22 janeiro 2007

deus ou rousseau? uma escolha liberal

A associação ancestral da ideia de Deus ao exercício do poder dos homens não foi fruto do acaso ou resultado da vontade de uma qualquer igreja, seita ou associação de culto. Como, desde sempre, Deus (ou os deuses) foi uma imanência do género humano e a explicação para muito do que, de bem ou de mal, os homens faziam, acabou por se tornar num «produto» apetecível, diria mesmo, necessário, para a legitimação do poder público. Em boa verdade, quando os romanos antigos fundamentavam o seu primeiro direito nos «mores maiorum», ou seja, nos costumes ancestrais da cidade, que se confundiam no tempo mítico da fundação da civitas e com as divindades, ou quando S. Paulo, e toda a Idade Média como ele, reclamava que «omnis potestas a Deo», ou, ainda, quando os reis do absolutismo, na esteira de Luís XIV, proclamavam que o Estado era coisa sua, como soberanos representantes de Deus na Terra, eles estavam a dar resposta à mais difícil pergunta que o poder público encerra: porque razão pode um homem coagir outro à sua vontade, e pretender que esse exercício seja legítimo, isto é, acatado pelos demais?
Os contratualistas do Renascimento e dos séculos que se lhe seguiram não abandonaram a legitimidade divina do poder. Apesar de distinguirem a cidade dos homens da cidade de Deus, era sempre a ideia de bem - do bem comum, do bem da república, do bem individual -, que subjazia às suas teorias de instituição da polis. Essa ideia era profundamente moralista, e baseava-se numa distinção dicotómica - a do bem e do mal -, que, na nossa civilização, estava por esse tempo parametrizada pelo cristianismo e pelas Igrejas legatárias da Revelação, estas últimas, sobretudo a Igreja Católica, em permanente disputa temporal com os príncipes pela autoridade da interpretação. Não por acaso, os instituidores da nova forma de organização política das treze colónias da América do Norte, na Declaração de Independência de 4 de Julho de 1776, reclamam o testemunho do «Supreme Judge of the World for the Rectitude of our Intentions», o mesmo é dizer, imputam a Deus a fundação dos Estados Unidos da América. A partir daqui, proclamada a independência e, com ela, constituída uma nova entidade política fundada por homens de recta intenção, defensores de direitos naturais tutelados, logo, legitimados por Deus, o exercício do poder passou a decorrer desse primeiro acto fundador, sem necessidade de qualquer outra explicação suplementar. Razão pela qual o nome de Deus não figura na Constituição americana de 1776. Invocando o seu nome e a sua autoridade, as colónias cindiram com a potência colonial que as criara e mantinha sob tutela, os Estados Unidos da América tornaram-se independentes, e os constituintes sentiram-se «autorizados» a redigir e a aprovar a Constituição. A legitimidade de Deus era originária e mais do que suficiente.
A Revolução Francesa trouxe, pela mão de Emmanuel Joseph Sieyès, clérigo representante da Igreja e da aristocracia nos Estados Gerais, uma dificuldade adicional à legitimação do poder público: a sua divisão em «pouvoir constituant» e «pouvoir constitué». Naturalmente, embora o segundo decorresse forçosamente do primeiro, a instituição deste último e o exercício daquele teriam de pertencer a entidades distintas e de responder a diferentes autoridades. Desaparecido Deus, reclamada em sua substituição a «volonté générale» de Rousseau, o poder, todo o poder, o de instituir, legitimar e governar, passou a ter um só fundamento e uma única fonte. A partir daí torna-se apropriável por um único soberano: o povo, na versão rousseauniana, ou um tirano, na versão de Bonaparte ou de outro qualquer, que, à boa maneira do seu antecessor Luís, proclamou «je suis le pouvoir constituant». O mesmo quer dizer: o «´L'État c'est moi».
Perdida a fundamentação transcendente do poder, o século XX dispersou-se na busca de uma nova razão legitimadora. Em bom rigor, iniciada um pouco antes por Weber, com o seu tríptico legitimador da autoridade do príncipe. Todas essas razões eram humanas, demasiadamente humanas. Mais tarde, os técnicos do direito haveriam de procurar uma nova metafísica para o poder, sobretudo para o poder democrático. De todas, a que mais se aproximou de Deus foi a Grundnorm kelseniana, forma etérea e indeterminada, quase divina, de explicar o fundamento do direito, o mesmo é dizer, dos poderes constituídos de Sieyès. As outras explicações, as democráticas e as anti-democráticas, coincidiram sempre, ao longo do século XX, no fundamento rousseuniano da vontade geral do povo.
De então para cá, dessacralizado, o poder voltou a ser um instrumento na inteira disponibilidade da racionalidade humana: de um, de alguns, ou da multidão. Perdeu um critério superior de limitação e de aferimento valorativo. Exerce-se em nome da razão e já não em nome de um valor transcendente. É e será, por isso, o que essa «racionalidade» ditar, mesmo que passe por cima dos direitos individuais mais elementares, o que, de resto, faz frequentemente sem escrúpulo, em nome da totalitária «razão de Estado» ou da democrática «vontade da maioria».
Por conseguinte, quer Ele exista quer não (não é isso que está, ou que alguma vez esteve verdadeiramente em causa na arte do poder), a ideia de Deus é capaz de voltar a ser necessária se quisermos refrear a soberania.

sistemas de ideias e ideologias

Alguns comentários ao «post» que editei sobre Proudhon, manifestando estranheza em qualificá-lo como um «libertarian» próximo de algumas ideias do liberalismo clássico, levam-me a prestar alguns esclarecimentos.
Diria, em primeiro lugar, que o liberalismo é um sistema aberto de ideias em torno de um conjunto de princípios e valores julgados fundamentais a uma sociedade livre, e não propriamente uma ideologia. O liberalismo está receptivo a todos os argumentos que contribuam para reforçar a liberdade, a soberania individual, a limitação dos poderes públicos, o respeito pela propriedade, pela liberdade contratual, pela liberdade de comércio, etc. Não tem uma ideia fechada sobre a sociedade, nem propõe um modelo ou um sistema político de governo. Por não ser uma ideologia, não é de esquerda nem de direita, e revê-se frequentemente em posições de autores situados nessas duas categorias. Por não ser um sistema fechado de ideias, sobrevive à diferença em muitos aspectos acessórios, desde que o essencial permaneça salvaguardado. O Blasfémias é disso um bom exemplo.
Por conseguinte, não é de estranhar que Pierre-Joseph Proudhon, que creio (apesar dos seus ataques à propriedade) estar bem mais próximo da mentalidade liberal do que do pensamento socialista, seja invocado em reforço do que pensamos. No seu caso, penso que ninguém poderá ficar chocado com esta «apropriação». Nem devem ficar espantados os nossos leitores se, por um destes dias, nos virem aqui a invocar Marx em abono do liberalismo.

pierre-joseph proudhon: um «libertarian» no século xix

Pierre-Joseph Proudhon morreu cedo, com cinquenta e seis anos apenas. É vulgarmente conhecido como socialista e anarquista, inimigo da propriedade privada e do capitalismo industrial do tempo em que viveu. Sempre me pareceu reducionista e muito limitada esta abordagem do pensamento de Proudhon.
Na verdade, é com a liberdade, com as condições para que ela se torne possível, e com os inimigos que a ameaçam, que Proudhon mais se preocupa. Com os abusos do poder político e do governo, do exercício da soberania política, onde ele via o reino da arbitrariedade e da tirania. Com a estatização que se sobrepunha ao indivíduo e à sua liberdade. Considerava, por isso, qualquer acto de governação como um acto de «usurpação» da liberdade individual, que ele definia como «liberté de conscience, liberté de la presse, liberté du travail, liberté de l'enseignement, libre concurrence, libre disposition des fruits de son travail, liberté à l'infini, liberté absolue, liberté partout est toujours!». Todas as suas preocupações políticas giram, portanto, em torno da liberdade.###
Começando por ver na propriedade «um roubo», a origem de todas as desigualdades e uma ameaça à liberdade («Qu'est ce que la propriéte?», 1840), transferiu a sua análise crítica para o poder do Estado, para o governo e para a burocracia, onde encontrou a verdadeira ameaça à liberdade. Perante a necessidade de esvaziar o poder do Estado soberano, propõe um modelo federal descentralizado, aplicável aos Estados e à sociedade internacional, que seria resultante de um contrato sinalagmático e equitativo celebrado pelas partes que compõem a federação («Du Principe fédératif», 1863). Sobre o federalismo diz que é «liberdade por excelência, pluralismo, divisão, governo de si por si». E vê-o como a origem do próprio Estado, que mais não é, segundo ele, do que uma federação de interesses particulares e individuais.
Declina, também, a ideia marxista da luta de classes e o dogmatismo colectivista do comunismo, admitindo a existência de relações de cooperação entre a burguesia e o proletariado. Vê na concorrência uma condição natural da vida social e da liberdade económica. Proclama-se admirador do «laisser-faire, laissez-passer», de de Quesnay, de Turgot e de Say.
Por isso, foi atacado por Engels e Marx, que lhe chamavam um «filósofo e economista da pequena burguesia». Marx nunca levou a bem que Proudhon se afastasse da sua visão dialética do mundo e da luta de classes, e que lhe tivesse retorquido que a sua filosofia política pretendia impor substituir dogmas por dogmas, o que jamais aceitaria.
Decididamente, Pierre-Joseph Proudhon não era socialista, e se tivesse vivido nos nossos dias seria certamente um assumido «libertarian».

Nota: Este é um primeiro texto sobre o pensamento político de Proudhon, ao qual pretendo regressar futuramente.

el comandante

As notícias mais recentes dão conta do que previsível agravamento do estado de saúde de Fidel de Castro. Se vier a morrer nos próximos dias, teremos uma boa oportunidade para avaliar o comportamento da esquerda indígena em relação à memória do «comandante». Sobretudo, por ainda estarem tão próximas a morte de Pinochet e as críticas que então foram feitas a algumas reacções da direita consideradas mais hesitantes.

grandes desvios

O espírito de revanche colonial está a ensombrar a visita do Presidente da República à Índia. Depois de maldosamente o tratarem por «Covaco» (o PR sempre embirrou que lhe deturpassem o nome, como sucedia com o frequente «Aníbal Cavaco e Silva» dos primeiros tempos de popularidade), as autoridades académicas da Universidade de Goa impediram-no de visitar a galeria de retratos onde se encontra um dos dez mais votados «Grandes Portugueses» de sempre. Não se faz!

0 «argumento económico» não é «apenas» um argumento económico

O chamado «argumento económico» sobre o refendo ao aborto não se limita, ao contrário do que pretendem os seus detractores, a uma mera contabilidade de deve e haver sobre os benefícios e os prejuízos das medidas propostas pelo governo sobre a sua inclusão no SNS. Ele comporta essa e outras dimensões que o governo não tomou em devida conta e devia ter tomado. As seguintes, a saber:

1. Económica. Num país que se debate com falta de meios para quase tudo, em que, particularmente, a saúde tem vindo a ser descurada pelos sucessivos governos, seja ao nível da prevenção, seja ao nível da assistência, não parece uma prioridade de saúde pública canalizar verbas para a prática gratuita do aborto. Só nesta última semana, discutiram-se a falta de meios de emergência e socorro no Alentejo, onde existe um único veículo de emergência médica para toda a região, e a não inclusão da nova vacina contra o cancro do útero no programa nacional de vacinação. Neste último caso, calcula-se que morra diariamente uma mulher em Portugal vítima dessa doença, cuja vacina está à venda por 480,00 euros, e, que se saiba, o Estado ainda não manifestou qualquer intenção de comparticipar nesses custos. É, por isso, difícil aceitar que o mesmo Estado que se queixa de falta de recursos para destinar à saúde, já os tenha para interromper gravidezes que não envolvam qualquer risco de saúde para a mãe ou para o feto. Não se espantem, por isso, se as pessoas forem mais sensíveis do que seria previsível a esta dimensão do problema. Não é egoísmo. É sensatez.

2. Moral. Se aceitarmos que a decisão de abortar só pode ser tomada pela grávida e que mais ninguém deve interferir nela por dizer somente respeito à sua consciência, não podemos depois pedir ao Estado, isto é, à colectividade que ele representa, que assuma a responsabilidade de facultar os meios necessários a essa decisão. Por outro lado, se todos estamos de acordo em reconhecer que o aborto é um flagelo com sérias consequências emocionais e psíquicas para quem aborta, e que ele representa uma decisão-limite própria de quem não pode encarar outra senão essa, então, dificilmente poderemos sustentar um sistema que levará inevitavelmente ao facilitismo, ao laxismo e à desresponsabilização. Dito de outro modo, o assistencialismo do Estado fará com que as pessoas, sobretudo as mais jovens, olhem para o aborto como um vulgar acto médico sem repercussões pessoais, e não com uma decisão individual que quase certamente comportará consequências complexas para quem o decide enfrentar. O Estado não deverá perseguir, julgar e condenar quem aborta: é uma atitude liberal. O Estado deve apoiar financeiramente quem quer abortar: é uma atitude socialista.

3. Ideológica. «Máxima liberdade, máxima responsabilidade» é o que os liberais pensam da relação do indivíduo com a esfera pública, isto é, com o Estado. Não é, portanto, simultaneamente sustentável arguir-se a despenalização do aborto por razões de consciência individual da mãe e pretender que seja o Estado a responsabilizar-se por essa decisão. Faz lembrar um pouco aquela ancestral reclamação sobre a qualidade dos nossos empresários, de que estão sempre a queixar-se do Estado e a pedir-lhe sustento. Obviamente que se reclamamos que o Estado não deva punir quem aborta por se tratar, única e exclusivamente de uma decisão que só diz respeito à mãe, não podemos no momento imediatamente seguinte pretender responsabilizar a comunidade por essa decisão. São coisas diferentes, decisões distintas e que não deveriam ter sido confundidas, como o estão a ser.

Conclusão. Esta proposta sobre a lei do aborto é socialista. Resulta de uma visão sobre a natureza e das funções do Estado e do indivíduo que não é liberal. Não devemos levar isso a mal, porque todos temos direito a defender aquilo em que acreditamos. Mas, também, quem for convictamente liberal, não o poderá ignorar. Teria sido, portanto, mais compreensível que o governo tivesse legislado sobre o assunto como entendesse (tinha legitimidade política para isso), em vez de se ter escudado num referendo que nos envolverá a todos e que, ainda por cima, não anuncia com clareza a plenitude das consequências de cada uma das decisões em causa. Se tivesse decidido por via legislativa, daqui por algum tempo, em próximas eleições legislativas, um novo governo poderia alterá-las. Aparecendo elas na dependência do referendo, terá inevitavelmente que as submeter a um outro referendo, o que é impensável. Cada um que retire daqui as conclusões que entender.

P.S.: Para evitar a repetição de comentários ao «post», como o de que «é falso que quem votar "sim" se comprometa com o subsídio de abortos no SNS» (José Barros), aqui vão três links sobre as declarações do senhor Ministro da Saúde a esse respeito: 1, 2 e 3. Estas declarações têm por adquirido que, para o governo, a despenalização do aborto implica a sua sustentação pelo Estado. Até agora, que se saiba, não foram desmentidas por ninguém. Evidentemente que se poderá sempre alegar que uma coisa é o momento do referendo, e que outra será a decisão legislativa do governo em integrar a interrupção voluntária da gravidez no elenco das obrigações do SNS. E que, por conseguinte, no futuro, qualquer outro governo poderá modificar livremente esta última, mantendo o respeito pelo primeiro (o mesmo José Barros sugere, provavelmente pretendendo provocar um momento de boa disposição, que essa modificação legislativa poderá ocorrer com uma «pressão social que convença o legislador a mudar a lei ou decreto-lei.»). Não é assim, como é por demais evidente. Desde logo, porque um liberal não deve apoiar uma decisão errada, na esperança de que, no futuro, alguém a emende. Em segundo lugar, porque é sobejamente conhecido o habitual receio dos poderes públicos em enfrentarem direitos adquiridos (não por acaso, o PSD nada disse, até agora, sobre isto). Por fim, e sobretudo, porque o governo fez questão de anunciar esta intenção antes e não depois do referendo, do que resulta que ambas as questões se sobrepõem. Desse modo, não será de espantar que se venha a dizer, no futuro, que ambas foram simultaneamente referendadas. Se tecnicamente, não é assim(o que é, pelo menos, discutível), de facto, politicamente ninguém duvide que o acabará por o ser. O raciocínio tem, portanto, duas premissas e é elementar: o governo anuncia o referendo sobre o aborto e propõe a sua despenalização; simultaneamente, através do Ministro da Saúde, declara a prática do aborto, quando realizado nas condições referendadas, sustentada pelo Estado. É necessário retirar a conclusão? Na verdade, só quem estiver muito distraído ou a ver passar comboios, é que não terá ouvido as declarações do senhor Ministro, ou lhes pretenderá conferir uma importância menor do que a que efectivamente têm.

resta-nos a ditadura?

O raciocínio do Pedro Arroja exposto no «post» imediatamente anterior revela, como de costume, lucidez, e está, infelizmente, correcto. Só que apenas em relação a parte da verdade e não a toda. Porque, se é um facto indiscutível que o SME e, posteriormente, a Moeda Única retiraram à nossa soberania os principais instrumentos da política financeira e a remeteram para Frankfurt e Bruxelas, parece-me que isso só nos trouxe vantagens e não os inconvenientes que refere.
Na verdade, em democracia, nunca conseguimos ter contas públicas estáveis e equilibradas. A razão é conhecida: o Estado desbarata a pouca riqueza nacional que conseguimos produzir e impede-nos, quase nos proíbe, de produzir mais. Se olharmos para o século XX, constataremos que só tivemos finanças públicas equilibradas em ditadura, com Salazar, quando fomos proibidos de meter a mão na massa, pelo FMI, sob ameaça de banca rota, e na autocracia financeira do cavaquismo, período durante o qual fomos inundados por milhões vindos de Bruxelas. A República levou-nos à falência, o 25 de Abril não nos deixou longe disso, e mesmo com a UE o engº Guterres ia conseguindo um feito idêntico. De resto, não fossem a União Europeia e os instrumentos das políticas monetárias e financeiras indexados ao euro, estaríamos há muito com as panelas e os tachos na mão a fazer barulho na rua.
Por isso, caro Pedro, o que Portugal tem que demonstrar, se é que ainda vai a tempo, é que é capaz de se governar em democracia. Convenhamos que o actual estado das coisas, mesmo com a bênção diária da União Europeia há mais de vinte anos, não é inspirador. Enquanto não fizermos essa demonstração, deixe lá o euro em paz.

P.S.: Parece que passa hoje na RTP aquela coisa dos «Grandes Portugueses». Estou com uma certa curiosidade em saber os resultados...

o estado garante - 3

1. Mercearia. Não se terá lido certamente por aqui que o Estado deva destinar a receita dos impostos que cobra para julgar e prender mulheres que abortam, mas tão-somente que o Estado não deve destinar a receita dos impostos que cobra para suportar a prática do aborto fora das situações onde haja risco para a saúde física ou psíquica da mulher. Mas, já que o assunto descambou para as contas de mercearia, não será necessário esperar pelo fim do jogo para prognosticar os gastos que o Estado irá ter com os milhares de abortos que se pensa ocorrerem em Portugal todos os anos (é um flagelo, não é?).

2. O CAA tem razão: o direito fundamental ao aborto gratuito não é igual aos outros direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição. Na verdade, ninguém leva hoje a sério o direito ao trabalho, à habitação, ao ambiente e à qualidade de vida, à educação, à cultura e à ciência, à cultura física e ao desporto, etc.. São graças do nosso legislador constituinte sem qualquer adesão à realidade e ainda bem. No caso do direito fundamental ao aborto, não: «a mulher decide, a sociedade respeita, o Estado garante». Garante e paga, pois claro.

3. «Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?». Esta é a pergunta e encerra uma óbvia questão ideológica na última parte da frase. Porque razão não se limitou a pergunta a isto: «Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras dez semanas de gravidez, com o consentimento da mulher?» Não bastava para descriminalizar o aborto? O que lá está a fazer a frase «em estabelecimento legal de saúde»? Será que o Estado se prepara para proibir o aborto químico?! Responda quem souber...

4. A propósito de tudo isto, leiam-se aqui as prognoses, os palpites e as sensações do ministro Correia de Campos. Um ideário liberal, sem dúvida.

argumentário liberal contra o direito fundamental ao aborto - 2

1. Equívocos. Não subsiste qualquer equívoco quanto às intenções do governo sobre a inserção do aborto no Serviço Nacional de Saúde, no termos que a futura lei vier a permitir. O governo foi, diga-se em abono da verdade, muito claro quanto a isso, nomeadamente pela voz do senhor Ministro da Saúde, que inclusivamente já quantificou os custos de cada intervenção entre ? 300,00 e ? 700,00.

2. Falta de nexo de causalidade. Não existe qualquer nexo de causalidade entre: a) despenalizar, ou mesmo até descriminalizar, a prática do aborto; b) tornar o aborto numa prática sustentada pelo Estado e pelos contribuintes. Tanto mais que, para muitos destes, esta é uma matéria que envolve convicções e sentimentos éticos, religiosos e morais, que um Estado de direito democrático deve saber respeitar e não pode impor. Pelo menos, para quem tiver do Estado uma visão liberal.

3. Saúde pública. O problema da saúde pública provocado pelo aborto clandestino, muitas vezes a cargo de abortadeiras de vão-de-escada sem competência nem meios para o fazer, subsiste por se tratar de uma prática ilícita, logo, explorada de forma marginal. Não ocorre pela alegada inexistência de recursos de quem aborta, já que esses serviços estão longe de ser gratuitos. Podem ser eventualmente mais baratos do que o custo de uma deslocação a Badajoz, a Paris ou a Londres, mas, uma vez despenalizado, esse problema desaparecerá, pelo que não poderá ser aceite como «argumento» a favor da decisão anunciada pelo governo.

4. Despesas com a saúde. Numa altura em que o SNS introduz taxas moderadoras progressivas para a prestação de efectivos serviços de saúde; em que o Estado diminui substancialmente a sua comparticipação em medicamentos necessários, esses sim, à saúde de milhões de cidadãos portugueses; em que os hospitais públicos continuam com carências de toda a ordem; em que se fecham maternidades e centros de saúde por falta de dinheiro; estar a disponibilizar recursos que se anunciam vultuosos para a interrupção voluntária da gravidez, em casos onde não exista qualquer risco para a saúde da mulher, não pode merecer a concordância de um liberal.

5. Aborto por motivos de saúde da mãe. Nos casos previstos na lei actualmente em vigor, que o SNS já cobre, está, de facto, em causa a saúde física ou psíquica da mulher: fetos com malformações graves; gravidezes provocadas por violação; perigo de vida da mãe. São, por isso, situações absolutamente incomparáveis com a interrupção voluntária de uma gravidez resultante de uma sexualidade normal e consentida.

6. O direito fundamental ao aborto gratuito. Uma vez adquirido o direito fundamental ao aborto gratuito, nenhum governo terá coragem de alterar o seu regime legal. Tanto mais que logo surgirá quem, e com razão, alegará que esse quadro legal foi referendado.

7. A pedagogia da asneira. É um erro, infelizmente recorrente na política portuguesa, apagar um erro com outro. Por isso, não se pode aceitar que devamos aprovar o aborto como direito fundamental assegurado gratuitamente pelo Estado, para obtermos a sua despenalização. Não se trata de, como diz o CAA, estar a impedir a resolução de uma parte importante do problema por não conseguir resolvê-lo todo. É que o problema em causa é novo, é outro bem distinto da descriminalização, e foi criado sem necessidade.

8. Estratégias. Como é, também, um absurdo dizer-se que agora se vota a despenalização e, mais tarde, se tratará de retirar o aborto do SNS. Não: agora vota-se em ambas as coisas e não haverá, no futuro, espaço para recuos.

9. Responsabilidades. Se do referendo sair a vitória do «não», é bom que se tenha a consciência de que a responsabilidade é de quem quis transformar uma questão do foro jurídico-penal, numa causa ideológica, com laivos de romantismo socialista da revolução industrial inglesa.

«o estado garante» (argumentário liberal contra o direito fundamental ao aborto 1)

«A mulher decide, a sociedade respeita, o Estado garante». O tríptico, lamento, não é meu, é da campanha do «sim», e significa que o Estado português quer passar de perseguidor a tutor das mulheres que abortam. Do ponto de vista liberal, se nunca tive dúvidas em condenar um Estado que persegue criminalmente por razões que, em última análise, só podem ser de consciência individual, não fico mais confortável por saber que agora esse mesmo Estado quer transformar um «crime» num direito fundamental. O que está aqui em jogo não é exactamente um raciocínio «economicista» (termo muito em voga, que cai sempre bem?) de não aceitar que o SNS gaste dinheiro dos contribuintes senão com a saúde dos cidadãos quando ela está em causa, mas um conjunto de questões morais e éticas dificilmente transponíveis. A saber: que o Estado tem de ser neutro em matérias de consciência individual; que o Estado não deve tomar partido em matérias que dividam profundamente a sociedade; que o Estado não pode canalizar recursos dos cidadãos em despesas que paguem escolhas individuais não necessariamente obrigatórias e da sua completa responsabilidade; que os cidadãos para quem o aborto é moral e eticamente intolerável não podem ser impelidos a contribuir para o sustentar; porque, por fim, a decisão de abortar e a assumpção das consequências pessoais do acto, só pode ser individual e nunca da colectividade. De resto, ao aceitar que seja a colectividade, por via do Estado, a interferir em defesa de quem aborta, estamos a reconhecer o princípio de que essa é uma matéria a todo o tempo sindicável. Por isso, se, um dia, o Estado português voltar decidir o contrário, poderá legitimamente perseguir, condenar e prender quem o faz. É este tipo de raciocínios colectivistas, muito próprios da mentalidade socialista, que um liberal jamais poderá aceitar.

sim?

Tal como o JCD, também eu, cada vez mais, me sinto, cada vez menos, «esclarecido» sobre o que se vai votar no referendo do dia 11 de Fevereiro. De resto, como já assinalara num «post» editado há algum tempo, se a despenalização e até a descriminalização do aborto não me incomodam especialmente, sobretudo por ter em conta a inultrapassável evidência da realidade, já o facto de o Estado «garantir» a sua prática incomoda-me solenemente. Na verdade, como já disse e repito, uma gravidez não é uma doença que tenha de ser necessariamente «tratada» pelo Serviço Nacional de Saúde. Até porque, sendo, também, para muitos, uma questão moral, ética e religiosa, estes não devem, ou melhor, não podem ser obrigados a subsidiar indirectamente, por via tributária, uma prática que condenam. Também não me convencem - nunca me convenceram - os cenários neo-realistas dos abortos em vão de escada, em condições miseráveis para as mulheres. Os «vãos de escada» existem por a prática ser ilícita e não por ser cara ou barata. De resto, uma vez despenalizada (como sucede, na prática, na nossa vizinha Espanha) as clínicas privadas resolverão esse problema, a preços condizentes com as possibilidades da procura, como é evidente.
Em conclusão, o modo como este referendo foi conduzido - aborto penalizado ou aborto subsidiado, bem como a falta de inteligência da campanha do «Sim» (embora a do «Não» também não deixe, neste domínio, os seus créditos por mãos alheias) pode muito bem condená-lo ao fracasso. Uma vez mais.

descentralização vs. regionalização

Porque é que descentralizar não chega? Porque descentralizar consiste numa mera delegação ou transferência reversível de poderes, por parte da administração central para entidades que ela própria criou e que, em última instância, dela dependem. Significa que o poder soberano se mantém no órgão central que o cede a outro, por razões de simples funcionalidade. Não envolve qualquer reconhecimento de poder próprio das entidades descentralizadas, menos ainda das comunidades sociais onde e para quem elas operam. É, por conseguinte, um estatuto de menoridade política local de natureza vertical.
Em contrapartida, a regionalização parte do pressuposto que uma determinada comunidade inserida num todo nacional possui soberania própria em certos níveis de poder constitucionalmente determinados, da qual dispõe sem necessidade de consentimento superior, porque lhe pertence. O exercício dessa soberania depende da livre expressão da vontade popular, manifestada através do voto em órgãos políticos locais ou regionais. Trata-se, portanto, de um estatuto de maioridade política local com natureza horizontal.
Assim, e em última análise, ter medo da regionalização é ter medo da democracia no seu mais sentido mais nobre: o poder exercido pelo povo, para o povo e sufragado e fiscalizado pela vontade soberana do povo. Não se percebe porque razão há-de isto meter medo a alguém.

norte e sul

Existem dois países no Portugal dos nossos dias: Norte e Sul, em linguagem figurada naturalmente, ou, se preferirmos, invertendo os vocábulos, capital e província, cidade e parvónia, Lisboa e o resto. Num país progressivamente empobrecido, o que distingue estas duas realidades? A renda, certamente, mas não só ou nem tanto isso. Mais do que a renda, é a sensação instalada de ausência de importância das partes, de protagonismo e de estatuto da periferia em relação ao centro. A noção de esvaziamento, de esvaimento, e de que o pequeno poder que ainda sobra a esta comunidade que é Portugal existe apenas num único ponto do país: o poder do carimbo, da decisão, das empresas que ainda vão gerindo o que sobra do Estado, das instituições públicas e, por centrifugação, das poucas empresas privadas com espessura que querem sobreviver. Esta falta de uma saudável competição que marcou Portugal durante décadas e que foi parte da explicação de algum do seu desenvolvimento regional e nacional então sucedido, acelerou o empobrecimento do país e contribuiu para a perda de qualidade da vida dos portugueses. Hoje, fora da capital, a paisagem humana e geográfica começa a ser deprimente, a fazer lembrar as sociedades do subdesenvolvimento terceiro-mundista do antigo bloco de leste: empresas falidas e fechadas, fábricas enormes abandonadas, prédios inteiros nas baixas das cidades entaipados, onde outrora, num passado recente, existiram pontos prósperos de comércio e serviços, mendigos em abundância, gente que se percebe estar a viver momentos de extrema dificuldade. Se não se inverter rapidamente a tendência, o panorama alastrará em breve à capital. Por isso, a grande reforma que é necessário fazer em Portugal é a da própria estrutura do Estado e do seu modelo centralista agravado nos últimos anos, possibilitando um país onde a competição exista e seja sustentada por partes com posições de importância relativamente equivalentes. A isso chama-se regionalização.

associações cívicas

No «Forum TSF» de hoje, Manuel João Ramos, Presidente da ACA-M, pôs o dedo na ferida sobre as associações cívicas e de cidadania do nosso país: estão todas, ou quase, penduradas no Estado, à espera de um subsidiozinho, de uma sede, de equipamentos, enfim, de uma sinecura qualquer. Por isso, diz, não é de espantar que estas «associações cívicas» não protestem, não reclamem, não desempenhem o papel que delas é esperado. A estatização da vida portuguesa está por todo o lado e subverte tudo em seu benefício, até mesmo as pessoas e as suas organizações vocacionadas para controlar o Estado. Foi isto, sem tirar nem pôr, que Manuel João Ramos nos disse. Infelizmente, tem toda a razão.

P.S.: É de salientar que a ACA-M, como referiu o seu Presidente e é, de resto, do domínio público, não depende em nada do Estado. E, muito provavelmente, a haver uma associação que o merecesse, não repugnaria que fosse a ACA-M. Preferem, contudo, manter-se assim e assim manterem a sua independência. Parabéns.

07 janeiro 2007

inventar a roda

Não vale a pena perder muito mais tempo com o assunto, muito menos a tentar inventar a roda. Os modelos de organização política das sociedades democráticas sob a forma de Estados conhecem, na Europa, de há décadas a esta parte, três ou quatro tipos. A saber: o Estado Federal (Alemanha, Áustria, Bélgica, Bósnia-Herzegovina, Rússia, Suiça); o Estado Autonómico (Espanha, Sérvia); o Estado Regional (Bulgária, Dinamarca, França, Itália, Noruega, Países Baixos, Polónia, Roménia); o Estado Unitário centralizado (Grécia, Portugal).
Nos modelos de Estado onde há partilha de poder ou co-soberania, existem governos próprios em cada um dos Estados/Autonomias/Regiões, com órgãos eleitos directamente pelos cidadãos («self-government»). A soberania é partilhada a dois níveis, a do Estado central e a das partes que o compõem, sendo articulada por um texto constitucional nacional ou comum, independentemente de cada uma das partes ter ou não uma Constituição própria (que se submete àquele). O Parlamento nacional é frequentemente, embora não necessariamente, dividido em duas câmaras, uma eleita por sufrágio universal dos cidadãos do país e outra pelos cidadãos de cada uma das partes. É nesta última que se costumam confrontar os interesses locais/regionais com os nacionais. Por último, o que essencialmente distingue o Estado centralizado dos restantes modelos é a existência de mais do que um nível de poder e, sobretudo, a deslocação de competências e de funções de soberania do centro para as partes, isto é, do aparelho de poder do Estado central para os Estados/Autonomias/Regiões.
A tarefa dos liberais está, assim, muito simplificada: apenas têm que decidir qual é o modelo que lhes parece mais conforme às suas ideias de liberdade, responsabilidade, limitação da soberania e auto-governo. O resto do processo (como lá chegar) é meramente técnico e outros países já o fizeram com êxito, como, desde logo, a nossa vizinha Espanha e a generalidade dos antigos países europeus de influência soviética. Não é, por isso, uma intransponibilidade existencial, como há quem nos queira convencer.

Nota: O Rui Castro solicitou-me enfaticamente que lhe fornecesse uma relação dos Estados europeus regionalizados e uma bibliografia temática. Não sei se está a preparar algum trabalho académico sobre o assunto, já que a pressa me pareceu muita, e desejo que o que aqui tenho escrito o possa ter ajudado. Quanto aos livros, para os conceitos fundamentais de Estado, soberania, co-soberania, federação, confederação, regionalização, autonomias, etc., qualquer manual português mais recente de Direito Constitucional lhe poderá ser útil. Por exemplo, o do Doutor Gomes Canotilho, a 7ª edição, que é bastante completo e muito informativo. Se quiser aprofundar algum desses conceitos, nomeadamente as várias tipologias do Estado, há muita coisa aí pela praça. Por mim, recomendar-lhe-ia dois muito simpáticos: o Derecho Constitucional Comparado, de Manuel Garcia-Pelayo, e a Teoria Geral do Estado, do Thomas Fleiner-Gerster. Desculpe o atraso e agora toca ao trabalho!

(des)integração

Junte vinte e sete tipos numa sala e peça-lhes, educadamente, que marquem um dia, uma hora e um local para irem todos jantar. Estabeleça como critério que as escolhas serão alcançadas por uma confortável maioria qualificada de mais ou menos três quartos, e ainda que se algum deles se sentir particularmente melindrado com a decisão final a poderá anular. Fique à espera que lhe comuniquem o dia da jantarada e ponha como condição que fará uma severa dieta até ao acontecimento. Provavelmente não voltará a comer uma refeição decente no resto da sua vida.
Agora, aplique este jogo à União Europeia, onde estão vinte e sete Estados a discutir diariamente poder, recursos e influência, e tire as suas conclusões.

os restos do iluminismo

Os anti-regionalistas consideram que a regionalização do país traria para a política local um sem número de políticos sem escrúpulos, aldrabões, mal preparados e despesistas, eleitos por populações que, concluiu-se, se deixariam facilmente enganar nos actos eleitorais. Trata-se de um evidente preconceito anti-democrático, como já aqui foi assinalado, que põe em causa a capacidade popular de ajuizar correctamente as suas escolhas políticas e de as corrigir na eventualidade de as ver defraudadas.###Mas este preconceito tem outros corolários e envolve outras consequências. Em primeiro lugar, ele significa, a contrario sensu, que a situação actual é melhor porque o povo tem um reduzido controlo sobre quem o governa. De facto, não se pode presumir que o mesmo povo seja lúcido nas suas escolhas nacionais e irracional nas suas escolhas locais. Por conseguinte, isso só pode significar que os anti-regionalistas consideram que o controlo popular do aparelho do poder é actualmente muito reduzido, e que quanto menos o povo meter o bedelho nas coisas da governação mais feliz será. Em segundo lugar, ele significa que só um reduzido número de políticos - os eleitos da virtude, consegue superar as vulgares paixões do poder e colocar-se acima da vulgaridade. Essa elite dirigente não se encontra certamente na província, antes ruma à capital onde pode e deve ser apreciada.
Em última análise, o preconceito anti-democrático dos anti-regionalistas resulta da mentalidade iluminista de que o pombalismo e o Terreiro do Paço foram e são os símbolos maiores em Portugal. Como, na verdade, há tempos se escrevia aqui, essa mentalidade está bem viva e anda à solta por aí.

regionalização, porto e engenharia social

Aborto, futebol, regionalização e religião. Por ordem alfabética, os quatro temas tabu da blogosfera indígena e, creio, por extensão, da sociedade autóctone. Em torno de qualquer um deles quando manifestamos uma opinião provocamos seguramente polémica, arriscamos zangas com os amigos, e habilitamo-nos aos mais variados enxovalhos e a processos de intenções ocultas (tão ocultas que nem nós próprios as conhecíamos...) de comentadores e interlocutores. Sobre o aborto já escrevi muito e disse quase tudo o que tinha para dizer (mais lá para diante voltarei, provavelmente, ao assunto), sobre religião escrevo com alguma regularidade e sobre futebol, de que gosto e sobre o qual tenho algumas opiniões e preferências, recuso-me a escrever, por amor à vida. Já quanto à regionalização posso considerar que praticamente me estreei hoje na blogosfera, com resultados engraçadíssimos. De todas as reacções há apenas duas com as quais não contava, vindas de comentadores: a acusação de que o que escrevi correspondia à defesa do Porto como pólo centralizador de poder, alternativo a Lisboa e a outras cidades, e a de que estaria a sugerir uma forma de «engenharia social» pouco ou nada condicente com o liberalismo. Procurarei, sumariamente, refutar estas duas impressões sobre o que escrevi.
Quanto à primeira, por razões quase genéticas, o Porto tem de me preocupar mais do que qualquer outra cidade ou sítio de Portugal. Se, como dizia Agostinho da Silva, o nosso domínio é, primeiro, o nosso território, a nossa casa, o nosso alpendre e o que dele a nossa vista pode alcançar, é natural que, como liberal, me preocupe mais com a cidade onde nasci e na qual vivo. Mas o que me preocupa não é tanto um eventual egoísmo, inteiramente natural e defensável, diga-se, de querer para a minha terra mais do que para as outras, mas o facto de a ver empobrecida ao longo das décadas que se têm sucedido no passado recente. Estranhamente, ou talvez não, ninguém parece cuidar de saber porque motivo é que o Porto tem fama de ser, ou de ter sido, um centro de poder e de influência (há inúmeros movimentos sociais e políticos, ao longo da nossa história recente, que partiram desta cidade) e não ter nos últimos trinta anos, qualquer peso político específico que corresponda a essa tradição. Explicações há muitas. Soluções, até agora, não vi nenhumas. Pelo contrário, por cada ano que passa se percebe que o Porto perde poder, influência, recursos e gente: seja pela leitura dos números do PIB, seja pelos números do desemprego, seja pela falta de protagonistas com dimensão, seja pela sensação de que os grandes investimentos nos passam ao lado, seja por percebermos que não dispomos - o Porto e a Região Norte em geral, de instrumentos que nos permitam dialogar directamente com terceiros - a Galiza e Bruxelas, por exemplo, sem necessariamente passar pela tutela do Estado central. Uma boa razão será a de que quem quer fazer política ou negócios vai, ou tem que ir, para Lisboa, na medida em que é lá que eles estão: é lá que está a Chefia do Estado, o Governo, o Parlamento, a maior parte das chefias da administração pública, das empresas do Estado ou controladas por ela. É lá, sobretudo, que está o poder de decisão. O efeito centrífugo disto é evidente, e aliado a essa nova e perigosíssima ideia de que com a moderna tecnologia se pode governar o mundo a partir de um só ponto, gera um caldo de cultura do qual dificilmente se pode sair. O que é facto, é que no Porto, e leia-se aqui «o Porto» em sentido latíssimo, como sinónimo de todos os centros urbanos de média e grande dimensão que (ainda) existem em Portugal, têm vindo a perder gente qualificada para Lisboa e, mais do que isso, não têm permitido que muitas pessoas se revelem, se afirmem localmente, pela elementar evidência de não existirem meios para isso. Creio, por último, que não apenas o Porto mas quase todo o país, ganharia com uma reforma estrutural do Estado português que o transformasse de unitário em regional ou mesmo (utopia inatingível) em federal. Quando se pensa neste assunto, não se pretende dividir o país em duas grandes regiões em torno de Lisboa e do Porto, mas em tantas quantas aquelas que o país (ainda) pode justificar. Os poderes e as competências a distribuir entre o Estado central e as regiões não discriminariam positiva ou negativamente nenhuma destas últimas, ficando todas em pé de igualdade, como é próprio de um Estado de direito. Diga-se, em abono desta posição, que é graças a isto que a Espanha tem crescido após a morte de Franco: permitindo a fixação dos seus melhores às várias autonomias, em posições e no desempenho de funções que, anteriormente, teriam que ir tentar desempenhar em Madrid. Pense-se no caso flagrante de Manuel Fraga Iribarne, para se perceber o que eventualmente temos vindo a perder nos últimos trinta anos de centralismo.
Quanto à segunda questão, a da engenharia social, não vejo como se poderá qualificar assim uma simples operação de redistribuição de competências dentro de uma entidade política, a saber, um Estado e várias entidades políticas de menor dimensão. Pretender transformar um Estado centralizado num Estado regionalizado ou mesmo federal, não é «engenharia social», mas, quando muito, política e administrativa. É uma técnica e não uma substância. Diga-se, de resto, que a favor dos cidadãos e do princípio, agora tanto na boca do mundo, da aproximação do poder de decisão (e, note-se, dos próprios decisores) aos cidadãos que dele são alvo. Ou seja, o famigerado princípio da subsidiariedade que todos apregoam mas que ninguém parece interessado em pôr, de facto, em prática.
De todo em todo, há um paradoxo que me aflige em tudo isto, sobretudo para os adversários da regionalização, e peço desculpa se generalizo para além do devido: todos concordam que o Estado central funciona mal; todos acham que o país está desequilibrado; todos se queixam da desertificação do interior. Mas todos pensam que o único resultado de retirar poder ao centro para redistribuir pelo todo redundaria numa tragédia nacional de ainda maiores proporções que a actual. É muito pessimismo junto!

um belo argumento

«O que o Rui quer é que o Estado se desmultiplique em feudos, conferindo às centenas de subsidio-dependentes que pupulam por esses municípios fora mais poder, dinheiro e protagonismo. Não tenham dúvidas de que essa será a consequência da regionalização que o Rui quer, à semelhança do que pretendiam alguns que acompanhavam Guterres em 1998.», escreve o Rui Castro.
Eis um belo argumento contrário à regionalização, sim senhor! Só não resolve um pequeno pormenor: o aumento de milhares e milhares de funcionários públicos (diria, antes, políticos) durante o referido consulado de António Guterres, colocados nos serviços centrais do Estado, que, segundo dizem, deu cabo do país para as próximas décadas. É que, para o argumento ter validade, a rapaziada devia ter ficado no desemprego, em vez de ter rumado a Lisboa...

tem piada

Sempre que se fala em regionalização (já nem digo em federalismo...) logo aparecem almas generosas a pregar contra a decadência dos costumes e a degenerescência da classe política. O «argumento» é mais ou menos este: já temos que aturar quem nos governa, logo, não queremos aturar mais ninguém. Curiosamente, este «argumento» parece que só olha para o governo central, e esquece os inúmeros serviços públicos, fundações, empresas do Estado, e os incontáveis funcionários políticos postos à sua disposição. Também é curioso que nenhum desses paladinos da anti-regionalização não queira saber, ou pelo menos tentar estudar, se a conta do Estado ficaria mais ou menos aliviada por uma nova distribuição de competências entre o Estado central e as regiões. O «argumento» faz, assim, lembrar aquele outro muito em voga antes do 25 de Abril: «o país não pode democratizar-se porque o povo não está preparado para a democracia». Abençoada intelligentzia que tanto e tão bem tem feito por este país.

não, não e não

A exposição excessiva à militância referendária pode provocar efeitos nocivos. Aqui está um bom exemplo: oiço falar em referendos, digo logo que «não!» De facto, confundir regionalismo ou federalismo com estatização, só por má fé ou por ignorância. Não faria mal nenhum ao subscritor do «post» reler uns manuais de direito constitucional ou viajar um bocadinho por essa Europa fora.

os meus votos para 2007

Agora que, ao que parece, decorreu já o tempo suficiente para a prescrição da validade do primeiro referendo sobre o aborto, não seria mal pensado, apelando a esse precedente, fazer o mesmo com o da regionalização. Na verdade, desde esse já longínquo ano de 1998, o mesmo do referendo ao aborto que se vai agora repetir, nada parece ter beneficiado a ideia então vencedora do Estado unitário e centralizado numa capital política e administrativa. Pelo contrário, o país perdeu, na generalidade, poder, e, com excepção de Lisboa, o produto interno das grandes cidades portuguesas tem vindo a diminuir. O facto da capital continuar a ser o centro político e administrativo do país, tem resultado numa concentração excessiva de recursos e de pessoas na cidade, muito para além das suas próprias capacidades naturais, prejudicando-a a prazo, em vez de a beneficiar. Por outro lado, isso provocou a desertificação das soit disant elites (embirro com o termo e com o seu habitualmente pretendido significado) nacionais, já que quem quer ascender em Portugal tem, quase inevitavelmente, que ir parar a Lisboa, ou passar longos períodos de tempo por lá. Tome-se por exemplo a cidade do Porto, centro histórico de protagonistas social e politicamente influentes, e veja-se quem nos últimos trinta anos teve, na cidade, um projecto de poder local, ainda que módico.Talvez Fernando Gomes, Pinto da Costa, Valentim Loureiro, Narciso Miranda, Vieira de Carvalho e, francamente, não me vem mais nenhum à cabeça. O balanço, convenhamos, não é exactamente brilhante e as novas «elites» da cidade não se conseguem vislumbrar, nem à lupa. Como o poder está em Lisboa, as «elites» portuenses pelam-se por ter um lugar, como dizem, na «Assembleia», um apartamento na «Linha» e uma namorada loira platinada, às quintas, na «Kapital». A regionalização seria, por isso, um bom argumento para obrigar os portugueses a repensarem o país e a repensarem-se a si mesmos. Se o termo for politicamente inconveniente, arranje-se outro. Por exemplo, autonomizar ou federalizar o país. Bem sei que não temos, em Portugal, uma tradição federalista, mas, como dizia o outro, «a tradição já não é o que era». Se nos conseguíssemos ver livres das nossas mais recentes tradições políticas, éramos capazes de sair todos a ganhar.

francamente!

Para não me acusarem de hipocrisia, de lamechice ou de relativismo agnóstico, entre muitas outras possíveis patetices, que fique claro que me é indiferente que Saddam Hussein esteja vivo ou morto, no céu ou no inferno, rodeado de virgens ou de demónios. Mas, sabendo que está morto, as causas aparentes da sua morte (as que vi na televisão...) não me agradam. Porque, depois de ver infundada a suspeita das «armas de destruição maciça», o que restava da deposição do ditador era a ideia de que tínhamos alguma coisa para transmitir a um povo que ele brutalizara e violentara. Para fazermos o que Saddam fazia, não terão valido a pena os milhares de soldados americanos mortos, os caídos de Atocha, os mortos do 7 de Julho em Londres, a Cimeira das Lages, e os riscos que diariamente muitos continuam a correr no campo de batalha e fora dele. É importante que as pessoas compreendam que o que aqui está em causa não é saber se Saddam era bom ou mau, se martirizou e assassinou milhares de seres humanos indefesos, se merecia ou não a pena de morte. O que ainda podia estar em jogo era saber se quem o depôs era capaz de dar ao povo iraquiano um melhor exemplo que o dele. Infelizmente, não foi.

instituições sociais espontâneas

Lamento, caro Pedro, mas a Igreja Católica não é uma «instituição espontânea» da ordem social. Ela é, pelo menos para os crentes, o produto directo da intervenção divina na ordem humana, instituída pelo filho de Deus e fundada pelo seu discípulo Pedro. Assenta num Livro sagrado, que é, para quem acredita, a revelação da própria palavra divina. Não é, por conseguinte, pelo menos para os crentes, um resultado da simples expressão da vontade dos homens.
Compreendo, contudo, as suas apreensões em relação aos autores liberais que referiu. Como você, também eu tenho algumas reservas ao que escreveram, como sempre devemos ter em relação a todos os sistemas complexos de ideias. E, também como você, sempre prefiro o que Hayek escreveu ao que escreveram todos os outros autores que citou. Descontando o facto de que devemos olhar sempre criticamente para o mundo das ideias, não duvido que o liberalismo clássico e o libertarianismo, apesar das suas compreensíveis fragilidades, são, de longe, as filosofias mais próximas do que pode ser uma ideia plausível da liberdade. È por isso que sou liberal, é por isso que estimo o que escrevem os autores que citou e muitos outros da mesma família, não ignorando, contudo, que, por exemplo, Rothbard considera Adam Smith um espírito menor e um plagiador. Enfim, coisas de família...
Quanto à ordem social espontânea, e às instituições que dela resultaram e que são menorizadas, ou mesmo ignoradas, pelos liberais, há uma sobre a qual tenho andado a pensar e a tentar escrever alguma coisa para eventualmente publicar noutro lugar: o Estado. Ele é, de facto, uma instituição social espontânea, a maior e, a par da Família, a mais importante de todas. Até porque, como bem sabe, o estado de natureza nunca existiu...

os limites da guerra

Para não desistirem da guerra os militares precisam de perceber claramente duas coisas: porque razão a estão a fazer, e qual a solução, política ou militar, que lhe poderá pôr fim. Quem arrisca a vida e tem o sentido da responsabilidade, não o faz impunemente, menos ainda pelo doce canto de sereia dos políticos. Quer saber o que anda a fazer, para quê e até quando. Foi isso que falhou na(s) nossa(s) guerra(s) ultramarina(s) e é isso que está visivelmente a falhar no Iraque.

mau demais

Primeiro, fomos ao Iraque para nos defendermos de uma terrível ameaça nuclear.
Depois, para derrubarmos uma ditadura impiedosa e para impormos as regras da democracia e da liberdade.
Em seguida, para ajudarmos o povo iraquiano a construir instituições representativas e que permitissem o funcionamento autónomo do país.
Agora, por lá continuamos para impedir uma guerra civil de consequências desastrosas e imprevisíveis.
Por fim, parece que, com Saddam pendurado na ponta de uma corda, os objectivos da intervenção estão finalmente cumpridos.
É mau demais para ser verdade e o Partido Republicano vai pagar, por muito tempo, os custos de tudo isto.

a superioridade moral do ocidente

O enforcamento de Saddam às mãos da nova «justiça» iraquiana evidencia o que já há muito se temia: que, à semelhança das, afinal, inexistentes «armas de destruição maciça» do Iraque, também o Estado de direito inexiste, agora, nesse país. Com esta morte do antigo ditador, a tão propalada «superioridade moral do Ocidente» acabou de sofrer um dos maiores abalos de sempre.

os dois reinos

Ler a história política de uma comunidade, de um país ou de uma época pelo óculo da religião, de qualquer religião, é um dos vícios de que enferma a mentalidade totalitária, qualquer que seja a posição adoptada. Na verdade, seguindo esse critério, há de tudo para todos: as piras da Inquisição, as perseguições jacobinas na Europa dos primórdios republicanos, os Cátaros, os Templários, o comunismo e o nazismo, o salazarismo e o franquismo, etc., etc., etc.. A religião compõe parte substancial da natureza humana e a explicação para o fenómeno pode ser imanente o transcendente. Devendo ser uma manifestação de individualismo e de intimidade, a religião pertence ao domínio do espírito e não ao do político, menos ainda ao do Estado, a não ser que, como Hegel, os sobreponhamos. Aliás, em abono da verdade, a primeira pedagogia sistematizada da laicidade é cristã, ou mesmo de Jesus Cristo, se aceitarmos o Novo Testamento, quando pregou a separação entre o Reino de Deus e o Reino de César. O resto, tudo o resto, as perseguições, as influências, os martírios infligidos de parte a parte, faz parte da história política dos homens e não das suas relações com o sagrado.

soberania

A essência do totalitarismo democrático, isto é, da convicção generalizada nas sociedades ocidentais contemporâneas de que o poder político pode invadir todos os cantos da vida em sociedade, fundamenta-se numa convicção muito antiga da ideia de soberania.
Se fizermos a genealogia deste conceito, desde os clássicos gregos e romanos, passando pelo Renascimento e por Bodin que supostamente o «criou», aos modernos contratualistas como Hobbes e Rousseau, aos autores do século passado como Carl Schmitt, Hans Kelsen, George Jellinek e a generalidade dos defensores da missão social do Estado, neles encontraremos uma ideia de que a soberania é um atributo do Estado, é uma faculdade não partilhável com terceiros, isto é, é indivisível, e se trata de um poder supremo que não comporta concorrência. Sempre, como não poderia deixar de ser, ao serviço da comunidade. Mesmo quando, no caso confesso de Hobbes, (se for preciso...) a tiraniza.
A diferença entre a soberania dos regimes ditatoriais e a que é praticada nos regimes democráticos reside, sobretudo, na sua legitimidade e nalguns limites, outrora muito mais amplos e rigorosos, que vai conhecendo nos segundos e que praticamente desconhece nos primeiros. De facto, o poder soberano é legitimado, nos regimes democráticos, pelo sufrágio universal e aceita limites, como os direitos à vida, à liberdade de expressão, à participação política, entre outros de menor expressão. Todavia, estes últimos direitos têm sido bastante condicionados pelas oligarquias que se vão cristalizando na maior parte das democracias, mantendo-os, muitas vezes, mais como formalidades constitucionais do que efectivos direitos de cidadania política.
Por sua vez, a soberania manifesta-se, hoje como no passado, através da lei. A ideia de que a lei é soberana e, porque expressão do povo, inquestionável e de alcance praticamente ilimitado, tem sido o principal factor de perversão da própria democracia. Na verdade, também aqui, esta ideia é muito antiga: na Roma clássica a lei era a expressão da vontade do imperador; com o Renascimento passou a ser, por influência do direito romano renascido, a vontade do príncipe e do rei; a partir da Revolução Francesa foi a manifestação da vontade geral do povo e por aqui se tem mais ou menos mantido. A ideia liberal oitocentista de que a lei serve para se limitar a si mesma e para conter os ímpetos do poder está, hoje, completamente pervertida por aquela contra a qual se rebelou.
Em qualquer dos casos, pertença a um, a alguns ou a vários, qualquer que seja a legitimidade invocada, esta ideia de lei e de soberania nega, de facto, a liberdade. Para o liberalismo, mais do que os fundamentos da lei e da soberania, interessa a sua qualidade, isto é, as razões pelas quais é exercida e os efectivos limites do seu exercício. Para o liberalismo é indiferente que a lei que atropela a liberdade e os direitos individuais seja sufragada por muitos, poucos ou nenhum. O que verdadeiramente interessa é o seu conteúdo. Em razão do que a democracia liberal, para o ser, carece actualmente de um novo contrato social que a reconduza à sua razão de ser e não àquela de que nos querem convencer.

taxi driver

O CDS continua a dar ao país provas diárias de elevação e caridade democrata-cristã. Ainda ontem o deputado Nuno Melo, generoso, perdoou as malvadezas recentes que lhe fizera a Direcção do partido, enquanto que o deputado Telmo Correia, magnânime, qualificou-as como um simples «episódio infeliz, um deslize».
É graças a estas e a muitas outras como estas, que o próximo líder do partido que vá a eleições, seja Portas, seja Castro, sairá delas como um verdadeiro «taxi driver». O grupo parlamentar que vá pensando nisso e cuidando de marcar lugar sentado.

democracia e responsabilidade

Um dos problemas mais graves do nosso sistema político, comum à quase totalidade das democracias ocidentais, é a impossibilidade de um governo ser destituído por quem o elegeu durante o período do seu mandato.
Na teoria da democracia representativa os eleitores elegem periodicamente uma câmara de representantes de onde emana e que fiscaliza o governo. Durante o mandato, o governo responde politicamente apenas e só perante essa assembleia, que o pode no limite destituir mediante a aprovação de uma votação de censura. Todavia, na prática, não é isso que ocorre. Os deputados eleitos acabam por ser mais dependentes dos governos e do seu chefe, invariavelmente o líder do partido, do que os governos dos parlamentos. A expressão «parlamentarismo de chanceler», ou «parlamentarismo de gabinete», ou ainda «parlamentarismo de primeiro-ministro» serve para representar esta realidade, generalizada na esmagadora maioria das democracias ocidentais.###
Por isso, o objectivo dos partidos com aspirações de governo é conquistar maiorias parlamentares que lhes permitam governar sem sobressaltos, ou seja, sem terem que prestar contas a ninguém. Todos, mas todos eles, prometem o que for necessário para alcançar esse objectivo, sabendo que, uma vez no poder, farão o que tiverem a fazer e cumprirão o que puderem cumprir. Este facto descaracteriza a democracia e diminui o seu valor aos olhos dos cidadãos, provocando a desconfiança generalizada na política e nos políticos, e o divórcio entre aquela e os cidadãos.
Conviria, por isso, que a Constituição admitisse um mecanismo referendário aos governos em funções, que, em situações limitadas mas possíveis de suscitar, pudesse provocar a destituição do governo. Um mecanismo desta natureza responsabilizaria a política e torná-la-ia uma actividade mais séria, mais fiável e mais participada.

democracia liberal

O Estado totalitário não é necessariamente o que exerce o poder de modo ditatorial, mas o que dispõe de mais funções do que aquelas que são próprias da soberania, pelo menos, do modo como a vê o liberalismo.
Para os liberais os poderes do Estado não são próprios, mas delegados pelos seus detentores - os cidadãos, por via de um contrato. Isto quer dizer duas coisas: que a delegação não pode ser considerada irrenunciável, pelo que qualquer cidadão se deveria poder abster da sociedade política, e que o Estado não devia poder adquirir poderes sem o consentimento dos seus legítimos detentores, isto é, dos cidadãos.
Nas ditaduras o Estado tem vida própria e exerce os poderes que entende, mesmo contra a expressa vontade do cidadão. Nos Estados totalitários a centrifugação de poderes é feita à revelia dos cidadãos, invariavelmente, por via legislativa. Ainda que o possa ser por via de instituições representativas, só por ingenuidade se poderá acreditar num tão vasto campo de representação.
Muitas democracias são hoje em dia, infelizmente, Estados totalitários, na medida em que absorveram liberdades e direitos individuais sem o expresso consentimento dos seus titulares originários, fazendo-o em progressão constante, praticamente de forma ilimitada.
A democracia liberal carece de dois requisitos: poder legitimado pelo voto universal e funcionalmente limitado por normas constitucionais e direitos individuais irrenunciáveis. Não se basta com o primeiro, imprescindível à materialização do segundo, mas insuficiente para garantir a liberdade.
Hoje em dia, ao contrário do passado recente, nenhum domínio da vida civil escapa à soberania. Curiosamente, parece que ninguém se preocupa muito com isso.

liberdade e individualismo

Não existem «liberdades civis» por contraposição a «liberdades individuais», como o André Carapinha parece pretender.
Menos ainda se distinguem umas das outras pela sua universalidade ou aplicação individual. As «liberdades civis» são, sem excepção, liberdades individuais: o direito de eleger e de ser eleito para os órgãos de soberania, por exemplo; ou o direito de reunião, a liberdade de expressão ou de opinião. De resto, o termo, na sua origem romana, não significava senão isso: o «ius civile» era o direito dos «cives», isto é, dos cidadãos romanos plenos. O seu âmbito de aplicação, saber se se destinava a um, a alguns ou a todos, é coisa distinta que não modifica a natureza das ditas liberdades ou direitos. A sua democratização, ou universalização, foi lentamente conquistada ao longo dos séculos, mas não modificou a essência desses direitos.
De modo que a liberdade, ou as liberdades, todas elas, se consubstanciam sempre em direitos individuais. A confusão entre isto e o chamado «interesse público», sempre interpretado e declarado, de resto, por indivíduos concretos, pode ser o ponto de partida para a supressão da liberdade. Nomeadamente, quando os seus «intérpretes», isto é, os detentores da soberania, declaram a sua incompatibilidade ou a necessidade de sacrificar os direitos individuais em nome dessa ficção. De exemplos disto estão as democracias ocidentais cheias, como o André Carapinha certamente reconhecerá. Ele que se recorde, por exemplo, do «Patriotic Act», para ver se estamos ou não de acordo.