O
Paulo Pinto Mascarenhas reagiu ao meu
«post» sobre a «perigosidade» dos liberais portugueses com uma interessante pergunta:
para que serve, afinal, o liberalismo? Não querendo substituir as suas palavras por palavras minhas, parece-me, todavia, que subjaz à questão que coloca a ideia de que se o liberalismo se cingir a alguns artigos académicos de teoria política e a outros tantos debates de mesa de café, não terá qualquer utilidade para ninguém, desde logo para as pessoas que vivem em sociedades altamente estatizadas como a portuguesa. Sobre o assunto, tentarei expor a minha posição, o melhor que souber e for capaz.
Há um pressuposto liberal que, nos meus últimos
«posts» não tenho referido directamente, mas que é, em minha opinião, o pilar principal de toda a doutrina liberal: o princípio da impotência da razão humana e do conhecimento. Hayek dissertou sobre ele ao longo dos primeiros capítulos da sua célebre trilogia
«LLL», Popper também o invocou constantemente durante a sua obra, principalmente nos textos de epistemologia (vd. o
«Conjecturas e Refutações»). O princípio, retirado de um enunciado matemático de Sir Edmund Whitaker, diz, sumariamente, que a capacidade da razão humana é
naturalmente limitada. Quer isto dizer que, ao invés do que admitia o racionalismo cartesiano tão influente no positivismo oitocentista, no historicismo socialista e no construtivismo sociológico do século XX, a nossa capacidade de apreender e compreender o mundo que nos rodeia é limitada, desde logo, pela nossa humanidade. Isso tem por consequência, do ponto de vista do liberalismo, que os homens não podem prever as consequências completas dos seus actos, menos ainda dos actos alheios. Numa sociedade complexa, na Grande Sociedade hayekiana, o governo não deverá ultrapassar determinados limites de actuação – os enunciados pelos clássicos do contratualismo liberal, por muitas e várias razões, mas, sobretudo, por ser composto por homens cujos limites de precognição dos fenómenos sociais é tão limitada quanto a nossa de comuns mortais. Por essa razão, o liberalismo acha que as escolhas devem ser preferencialmente da responsabilidade dos directos interessados, sem necessidade de intermediários, porque têm mais e melhor informação, e que, no limite, estes podem criar instituições que os ajudem a preservar esse direito de escolha, que é, no fim de contas, o que significa a liberdade do homem em sociedade.
Os liberais não negam, portanto, a existência do Estado, menos ainda que ele foi gerado a partir de necessidades sentidas pelos indivíduos, tendo vindo a crescer, infelizmente, por estes acharem que ele pode ser o melhor garante das suas necessidades igualmente crescentes. Este é, de resto, o paradoxo mais curioso das sociedades intervencionadas e estatizadas: à medida que o Estado cresce, crescem invariavelmente as necessidades e as dificuldades dos indivíduos, quando devia ser exactamente ao contrário.
Aqui reside, a meu ver, a primeira e a mais importante «agenda política» do liberalismo, sobretudo, como o Paulo enfatiza, quando ela deve ser pensada para um
«pais atrasado e dominado por (pré)conceitos estatistas» como é o nosso: tentar demonstrar às pessoas que elas têm mais a ganhar com menos Estado do que com mais Estado. Porque, infelizmente, perdura ainda o mito, muito graças a uma certa direita que sempre o cultivou, de que o exercício do poder é coisa para homens dotados e providenciais, logo, que só o Estado nos pode acudir nas nossas aflições e necessidades.
Por isso tenho vindo a escrever que, mais do que uma ideologia, o liberalismo deve ter um sentido pedagógico na criação de uma mentalidade social que lhe seja favorável, no sentido das pessoas preferirem o individualismo e a liberdade contratual ao colectivismo estatizante, percebendo que lhes é mais útil o primeiro. Pode isto ser feito por um partido político? Melhor ainda: deve isto traduzir-se em propostas programáticas de um partido político que pretenda, como todos pretendem, conquistar o poder? Poder pode, embora duvide muito da eficácia da ideia. Porque, a natureza da política é, como o Paulo sabe bem, a conquista, o exercício e a manutenção do poder. Algumas correntes específicas do liberalismo, como a «Public Choice», explicam que o Estado e o poder político têm vida própria, isto é, como qualquer empresa humana possuem uma finalidade que é autopoiética, que se justifica e basta a si mesma para existir e crescer.
Não se pense, portanto, que a lógica da política e dos seus instrumentos de realização que são os partidos, possa ser outra que não a conquista, o exercício e a manutenção do poder. Neste pressuposto, o culto da liberdade e da emancipação do indivíduo face ao Estado só pode ser-lhes útil enquanto estão fora do Estado. Quando lá chegam, sempre serão capazes de encontrar justificações para meter o liberalismo na gaveta, como Durão Barroso e Paulo Portas fizeram, ainda há pouco tempo, com o tristemente célebre «choque fiscal».
Um Estado liberal é, portanto, coisa que não existe. Pensar o contrário é uma ingenuidade. De facto, o Estado só se contém na sua expansão natural de poder e soberania, se tiver uma forte resistência que o obrigue a isso, oposta por parte dos destinatários da sua generosidade governativa. Isto é, dos governados e nunca (ou muito, muito raramente) dos governantes. Por essa razão, tenho vindo a escrever que só uma sociedade de homens livres pode conhecer um Estado limitado, e que se eles não existirem não será o Estado a criá-los.
Quanto aos partidos políticos incorporarem medidas programáticas liberais, não vejo qualquer inconveniente nisso, mesmo se as não executarem se alguma vez chegarem ao poder. Sempre haverá alguma desilusão no meio de tudo isso, mas o encanto do poder e o seu efeito altamente afrodisíaco conseguem superar tudo isso e dar novo alento aos desanimados (Miguel Frasquilho, apesar de tudo, teve o bom senso e a honradez de se demitir. Até hoje, que saiba, ninguém lhe agradeceu.). Convém, porém, ser coerente: se o liberalismo é,
a priori, por razões epistemológicas, avesso à planificação, ao intervencionismo e à programação política da sociedade (
«laissez faire…», não esqueçamos…), inventar um partido político com um programa de governo liberal talvez seja uma contradição. Embora, admita, alguns políticos possam achar mais ou menos conveniente para o exercício do poder criar mais ou menos Estado. O governo de Sócrates, por exemplo, tem
desestatizado muito mais do que qualquer governo de direita, em Portugal, desde o primeiro governo de maioria absoluta de Aníbal Cavaco Silva. Sócrates é liberal? Certamente que não. Não pode é fazer doutra maneira, neste caso graças ao apertado controlo orçamental da União Europeia, que o obriga a encolher o Estado que governa. Duvido, porém, que o saldo final seja mais liberalizador do que no começo da jornada. Como para tudo, há na política muitas formas de levar o cântaro à fonte.
Em conclusão, que floresçam mil partidos liberais e mil tendências liberais em todos os partidos portugueses. Que isso será igual a nada se não existir uma forte consciência social liberal, ou seja, de desnecessidade do Estado, parece-me uma evidência que a história recente da nossa direita tem comprovado. Razão pela qual reputo de muitíssimo mais importante o que o Paulo tem vindo a fazer na revista
«Atlântico», do que o que alguma vez poderá vir a fazer na ala liberal do CDS.