se reparar, referi serem condições necessárias, mas insuficientes, o que quer dizer que se não bastam a si mesmas: carecem de garantia e, por isso, como Locke explicou, é que se criaram as instituições representativas.

Dentre essas instituições, os liberais privilegiam, naturalmente, os tribunais e a justiça, aqui se incluindo todo o processo de criação normativa, desde a concepção das regras de direito, até à sua aplicação. Sem dúvida que, aqui, é necessário que exista uma força, se possível legitimada pela comunidade, que imponha o acatamento das regras societárias, quando a sua violação ocorrer. Mas, repare, uma coisa é dizer-se «impor o acatamento das regras», outra bem diferente é dizer «impor as regras», no sentido da sua criação. Porque, para os liberais, e aqui entramos noutro domínio da conversa, as regras de direito devem emanar espontaneamente da sociedade e não serem criadas «ex novo» pelo legislador. Este último cenário, muito comum, reconheço, na tradição jurídica europeia continental, é próprio do estatismo e do centralismo, e foi o seu mais poderoso instrumento, que levou ao absolutismo régio do passado, ao despotismo esclarecido, ao Terror das soberanias populares, e, infelizmente, ao desembargado intervencionismo dos nossos dias. Só que e para evitarmos que a conversa redunde em abstracções absurdas, eu diria que a concorrência de fontes normativas e a autonomia judicial face ao Estado, não é coisa da imaginação, mas muito real: nos sistemas anglo-saxónicos, por exemplo, em sistemas jurídicos africanos onde se respeita o direito local, na generalidade dos países europeus continentais até ao século XVIII, e, em minha opinião, na União Europeia, onde concorrem fontes normativas de diversa proveniência (legal, jurisprudencial e consuetudinária, por exemplo).

Não é, por conseguinte, uma ficção entender-se que o Estado em que vivemos possa ser reformado no sentido de admitir outro direito que não seja somente o que cria por via legislativa. Ou que não admita a existência de tribunais com origem e legitimidade popular e local. Este direito de proveniência não-estatal, mormente o direito consuetudinário e jurisprudencial, representa, para o liberalismo, o princípio do direito natural, entendido este como o conjunto das normas da vida humana e social, resultantes da própria dimensão moral e ética da natureza humana, bem como da ordenação social espontânea, que o direito positivo não poderá deixar de respeitar. E que, sensu lato, se enquadram, no fim de contas, nos três valores caros ao liberalismo que acima referimos: segurança, propriedade, liberdade individual. Se se reparar bem, muito do direito privado – desde os contratos, à família, às sucessões, já para não falar na propriedade, ainda que muito adulterados por sucessivas intervenções estatais, encontram os seus princípios nesta «ordem social espontânea». Isto é: o direito privado, por definição, consagra as soluções socialmente encontradas pelos indivíduos, para as muitas questões que se suscitam em cada um daqueles institutos.

Saber se o Estado está ou não disposto a aceitar estes parâmetros de actuação, é já um outro problema. Do ponto de vista do liberalismo, certamente que não está. Foi por essa razão que, nos séculos XVIII e XIX, os movimentos liberais foram exclusivamente constitucionais. Porque, a simples ordenação orgânica e funcional da soberania era, em contraponto ao Ancien Régime, um ganho de liberdade e um princípio de defesa dos direitos individuais. E é por essa mesma razão que volta a ser muito importante, nos nossos dias, debater a natureza do Estado, as suas funções e os seus limites.

a vidraça quebrada


A Lei 19/2003, de 20 de Junho, aprovada na Assembleia da República sob a égide da maioria parlamentar do PSD/CDS, ainda na liderança de José Manuel Durão Barroso, estabelece o regime jurídico do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, e, diga-se, é de um absurdo completo.
A lei estabelece um regime misto de financiamento, privilegiando as subvenções públicas aos subsídios e patrocínios privados. Quanto a estes últimos, estabelece limitações inconcebíveis e irrealistas, tais como a proibição dos donativos de pessoas colectivas nacionais ou estrangeiras (artigo 8º, nº 1). O objectivo é evidente: evitar que os partidos políticos colectem dinheiros de entidades, nomeadamente de empresas, a quem fiquem a dever eventuais favores a compensar num futuro governo ou câmara municipal.
A intenção do legislador é compreensível e não pode dizer-se que fosse má. Mas os resultados estão à vista e são péssimos. Porque, nestas coisas do intervencionismo estatal, como lembrava Fredéric Bastiat na sua célebre alegoria da vidraça quebrada, existem sempre dois tipos de efeitos: os que se vêem e os que não se vêem no momento em que é tomada a decisão. A intenção do decisor político é uma, o que resulta da sua decisão é frequentemente coisa muito diferente.
Neste caso, ninguém de bom senso acredita que as campanhas eleitorais dos grandes partidos políticos para as eleições legislativas e autárquicas custam o que eles declaram e que são sustentadas dentro dos limites que a lei prevê. O que, imaginando-se quanto elas custam realmente e desconhecendo-se a verdadeira origem dos financiamentos, origina as piores suspeições e desconfianças. Ou seja, a Lei nº 19/2003 nada tem a ver com a realidade. E, quanto a esta, desconhece-se onde começa e acaba: ninguém sabe ao certo que ligações e dependências existem entre os nossos partidos e os grupos económicos e empresariais.
Uma lei que liberalizasse, de facto, esta matéria, permitiria uma melhor identificação dos interesses em jogo no exercício dos poderes soberanos, evitaria suspeições abusivas, como poderia explicar melhor algumas decisões tomadas que, ainda que fossem impulsionadas por lobbys, não teriam que ser consideradas ilegítimas. Assim, ninguém sabe.

16 junho 2007

os limites da estupidez


Jacinto e o Conde a debaterem a constituição da nova ala
Paulo Portas queixa-se que a campanha em curso contra o seu partido, a propósito dos recibos de uma campanha eleitoral, está a pôr em causa o bom-nome de alguns dos seus dirigentes. Tem razão. A comunicação social não poupa nada nem ninguém e o direito ao bom-nome, que, de resto, a nossa Constituição consagra e protege, deveria ser mais eficazmente fiscalizado pelas instituições judiciais.
Só lamento que Portas se tenha esquecido de citar o grande lesado com toda esta exposição mediática, o cidadão Jacinto Leite Capelo Rego, um impoluto democrata-cristão dos quatro costados, que abnegadamente contribuiu para o seu partido de sempre, passou recibo e tudo, e vê agora o seu honrado nome a escorrer lamaçal. A quem, ainda por cima, o próprio secretário-geral do partido parece estar a virar as costas neste momento difícil, dizendo que não o conhece!
Eu avivo a memória do jovem secretário-geral: o Jacinto Leite Capelo Rego é um velho militante do partido, daqueles que estão nos cadernos eleitorais desde sempre, e foi recentemente fundador da ala monárquica, gigantesca tarefa a que se associou com o célebre Conde de Montanelas. Conheci-os aos dois ainda nos tempos do liceu, muito novos, portanto, e posso testemunhar que foram sempre militantes devotos e democratas-cristãos convictos. Nunca percebi porquê, a canalha desse tempo metia-se muito com eles e ria-se dos nomes honrados que ostentam. Coisas da política, certamente.

Agora a sério: ninguém neste país acredita que as campanhas dos partidos políticos sejam pagas por militantes. Elas são, obviamente, suportadas por grandes empresas e interesses financeiros, que contam com os favores dos partidos que patrocinam quando chegarem ao governo. É assim em Portugal, como no resto do mundo, e não nos vem daí muito mal. Era boa altura da nossa lei o reconhecer, em vez de contribuir para este lamentável e cíclico espectáculo.

em nome do estado


Entristece-me que o Ricardo Alves viva na ilusão: os tribunais são anteriores ao Estado e colidiram (colidem) muito frequentemente com ele no exercício da sua missão. A esse mesmo Estado sem o qual Ricardo Alves acha que eles «servem para muito pouco ou mesmo para nada». Também ai está mal: por mim, a força dos tribunais está no povo e no direito, em nome de quem administram a justiça; para Ricardo Alves estará, essa força e a sua legitimidade, no Estado burocrático e nas suas polícias. O positivismo socialista (de todos os socialismos) é sempre assim: «tudo pelo Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado». Nada de novo, portanto.

15 junho 2007

simplificar

O Tratado Constitucional Europeu continua a alvoroçar as boas consciências, sobretudo as defensoras da Europa dos Estados e das soberanias. É, também, bem verdade que Valéry Giscard d’Estaing não dá uma grande ajuda, como se pode ver pelo que vai escrevendo no seu blog (via Fernanda Valente, do Da Política). Para simplificar verdadeiramente as coisas, eu sugeria o seguinte procedimento:
- Que se esquecesse o Tratado Constitucional, rasgando e dividindo o seu conteúdo nas suas três primeiras partes: a Parte I (do artigo I-1º ao I-60º); a Parte II (do artigo II-61º ao II-114º) e, por fim, a Parte III (do artigo III-115º ao III-416º);
- Em seguida, que se deixasse cair o malfadado Ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, mantendo, um pouco a contragosto, admito, o Sr. Solana em funções. O «Presidente da União» também pode ir à vida;
- Depois, que se fizessem as necessárias alterações ao funcionamento institucional da União (maiorias qualificadas, designação e eleição dos membros das instituições, procedimentos legislativos, etc.), habituais em todas as revisões dos tratados comunitários (é, por causa delas, que eles costumam ser revistos…), na Parte I do Tratado;
- Por fim, e esta dou-a de barato aos tão preocupados soberanistas, que se conservem a todo o custo os artigos da Parte I relativos à divisão de competências entre a União e os Estados-Membros (Título III), assim como o artigo sobre o direito de secessão (artigo I-60º).
Tudo isto feito, sugeria ainda mais um pequeno trabalho: que se comparasse a Parte I ao Tratado da União Europeia (em vigor), a Parte II à Declaração dos Direitos Fundamentais dos Cidadãos da União Europeia (ninguém sabe bem se em vigor ou não…), e a Parte III ao Tratado da Comunidade Europeia (em vigor). Depois, contem as diferenças e digam-me alguma coisa.

da natureza humana

Ricardo Alves considera que, para além da «obtenção de alimentos e o seu consumo, não existem comportamentos mais naturais no homem do que a violação sexual e o assassinato de rivais». Donde, conclui, não nos resta senão «o controlo, pessoal ou social, dos nossos» (sic) «piores instintos». Isto é, o Estado.
Confesso a minha incapacidade para argumentar contra isto. Razão pela qual me limito a lembrar a Ricardo Alves que foi exactamente para precaver e punir este (e outro) tipo de comportamentos desviantes (desviantes, note bem), que os homens criaram os tribunais. E por aqui me fico.

14 junho 2007

lorenz vs. pavlov


Corrosivo e cientificamente implacável, como convém a um positivista esclarecido, conhecedor da inexistência de Deus e da indivisibilidade do átomo, Ricardo Alves incomodou-se com os meus «post» mais recentes sobre a propriedade como direito natural, e invectivou-me a explicar ««com exactidão», em que parte do córtex cerebral está o instinto/desejo de propriedade privada...». O desafio não podia ser mais aliciante e, tivesse eu as qualidades do António Damásio, aventurar-me-ia a seguir essa fascinate pista de investigação. Como as não tenho, não me resta senão tentar algumas sofríveis aproximações ao tema.

A contrario sensu, diria então que os regimes comunistas do século XX, que o Ricardo Alves certamente muito terá apreciado, implodiram porque negaram a propriedade privada aos cidadãos, formatando artificialmente a vida social em torno da ideia contranatura do colectivismo. Negaram-lhes, como é conhecido, a propriedade dos seus bens, dos seus serviços e dos frutos do seu trabalho. As sociedades comunistas geraram, também, reduzidas elites político-militares com acesso à propriedade (os «gestores» dos bens públicos), que escravizavam milhões de seres humanos, que trabalhavam sempre pelo mesmo prato de lentilhas ao fim do mês. Sem direito aos frutos do seu trabalho e do seu esforço, revertendo estes para um falso património social comum, verdadeiramente propriedade de uma reduzida elite burocrática e política (a «vanguarda do proletariado», para mantermos o léxico), as pessoas não tinham qualquer estimulo ao trabalho. Quando o Império implodiu, vitimado pela natureza intrínseca das suas muitas contradições (há que manter o léxico...), a propriedade privada regressou em força, generalizou-se, e passou a ser o princípio estruturante da reordenação social. Como, evidentemente, não poderia deixar de suceder, mais tarde ou mais cedo.

Mas não gostaria de me ficar apenas por deduções contraditórias. Conhecendo pouco destas coisas, lembro-me todavia de ter lido há uns anos uns livros de alguns etólogos, entre eles de Konrad Lorenz, Robert Ardey, Desmond Morris e Irenaus Eibl-Eibesfeldt, e de ter ficado espantado pela análise que faziam do comportamento inato de algumas espécies animais, sobretudo dos primatas, onde - pasme-se! - encontraram uma complexa organização social assente na delimitação de um (ou vários) territórios, com marcação do espaço próprio de cada animal, dos direitos inerentes a cada um dos animais do grupo habitante, com distribuição de tarefas entre eles, isto é, com repartição das funções sociais, com uma hierarquia vertical, e com uma afectação de recursos determinada pelo macho dominante do grupo. Alguns destes cientistas, sempre muito cuidadosos com a transposição dos princípios e das conclusões da etologia geral para uma eventual etologia humana (o que, apesar das cautelas, não deixaram de fazer), não se incomodavam em aceitar que a função do território na ordenação da vida dessas sociedades animais não estaria muito longe do papel que a propriedade desempenha nas sociedades humanas. Naquelas onde ela era um direito aceite e respeitado, obviamente.

Mas, admitindo que a macacada (estudava-se, então, muito os babuínos) não entusiasme por aí além o Ricardo Alves, sempre utilizaria um último argumento, que qualificaria de civilizacional: as sociedades da Europa e, na generalidade, as do mundo ocidental, sempre basearam a sua organização na propriedade privada. Vá lá ver o que já diziam os romanos de antes de Cristo (o tal que não é filho de Deus, como sabe) e o seu direito sobre o tema; estude depois a influência que tiveram na evolução do mundo ocidental (veja, por exemplo, a importância do direito romano renascido a partir do século XII em Bolonha e, a partir dela, em toda a Europa); passe os olhos sobre os foros, ou estatutos municipais medievais, caso não saiba, códigos de direito consuetudinário local, e verá o papel que as comunidades reservavam à propriedade privada. Se, a partir daí, prosseguir no estudo das sociedades e dos países ocidentais, encontrará sempre a propriedade privada como o vértice das principais questões sociais e políticas. Lei, por exemplo, a Magna Carta, de 1215, e medite um pouco sobre as exigências que os barões ingleses (esses fascistóides!) fizeram ao rei João.

Podemos assim dizer, glosando o seu certamente muito estimado Karl Marx, que a história do mundo é a história da propriedade privada. Se isto é um direito natural inscrito no córtex cerebral da nossa espécie, se no código genético dos primatas, se na tradição milenar das sociedades humanas, é que já não sei. Para tanto, francamente, não dou. Talvez um cientista mais apurado, pelo menos do calibre do grande Pavlov, me consiga um dia esclarecer.

13 junho 2007

entrevistas (mais ou menos) imaginárias*



Por onde tem andado nestes últimos tempos?
Por aí... sem parar. Sempre a abrir.

Não se cansa de todas essas viagens?

Mas como, se vou de avião ou de carro?

O que achou da Venezuela e de Hugo Chávez?

Achei que sim!

Não o conhecia pessoalmente?

Pessoalmente, pessoalmente, só na televisão.

E é parecido com Fidel?

Quem, eu?...

Já está na «galeria»?
Na galeria só lá está uma fotografia com Sua Santidade o Papa João Paulo II.

O que é que achou de Chávez?
Um grande democrata. Um combatente anti-imperialista. Um grande amigo de Portugal e dos portugueses e das portuguesas.

Sente saudades do tempo em que era eurodeputado?
Mas eu já não sou eurodeputado? O Zé Sócrates tirou-me das listas sem me dizer nada? E eu que estou farto de ir gastar dinheiro a Estrasburgo..

Embora houvesse quem dissesse que ia desistir ao fim de meses...
Ai houvese? Ai houvesse! Quem dissesse! Ele há cada patifório!

Mas o senhor é um profissional...
É verdade. Sempre vivi da advocacia.

Não foi profissional da política?
Amador. No meu tempo a política era como o râguebi: andávamos lá todos por amor à arte e à camisola.

Ainda olha para a política como uma missão?
«A Missão» era aquele filme com o De Niro e o Irons, não era? Gostei muito.

Mas como limpar os partidos dos ambiciosos que querem apenas promoção social e partidária?
Auschwitz! Auschwitz! Não pode haver piedade para gente dessa. Corruptos!

E os casos de pessoas que passam de um grupo económico para o governo e voltam ao grupo económico?
Valha-nos Deus! Ao que isto chegou! Ele há cada um!

Está a pensar em alguém específico?
Não, não! Só em alguém geral.

Assistimos a um certo revivalismo salazarista a propósito dos «Grandes Portugueses». Uma das coisas que se comentava é que o Salazar entrou e saiu da política sem ganhar um tostão. Como avalia isto?
Se não ganhou um tostão é porque era um mau profissional.

Está a pensar escrever sobre Salazar?
Escrever a Salazar? Não, não estou. Não tenho pachorra para cartas.

Alguma vez falaram?
Eu farto-me de falar. Ainda agora, como vê por esta entrevista. Agora ele, não sei. Não me consta que tivesse algum ventríloco.

Como define a relação que existe actualmente com o dinheiro?
Valha-nos Deus! É o deboche total. E tudo por causa do neoliberalismo. No meu tempo não era nada disso. Nem dinheiro tínhamos para o café, quanto mais para comer.

Todos os dias se fala no desmantelamento do Estado. Privatiza-se a saúde, a administração...
... os cemitérios...

O que é que resta do Estado?
Muito pouco, muito pouco. Uma lástima! No meu tempo não era nada disto.

Quem é o seu candidato preferido nas próximas eleições americanas?
Todos menos o Manuel Alegre!

Tem ido aos Estados Unidos?
Não. O Bush não me convida!

Muita gente interroga-se como é que um homem que foi aliado do Frank Carlucci é hoje um feroz anti-americano.
Quem é esse gajo? Ah!, já sei, o sócio do Albarran.

O próximo presidente norte-americano vai herdar o pesadelo do Iraque. Como resolver esta situação.
Afinal, pensando melhor, já começo a achar que o Alegre deve ganhar as eleições.

*As perguntas ou as respostas. Descubra quais.

12 junho 2007

os herdeiros de maquiavel


Qualquer que tenha sido a razão de fundo para o adiamento sobre a decisão do futuro aeroporto de Lisboa, não foi certamente o «interesse público» que orientou a atitude do governo. Não é, de facto, crível que o interesse comunitário carecesse de mais um adiamento de seis meses, até porque o assunto em causa está em discussão há anos e sobre ele havia já uma decisão final, presume-se, devidamente fundamentada.
Na verdade, mais do que o «interesse público», foram interesses políticos, de agenda político-partidária eleitoral, que estiveram em causa. E é natural que assim seja: os governos costumam gerir o seu tempo previsível de legislatura em função dos calendários eleitorais. Nos municípios passa-se o mesmo. E em todas as sociedades onde o poder resulte do sufrágio, onde os governantes careçam do apoio e das boas graças dos governados para conquistarem e se manterem no poder, é e será sempre assim.
Esta é, de resto, a natureza da política: a conquista, o exercício e a manutenção do poder do Estado, ou seja, da soberania política. O poder, e não o «interesse público», é a sua finalidade, e a satisfação dos clientes, que são os eleitores (momento em que o exercício do poder se poderá aproximar mais de uma ideia de serviço público), é meramente instrumental e não o fim em si mesmo da actividade política: os governantes pretendem agradar aos eleitores porque querem os seus votos para se manterem no poder. Não exactamente para lhes serem agradáveis ou sequer úteis. E quem imaginar que a política é o contrário disto, ou é ingénuo ou gosta de sofrer desilusões.
No fim de contas, do que aqui se trata é de reconhecer um domínio próprio para a política enquanto actividade humana e social, aquilo a que os herdeiros de Maquiavel, como Carl Schmitt e Julien Freund, chamam a «essência da política». Numa palavra, a política não se confunde com qualquer outra actividade humana, menos ainda com a caridade ou a beneficência social. Tem um objecto – o poder, um método – a divisão da sociedade em grupos concorrentes de amigos e de inimigos, e regras comportamentais próprias para a disputa e conquista da soberania. Nessas regras, a moral e o altruísmo não estão certamente incluídos.
Também os liberais, todos os liberais e sobretudo os liberais, nunca depositaram grandes ilusões na política e na capacidade dos governantes para promover o «interesse público» e a felicidade alheia. Ao contrário da esquerda, que acredita que a política é capaz de criar um «homem novo» e uma «sociedade igualitária», ao invés da maior parte da direita, que espera pela providência de Deus ou de um homem para manter a «boa ordem» social, o liberalismo conhece bem os homens e a política, e sabe com exactidão o que os primeiros querem da segunda. Por terem essa exacta noção, é que os liberais desconfiam do Estado e dos governantes. E preferem, apesar de tudo, que os homens se entendam de igual para igual, isto é, no mercado, do que se tenham de submeter ao egoísmo da soberania.

11 junho 2007

6 meses

Ao fim de anos de debate público e, presume-se, de estudos fundamentados sobre o aeroporto de Lisboa (o actual e o futuro), depois de anunciada, pelo governo em exercício, a decisão irreversível de o construir na Ota, esse mesmo governo resolveu fazer um interregno de seis meses no processo, para realizar «novos estudos» sobre a sua localização.
Isto só poderá ter um de dois significados: ou os estudos que fundamentaram a opção da Ota não foram exaustivos, logo, a decisão foi imatura e precipitada, ou o governo cedeu à pressão da opinião pública (e, sobretudo, da publicada) e não teve coragem para executar a sua decisão. Em qualquer dos quadros o cenário é negro: o primeiro revelaria leviandade política; o segundo anunciaria fragilidade governativa.
De todo o modo, na opinião do cidadão comum a coisa já não tem emenda possível: toda esta neblina serve somente para esconder «interesses ocultos» dos políticos e nada tem a ver com o interesse público. Bastaria ouvir o «Forum TSF» de hoje, para se perceber que isso é o que pensam as pessoas de todos os quadrantes políticos. O que não deixa de ser impressionante, visto tratar-se de um grande projecto nacional que, em vez de provocar toda esta celeuma, devia contribuir para a elevação da nossa auto-estima para o desenvolvimento do país. Assim, nunca lá chegará.

separados à nascença?

10 junho 2007

porque falhou o estado na ota?*


Todo o processo de decisão pública da construção do novo aeroporto é, sem que até agora ninguém o tenha feito notar, o mais completo libelo acusatório do intervencionismo estatal de que tenho memória em Portugal. Não necessariamente por o lugar escolhido ter sido a Ota, menos ainda por causa das dúvidas que começam agora a surgir sobre o desmantelamento do Aeroporto da Portela, ou ainda em razão da oportunidade e da utilidade estratégica nacional e económica desta decisão. Fosse qual ela fosse, ocorresse em que momento ocorresse, com implicações e consequências previsíveis de maior ou menor gravidade, ela seria sempre questionada e dividiria o país. Por outras palavras, em qualquer dos casos a decisão política do governo sobre um projecto de tão grande dimensão será uma má decisão aos olhos da opinião pública.

E porque razão sucede isto, numa matéria tão sensível, aparentemente tão do domino público como esta obra que envolve muitos e muitos milhões de euros, uns de proveniência comunitária, outros de origem privada, e certamente que grande parte com ascendência estatal. Um empreendimento que mexe com valores todos eles supostamente com relevância social e colectiva, como a segurança de cidades e pessoas, a sua velocidade de locomoção, o desenvolvimento económico nacional, antes e durante a construção da nova estrutura e depois da sua conclusão, o ambiente, o emprego temporário e permanente de milhares de portugueses, etc. Não devia o país, ao fim de tantos anos de discussão e debate em torno do assunto, país que ainda por cima é limitadíssimo em possibilidades geográficas, estar de acordo quanto à decisão tomada, ou, pelo menos, aceitá-la como competente e correcta, em vez de a continuar a questionar tão violentamente, como tem feito cada vez mais à medida que o tempo passa? A que se deve isso? À incompetência dos governantes, destes e dos anteriores do PSD que tinham tomado a mesma decisão que agora contestam, à falta de estudos, à ausência de análise de outras alternativas, à deficiente contabilização dos custos? Apesar de alguns críticos adiantarem estas e outras razões, o motivo de tanta desconfiança é outro: a construção de um aeroporto internacional como o da Ota não pode ser decidido pelo poder público monopolista, mas sim pela iniciativa privada e concorrencial. Porque, entregue ao governo e aos políticos, qualquer que seja a decisão suscitará sempre dúvidas profundas, que, em última análise, questionam a própria honestidade da decisão e dos decisores. Como tem vindo a suceder, ainda que por enquanto veladamente.

Quem conhecer um pouco a Teoria da Escolha Pública, sabe que ela introduz na análise da decisão política critérios de racionalidade que são próprios dessa actividade social, e que passam por objectivos que nada têm a ver com o etéreo «interesse público» (a versão contemporânea do clerical «bem comum», só que assegurado pelo Estado), mas com os interesses concretos e bem palpáveis da política, na melhor das hipóteses, ou mesmo pessoais dos políticos, na pior. Veja-se, a este propósito e obviamente muito longe de querer estabelecer paralelismos, as recentes estatísticas que concluíram que 1/3 da receita fiscal cobrada no Brasil é desviado para os bolsos privados dos políticos e dos agentes da corrupção.

Pondo de lado este exemplo extremo do Brasil, considerando uma amostra normal dos países democráticos ocidentais, com níveis razoáveis de controlo da legalidade dos actos dos agentes políticos, encontramos, em todos eles, a criação de condições que originam a rent-seeking, isto é, a actuação de grupos de interesse e de pressão sobre o governo com a finalidade de obterem a concessão dos direitos de propriedade sobre os bens e serviços que o Estado monopoliza como se lhe pertencessem. Esta disputa que se gera entre os grupos de pressão pelo favor monopolista do Estado, leva a um aumento artificial dos custos dos serviços e dos bens, que inevitavelmente se reflectirá nos preços de venda ao consumidor. Por outro lado, a situação de monopólio estatal desses bens e serviços, assim como da emissão de licenças de concessão e de exploração, aumentam exponencialmente as possibilidades de corrupção dos políticos, ou de favorecimento de certos grupos financeiros em desfavor de outros, como recentemente se levantou a suspeita de ter acontecido entre nós com a PT. O que provoca a desconfiança generalizada dos cidadãos em relação à política, aos políticos e às instituições públicas. Desconfiança metódica e de princípio, que é partilhada pelas próprias instituições judiciais de controlo da legalidade, que, in dubio, acusam os agentes políticos. Como se tem visto ultimamente em Portugal, com a banalização do estatuto de arguido na classe política. Em conclusão, a monopolização, por parte do Estado e do Governo, de direitos de propriedade sobre bens e serviços, a pretexto da sua natureza pública e do interesse colectivo que lhe será inerente, que supostamente lhes compete garantir, tem, assim, efeitos perversos para os cidadãos, para os próprios políticos, e para o Governo e o Estado.

Esta é mais uma boa razão para afastar o intervencionismo estatal dos grandes projectos que envolvem o «interesse público». No caso da Ota, o Estado que privatize a ANA, a empresa proprietária e gestora dos aeroportos nacionais, e lhe permita tomar a decisão de manter ou desmantelar os que tem em funcionamento e que são os seus activos principais, e de abrir outro ou outros onde bem entender. Desde que, obviamente, o faça em concorrência aberta com outras empresas que se estabeleçam no mercado, e em obediência a regras gerais e abstractas que a lei crie para o sector e para o seu desenvolvimento. Certamente que não seria por falta de aeroportos que os cidadãos se queixariam. E estou certo que seria a única forma de deixarmos de olhar para uma coisa tão elementar, como a construção de um aeroporto, como um drama nacional.


* Ou porque falhou o Estado na OPA à PT, na Expo 98, no Porto 2001, no Euro 2004, no Centro Cultural de Belém, na Casa da Música, etc.?