15 setembro 2006

sistemas de governo e democracia: algumas notas

Desde que o constitucionalismo se impôs, no século XIX, às monarquias europeias, o pacto social e político estabelecido foi este: a Chefia de Estado mantinha-se monárquica, isto é, a sua titularidade era determinada pelas normas da sucessão dinástica, mas o rei não dispunha, de facto, de nenhum dos três poderes que o liberalismo constitucional consagrara: o legislativo, o executivo e o judicial. Na verdade, apesar de formalmente o Rei ser o chefe do executivo (isto é, do governo da Nação), como o consagram os nossos três textos constitucionais do período monárquico - Constituição de 1822 (arts. 121º e ss.), Carta Constitucional de 1826 (arts. 75º e ss.) e Constituição de 1838 (arts. 80º e ss.), o curso dos factos e a lógica dos novos regimes ia no sentido de esvaziar, por completo, o rei de outras funções que não as da simples representação formal do Estado. Em 1822, o executivo residia no «Rei e nos Secretários de Estado, que o exerciam sob a autoridade do mesmo Rei» (art.30º); em 1826, considerava-se que «o Rei é o Chefe do poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado» (art. 75º); e, em 1838, dizia-se que «o Rei é o Chefe do Poder Executivo, e o exerce pelos Ministros e Secretários de Estado» (art. 80º). As sucessivas Constituições outrogaram o poder político aos governos que, embora nomeados pelo Rei, eram, de facto, completamente autónomos da sua autoridade. Disto mesmo dependia a legitimidade constitucional dos novos regimes, assentando na convicção de que a legitimidade do poder decorria do direito emanado do povo ou da nação, consoante as COnstituições fossem mais ou menos radicais, e não do sangue herdado.
Quem, na verdade, governava o país era o Ministério, cujo chefe era naturalmente indicado pelo Rei, de acordo com a composição das Cortes, em 1822, e da Câmara dos Deputados (câmara baixa do parlamento), em 1826 e 1838. O princípio da legitimidade do poder estava, assim, na própria representatividade do Parlamento, embora esta fosse ainda muito reduzida. Para salvar a face da coroa, a Carta Constitucional praticamente em vigor de 1826 a 1910, com as interrupções de 1828 a 1834 e de 1838 a 1842, introduziu nos seus arts 71º e ss. o poder moderador, invenção de Benjamin Constant, que hoje é ainda invocada nas repúblicas parlamentares, que não é verdadeiro poder de soberania, como todos sabemos.
Isto, apenas para dizer que, em momento algum, o constitucionalismo oitocentista admitiu que ao Rei coubessem poderes senão os protocolares e, quando muito, de equilíbrio institucional. O que, certamente, não significa que ao longo do século XIX não tenham existido, em Portugal e no estrangeiro, momentos de transição e de compromisso. Chamaram-se monarquias limitadas, assentavam ainda no princípio monárquico e não eram ainda verdadeiras monarquias constitucionais.
Pode, portanto, afirmar-se que não existem regimes mistos em democracia constitucional e liberal, assentes num poder legislativo e executivo partilhados pelo parlamento, pelo rei e pelo governo. Essas monarquias, quando existiram, não foram constitucionais, nem liberais, nem visaram alcançar o Estado de Direito. Foi, por exemplo e retomando o caso português, o que sucedeu com D. Miguel que, tendo jurado a Carta, a suspendeu assim que assumiu a regência da coroa, em Março de 1828. Quando, também, declarou extinta a Câmara dos Deputados e reuniu as Cortes, à boa maneira estamental, convocando o clero, a nobreza e o povo.
Os chamados regimes mistos nas democracias liberais e constitucionais são baseados em dois pilares: num parlamento eleito em sufrágio universal directo e num chefe de Estado eleito em sufrágio universal directo. Dos quais resulta um governo com maioria parlamentar, mas politicamente responsável perante o presidente. São os sistemas de governo semipresidencialistas, na designação de Maurice Duverger, dos quais são exemplos actuais a França, Portugal, a Irlanda, embora estes dois últimos exemplos tenham vindo a acentuar mais o seu pendor parlamentar em detrimento do presidencial.

Já quando se fala em Estados monárquicos ou republicanos, atendemos à forma política que a chefia do Estado assume. Quando queremos referir a distribuição de poderes e competências, referimo-nos ao parlamentarismo, ao presidencialismo e ao semipresidencialismo, estando a qualificar os sistemas de governo. Tratam-se de planos paralelos e, em democracia liberal, nunca convergentes. Ou seja: o poder tem de legitimar-se nas urnas, através do voto, não sendo possível um chefe Estado monárquico exercer funções de soberania, o mesmo se passando com os presidentes não eleitos em sufrágio universal (é o caso dos parlamentarismos italiano e alemão). Mas já um chefe de Estado eleito em sufrágio universal poderá exercer o poder executivo, como ocorre nos sistemas de governo presidencialistas, dos quais são exemplos o Brasil e os EUA. Só que, nestes casos, o chefe de Estado é também chefe do Governo, porque foi eleito. Os sistemas semipresidencialistas, estes sim podem considerar-se mistos, na medida em que a designação e manutenção do governo dependem de um parlamento eleito e de um chefe de Estado eleito por sufrágio universal. O que nunca existe, volta a frisar-se, pelo menos no constitucionalismo liberal e democrático, é poder político soberano a ser exercido por dignatários não eleitos em sufrágio universal. Nem reis nem presidentes.

Refira-se, por último, a questão da democracia: quando alguns liberais a questionam, não é para a substituir por outra forma de designação dos titulares dos órgãos de soberania. É para a melhorar, alterando, por exemplo, os regras dos sufrágios ou a tipologia e duração dos mandatos. E, sobretudo, para que se compreenda que um poder democraticamente eleito não lhe confere legitimidade para vir a ser um poder ilimitado, como infelizmente tende a suceder actualmente. O liberalismo e a soberania popular rousseauniana nunca andaram de braço dado.
Em suma, o liberalismo explica porque é que o poder tem de ser limitado e que limites nunca poderá ultrapassar. A democracia é um método de escolha dos governantes. Infelizmente, actualmente, por via da lei, certos governantes democraticamente eleitos julgam que o mandato popular lhes confere uma soberania inesgotável, enquadrada na lei que eles próprios fazem. Aqui reside o essencial da crítica liberal ao método democrático: é que ele se trata exactamente de um método e não de um fim em si mesmo.

Adaptado de um texto original do Catalaxia.

14 setembro 2006

ontem como hoje

Quisemos e queremos um «Estado forte», que nos ampare como crianças, ainda que com pouco cuidado e nenhum esmero.

terramoto com epicentro no pc

Ele há coisas que nabos como eu, completo analfabeto do que seja o mundo virtual da net e da blogosfera, não devem nunca ser tentados a fazer. Uma delas, a principal neste ofício dos blogues, é mexer nos respectivos templates. Para isso é que existem os amigos: todos temos, mesmo os menos afortunados, pelo menos um amigo que, valha-o Deus!, sabe manipular estas coisas como se tivesse nascido em Silicon Valley. O que aconteceu no Portugal Contemporâneo foi resultado dessa mentalidade canhestra de mexer onde não se deve, e bem posso dizer que foi um verdadeiro milagre não ter acontecido há mais tempo. Os meus filhos não teriam feito melhor, digo, pior. Se me pedirem para explicar o que sucedeu, terei algumas dificuldades. Os desígnios da blogger, tais como os do Senhor, são, para mim, insondáveis.
De todo o modo, já estava um bocado saturado do aspecto neocon e limpinho do formato anterior. O novo visual é arrojado, inovador e, temo bem, esteticamente execrável. Todavia, foi o que saiu, com direito a Miró e a Picasso (completamente deslocados do contexto), sem links para outros blogues (que provavelmente agradecem a amabilidade) e quase sem aquelas coisinhas que prestam serviços imensos aos leitores (como aqueles mapas que permitem saber quantos visitantes da Nova Zelândia estão on line) e que distinguem os produtos amadores dos profissinais. Mantém o sitemeter porque, como compreenderão, estamos na corrida para os cinco mais lidos da weblog. Depois de tanta inovação, ninguém nos segura!

12 setembro 2006

fanatismos

É extenso o índex de pecados que o CAA conseguiu descortinar neste meu «post», ainda que muitos deles não figurem por lá, tal como dizer-se que o «laicismo é uma utopia milenarista», ou que tenha sido somente «o sentimento religioso a varrer o comunismo».
Nestas coisas de fé tenho por princípio não hostilizar os crentes, porque, ao invés do CAA, como liberal, não acredito que os fundamentalismos derivem «de estruturas organizativas, estatais ou privadas, em que a individualidade se esfuma para ser ofertada ao colectivo». Ao contrário, eu julgo que os fundamentalismos assentam em convicções individuais, desde logo, as dos que dirigem as ditas «estruturas organizativas», até aos que as seguem sem mesmo as questionar. Nisto, como em tudo, prefiro sempre o princípio da liberdade e da responsabilidade individual, desde que aplicada a seres adultos e racionais, do que desculpabilizá-los com explicações colectivistas. Parece que o velho slogan da esquerda que queria atenuar a culpa dos criminosos, imputando a responsabilidade dos seus actos à «sociedade», tem agora, no caso do terrorismo islâmico, uma nova formulação: a culpa, coitadinhos, é mais das «estruturas», dos «dogmas», enfim, da «religião», do que propriamente deles. Nessa, muito francamente, não me apetece embarcar.###
Como me parece igualmente excessivo e digno de reparo conseguir-se, a propósito do 11 de Setembro, começar pela crítica ao fanatismo religioso vigente nalguns países islâmicos e, fazendo um paralelismo sem paralelo, aterrar nas sociedades ocidentais, reclamando igualmente para ambas as virtudes da laicidade. Sociedades ocidentais nas quais o CAA vê perigos imensos dos «fundamentalistas do lado de cá», «por enquanto (...) relativamente circunscritos», obviamente, à «Opus Dei»! Não creio que haja nisto qualquer espécie de rigor.
Este tipo de exercícios sobre religião, onde se confundem realidades inconfundíveis, ou costumam ter segundas intenções (como sucedeu nas muitas «laicizações» sociais vertical e abusivamente impostas, ao longo da história, pelo poder político), o que não é obviamente o caso do CAA, ou resultam da exaltação e da cegueira muito própria dos crentes. Não voltarei, por isso, a pronunciar-me sobre o assunto, sob pena de excomunhão.

o ópio do povo

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É muito antiga a ideia de substituir as religiões por uma qualquer panaceia universal vagamente pacificadora, que agrade a gregos e troianos, e estabeleça entre o género humano a concórdia, a paz e o amor universal. As utopias milenaristas, as cidades do sol, o jacobinismo, o ópio do povo, o laicismo soviético e o comunitarismo hippie partiram sempre desse pressuposto, de que a religião divide, e dessa «necessidade», de substituir a pluralidade pela unicidade, e todas falharam. Na maior parte dos casos, tentando impor pela força o que as pessoas voluntariamente se recusavam a aceitar, como ocorreu com o laicismo soviético durante oitenta anos, que foi submergido pelo sentimento religioso das populações que escravizara, à primeira brisa de liberdade. Em bom rigor, o próprio fanatismo religioso não tem outra finalidade senão essa: a de impor ao outro o nosso Deus, o Autêntico, o Verdadeiro, logo, o único a que se poderá prestar devoção.
Com a laicidade passa-se algo de semelhante: pretende-se impor sobre as mais íntimas convicções pessoais e individuais, o manto diáfano do nada absoluto. Ora, se nunca isso foi possível, numa altura, como a nossa, em que os homens vivem momentos terríveis de crise existencial, provocados pela aceleração das coisas e por uma profunda mutação dos seus padrões civilizacionais, pedir-lhes que metam na gaveta a sua esperança numa vida para além desta, é pedir-lhes o impossível.
Este é, ao contrário do que diz o CAA neste «post», o sentido de uma laicidade totalitarizante, verdadeira religião oficial de todos os despotismos contemporâneos, que decreta a inexistência de Deus não apenas às instituições públicas (questão já há muito ultrapassada nas sociedades democráticas), mas sim às próprias consciências dos indivíduos. Porque, ao invés do que afirma o CAA neste «post», são crenças individuais que estiveram e estarão em causa nos vários fanatismos religiosos do nosso tempo e de tempos pretéritos. Os homens sempre mataram e continuarão a matar por «amor a Deus», como o fazem, de resto, por amor (e ciúme) aos outros. Faz parte da sua condição e da sua natureza.

toalha ao chão

Marques Mendes desistiu de tentar ganhar as eleições legislativas de 2009. Esse é o único sentido do pacto político-legislativo que subscreveu com o governo sobre a justiça, ao qual pretende que se suceda, de imediato, um outro na segurança social. Mendes é um político experiente e não desconhece que se não marcar a diferença em relação ao governo nas grandes questões, não será certamente a reboque das pequenas dissensões que os eleitores o levarão até S. Bento.
Provavelmente, ele terá feito uma análise realista da situação política, e concluído que com um Primeiro-Ministro particularmente hábil e com boa imagem pública, suportado por um marketing convincente e por um Presidente da República de direita saído do seu próprio partido, terá mais hipóteses de ganhar um jackpot no euromilhões do que roubar o governo a José Sócrates naquele acto eleitoral. A isto acrescente-se que Sócrates tem, de facto, governado à esquerda e transmitido a sensação de que o está a fazer à direita, ou, pelo menos, que está a fazer o que não fizeram e deveriam ter feito os governos anteriores da coligação de direita.
Marques Mendes arrastará consigo, inevitavelmente, o PSD: só por absurdo se poderá conceber um D. Sebastião saído do nevoeiro laranja a dois anos das eleições, quando o partido, ao contrário de outras eras, não tem uma única figura que se possa imprimir num cartaz. Deixará de rastos o CDS, inexoravelmente afastado dos centros de poder e de decisão, como ainda agora se viu na negociação deste pacto, e que permanecerá por muito tempo entregue a enjoativas questiúnculas pessoais, sem figuras convincentes, nem um programa político inovador e credível.
Neste cenário era mais do que tempo da direita começar a fazer alguma coisa por si. Se não for para 2009, que seja ao menos para 2013.

um pacto singular

Um acordo legislativo entre governo e partidos da oposição faz-se no Parlamento, e consuma-se no momento das votações. Não carece de mediatização, para além da que for necessária para a elementar explicação do teor dos diplomas aprovados e da sua importância, se ela o justificar. A forma como PS e PSD, José Sócrates e Marques Mendes, apresentaram ao país o pacto sobre a justiça foi política e não meramente técnica. Está longe de se esgotar na reforma dos diplomas legais que visa alterar e que, de resto, o espectáculo mediático que foi montado (que o PSD frequentemente tanto critica ao governo) ainda não permitiu entender muito bem. Aguardam-se as cenas dos próximos episódios, embora não seja necessário ser um fanático das teorias da conspiração para arriscar que ainda agora a procissão saiu para o adro.

pactos q. b.

Um pacto para a justiça? Sim, porque não? E, a seguir, outro para a administração pública, outro para a educação, outro para a despesa pública, mais um para a reforma fiscal e outro para a segurança social, dois para a saúde e o trabalho, três para agricultura, a defesa e a segurança interna e externa do estado (meio para cada um). Ah, mas é claro, e um para o futebol! De pacto em pacto, encontrado o consenso entre o governo e a oposição, estimulado pelas forças vivas da nação e do regime, e sob a égide e o alto patrocínio de S. Exª o Presidente da República, Portugal voltará a ser uma grande e próspera Nação. Podemos dormir descansados.

08 setembro 2006

licenças camarárias

Apesar de ter reaberto há alguns meses e de eu passar lá à porta quase todos os dias, só hoje visitei o renovado Cinema Batalha, no centro da cidade do Porto, onde outrora passei alguns bons momentos cinéfilos da minha juventude.
A iniciativa de recuperar este espaço para a Cidade parece ter sido da Câmara Municipal do Porto, com o público empenho do Presidente Rui Rio, e da Presidente da Associação de Comerciantes do Porto, a Srª Laura Rodrigues.
Gostei de regressar ao velho Batalha. De rever a Sala Bebé, de entrar na sala de espectáculos principal (onde se estava a preparar uma iniciativa do Bloco de Esquerda). Desci ao piso -1, regressei ao rés-do-chão e subi ao 1º andar. Um pouco cansado - a idade já não ajuda e a escadaria do Batalha foi-me sempre agreste, perguntei a um funcionário onde era o elevador para chegar ao 2º piso, no qual se situa um agradável restaurante aberto ao público: tive de fazer o caminho a pé, porque o elevador não existe.
Como não se vêem, também, rampas e outros meios que facilitem o acesso aos cidadãos com deficiências motoras, pequenas minudências legais que qualquer pessoa que pretenda licenciar uma obra de um edifício aberto ao público precisa imperativamente de cumprir. Exigências que são habitualmente fiscalizadas por técnicos camarários, bombeiros, engenheiros, em suma, verdadeiras comissões de peritos, para autorizarem a emissão das necessárias licenças legais. Parece que no Cinema Batalha essas exigências não se colocaram ou foram consideradas desnecessárias.

blogs e jornais

Na mesma semana em que fechou portas O Independente, alguns jornais de referência, entre eles o Público e o Diário de Notícias, publicaram longas reflexões sobre a crise da comunicação social escrita e, paralelamente, embora sem aparente conexão directa, sobre o crescimento exponencial dos blogs portugueses de informação e de opinião política. O Público, na sua edição de domingo passado, publicou um interessante artigo sobre uma mega-fusão comercial de blogs ingleses, com vista à sua comercialização e rentabilização, e suscitou a possibilidade do mesmo vir a suceder com os principais blogs políticos portugueses, entre eles, naturalmente, o Blasfémias.
A interpretação comum sobre a referida crise, vai no sentido de responsabilizar menos os media tradicionais e enfatizar o aumento e a gratuitidade dos novos meios de comunicação, com especial destaque para a Internet e todos os produtos seus associados.
Sucede, porém, que esta explicação não é suficiente. Há que acrescentar que, nos últimos anos, os jornais portugueses, incluindo os «de referência», entretiveram-se a disputar leitores e mercado publicando verdadeiras abjecções supostamente informativas. Deste modo, e muito na senda de um estilo inaugurado pelo O Independente - que, curiosamente, acabaria por ser a sua primeira vítima fatal, os jornais portugueses dedicaram-se a competir entre si para ver quem publicava mais lixo, tendo conseguido saturar os leitores e o país. É que, como dizia o outro, o povo é sereno, mas não é estúpido.
Por outro lado, não há dúvida que o que se vai escrevendo, por ora, na net e, essencialmente, nos blogs, é mais genuíno e descomprometido. E é, também, na maior parte dos casos, francamente de melhor qualidade, embora a função dos blogs seja, por ora, mais de opinião do que de informação.
Os próximos anos dirão como se vai compatibilizar esta interessante e saudável relação concorrencial.

05 setembro 2006

o manifesto

1. O dr. Manuel Monteiro apresentou ao país, na sua qualidade de presidente do Partido da Nova Democracia, um documento que pretende ser o ponto de partida para uma refundação da direita portuguesa, ao qual deu o nome de «Um Manifesto da Direita em Portugal».
Independentemente das habituais questões de natureza partidária e pessoal que sempre acompanham este género de situações, às quais, por menoridade, não prestaremos atenção, o «Manifesto» apresenta-se com o objectivo de ser o ponto de partida para organizar «uma verdadeira alternativa de Direita», e gira em torno de «um conjunto de meia-dúzia de questões muito claras, expostas em linguagem que se pretende muito simples». Em tempos de, segundo consta, refundação da direita portuguesa, em que todas as contribuições devem ser bem-vindas, o documento merece necessariamente atenção. Passemos, então, à sua análise.

2. Comecemos pelo título - «Um Manifesto da Direita em Portugal», que é equívoco ou, pelo menos, bastante ambíguo. Na verdade, se, por hipótese, «Um Manifesto da Direita Portuguesa» pecaria por excesso e não teria nunca, se apenas apresentado pelo dr. Manuel Monteiro, correspondência com a realidade, o título escolhido sugere que a direita se manifestou em Portugal, como o poderia ter feito noutra parte qualquer do mundo. Não se percebe, portanto, que direita é essa: se a direita portuguesa, se parte dela, se a que se reuniu no PND, ou se uma agremiação de militantes de uma qualquer força de direita internacionalista que ia a passar por cá (se calhar em férias) e resolveu fazer aqui o documento. Julgo que a intenção do seu conteúdo exigiria um título do género: «Para uma Direita Nova em Portugal», ou simplesmente «Para uma Direita Portuguesa», já que os autores do documento entendem que, em Portugal, «se repararmos bem, não há Direita: salta-se directamente, na actual organização do pensamento político, do centro-esquerda (ou de um centro-direita que, na prática, é um centro-esquerda) para a extrema-direita». Ideia que é, diga-se de passagem, um tanto ou quanto arrojada.

3. Do ponto de vista formal, o «Manifesto» apresenta alguns descuidos, reveladores da provável pressa com que foi feito, mas que, atendendo à importância que os seus autores lhe atribuem, mereceria melhor cuidado. Assim, ao longo do texto repetem-se a pretensão de «refundar a direita», de criar uma «Direita moderna» em contraponto a uma «velha Direita», a exigência de «separar as águas, para que elas possam ser claras», etc.. Estamos, por ora, no plano das puras intenções, do dever ser, que revelam, contudo, um dos tiques mais preocupantes da direita não-liberal: o voluntarismo e o construtivismo político e social. Ele atravessa, de resto, todo o documento e é provavelmente a sua maior fragilidade. É que, na verdade, a direita portuguesa não é o que é por alguém a ter feito assim (ao invés do que afirmam os autores do documento, que imputam essa responsabilidade aos fundadores revolucionários da III República), mas por se ter feito assim, ou, na mais benevolente das possibilidades, se ter deixado fazer assim. Por outro lado, a realidade não se transforma por golpes de vontade, perpetrados por líderes enérgicos, mas pela evolução natural das coisas, dos actos das pessoas e dos seus comportamentos quotidianos, da reacção das instituições, etc. Ou seja: as coisas podem aparentemente mudar por decreto, mas não se transformam verdadeiramente nessa mudança. Na maior parte das vezes, pioram e agravam os seus males. Com a direita portuguesa, ou com outra direita qualquer, as coisas são o que são e não aquilo que nós imaginamos que elas possam vir a ser.

4. Quanto à substância do «Manifesto», ela desdobra-se em três partes, a saber: a) uma interpretação histórica da evolução da direita portuguesa na III República; b) a exposição de um conjunto de princípios que devem inspirar uma «direita moderna» (sempre e sempre esta necessidade de «modernidade») contrapondo-a a uma «velha direita»; e c) algumas sugestões supostamente operativas, para transformar o regime político actual. Analisemo-las.

a) O «Manifesto» sugere que a direita portuguesa padece de um pecado original que lhe foi imposto no 25 de Abril, pelo facto do regime ter nascido à esquerda e se ter tentado perpetuar, à esquerda, na Constituição. Ora, se isso é parcialmente verdadeiro, só em parte o é, como muito bem afirmaria o Sr. de La Palice. Porque e apesar dos traumas que a direita possa ter tido no 25 de Abril e das vicissitudes que levaram ao surgimento do CDS e impediram que outras forças políticas de direita pudessem singrar (o Partido do Progresso e o Partido da Democracia Cristã, por exemplo), a verdade é que trinta anos é tempo mais do que suficiente para que as coisas se possam modificar. Por outro lado, apesar dos inegáveis trejeitos socialistas do nosso actual texto constitucional, ele em nada inibe que surjam forças de direita diferentes das que existem. Coisa diferente é, de facto, uma vez no poder a direita poder «transformar» a Constituição como entender, eventualmente de modo mais favorável ao seu modo de governação. Mas isso nada tem a ver com a natureza intrínseca da direita portuguesa. O que eventualmente os autores do «Manifesto» poderiam ter dito é que a nossa direita manteve-se igual antes e depois do 25 de Abril, tendo evoluído naturalmente a partir dessa origem. E valeria a pena, depois, reflectir seriamente porque é que as coisas foram e são assim.

Por outro lado e ainda em sede dos pressupostos para a necessidade da transformação da direita, o «Manifesto» conclui que vivemos em Portugal sob o «jugo» de uma «ditadura intelectual» da esquerda marxista. Ora este preconceito tinha alguma razão de ser há cerca de vinte anos atrás, quando a esquerda dominava os meios intelectuais e a cultura não só em Portugal, mas na Europa e no Mundo. Algumas reacções nesse tempo (em que, por exemplo, a «Nova Direita» francesa desempenhou papel de mérito) e a própria inconsistência intelectual da maior parte da esquerda europeia, chegaram para se poder dizer, de há muito, que a inovação, a cultura e o melhor do pensamento político poderão estar em muito lado, mas não estarão seguramente à esquerda. Bastará, por exemplo, passar os olhos pelos blogs políticos nacionais, para se ter disso uma noção exacta.

b) Os princípios propostos para a pretendida «direita moderna» são francamente muito frouxos e pertencem ao património mais ou menos comum a todo o pensamento politicamente correcto da actualidade. Ideias como a necessidade de «um Estado mínimo, ágil e forte» (uma associação, aliás, para os liberais, muito perigosa), «o Direito fundamental da Propriedade Privada», «o Direito fundamental da Liberdade Contratual», «o Homem como princípio e fim da actividade política», ou afirmações como «A Nação surge, para nós, como quadro de referência à acção do Homem», fazem parte de todos os ideários democratas-cristãos, conservadores e social-democratas do nosso tempo. Isto é, do grande centrão, do qual os autores do «Manifesto» querem retirar a direita portuguesa. Assim, manifestamente, não vão lá.

c) No que respeita às funcionalidades, isto é, às propostas concretas para transformar a direita, a ambição também não foi muito além do banal. Desde logo, não se distingue com clareza o que possa ser a agenda política da tal «direita moderna», do que eventualmente seriam alguns pontos de um programa governativo dessa direita. É que, como parece evidente, são coisas diferentes, em relação às quais há que ter alguma prudência. Convém mesmo não dar passos maiores do que o comprimento das pernas, sob a ameaça do ridículo. Mas, admitindo que a diferença entre a «mundovisão» desta «direita moderna» e a sua acção governativa não existisse e que ambas pudessem ser simetricamente concêntricas, há coisas preocupantes no «Manifesto», pelo menos para quem desejar preservar uma consciência liberal sólida. Nomeadamente, a visão que o documento transmite sobre aquilo que acha dever ser um «Estado mínimo». Atenda-se, por exemplo, às seguintes afirmações: «Ao Estado, através de um conjunto de competências que lhe é outorgado pelos cidadãos, compete definir as regras da vida em comunidade, aplicá-las e vigiar para que sejam cumpridas»; «É ao Estado, tal qual o caracterizamos no ponto que se segue, que compete criar esta nação preparada para a necessária abertura ao mundo»; «uma Direita moderna propõe um modelo de Estado que, no essencial, funcione como árbitro entre os cidadãos, cumpra as funções, e só essas, que os cidadãos não possam cumprir na esfera privada, apoie, permitindo uma vida digna, os cidadãos que, de facto, necessitam de apoio». Tais afirmações, ainda que contraditadas pela intenção de pugnar pelo tal «Estado mínimo», são, obviamente, muito estatizantes e, por que não dizê-lo, próprias de uma direita tradicional, muito antiga e nada moderna.

5. Sobre a verdadeira mentalidade da direita portuguesa, atenda-se aos seguintes excertos de um discurso de um conhecido estadista: «Impelimos o Estado, primeiro para a passividade absoluta, que nada tinha a ver com a organização da economia nacional, e depois para o intervencionismo absorvente, regulando ele a produção, a repartição, o consumo das riquezas. Sempre que o fez, esterilizou as iniciativas, agravou desmedidamente as despesas e os impostos, diminuiu a produção, delapidou grandes somas de riqueza privada, restringiu a liberdade individual, tornou-se pesado, insuportável inimigo da Nação» (...) «Contra todas as claras lições da experiência entendem muitos que há-de o Estado alargar as suas funções económicas, organizando ele próprio a produção e com esta a repartição da riqueza. (...) Mas, exceptuados os momentos em que se hajam de salvar do melhor modo possível os maiores valores da economia nacional, arrastados pelo encadeamento dos desequilíbrios que as crises provocam, as funções do Estado devem ser muito mais limitadas e essencialmente diferentes» (...) «Normalmente o Estado deve tomar sobre si a protecção e a direcção superior da economia nacional pela defesa externa, pela paz pública, pela administração da justiça, pela criação das condições económicas e sociais da produção (...)».
No essencial, este conjunto de ideias está bem patente no «Um Manifesto da Direita em Portugal», como estão profundamente entrosadas, diga-se em abono da verdade, na mentalidade de toda a direita portuguesa: um Estado limitado, mas «ágil e forte» nas suas «funções soberanas (...), a saber, as da «Justiça, Segurança, Defesa e Política Externa»; mantendo com o «estatuto de mera residualidade», «exclusivamente assumidas quando a sociedade civil não manifestar interesse na sua prestação», funções na «Cultura, Educação, Saúde e Segurança Social».
Diga-se que o citado discurso é do prof. António de Oliveira Salazar e foi proferido em 16 de Março de 1933, na sede da União Nacional.

6. O mal da direita portuguesa, da velha, da muito velha, da menos velha e da actual, foi sempre o seu imenso fascínio pelo Estado. O documento do Partido da Nova Democracia não o disfarça. Infelizmente e enquanto não aprender a pensar para além e por cima do Estado, não teremos em Portugal uma direita verdadeiramente liberal. Nem com este «Manifesto» nem com outro qualquer.

01 setembro 2006

nota editorial

O Portugal Contemporâneo tem sido, de há muitos meses para cá, o depósito dos «post» que regularmente publico no Blasfémias. Nessa linha de orientação, tem-me sido pessoalmente útil, porque colige num só blog o que vou escrevendo num blog colectivo. Admito, porém, que para os leitores o PC tenha perdido interesse útil, já que não passará certamente pela cabeça de ninguém vir aqui bisar a leitura do que escrevo noutro lugar.
Assim e na justa medida do meu limitado tempo, é provável que futuramente possam aparecer por aqui um ou outro texto de carácter eventualmente mais pessoal, que não seja publicado no Blasfémias, embora este continue a ser o meu primeiro blog. Trata-se, portanto, de uma vergonhosa estratégia comercial, para manter a casa aberta e o interesse da freguesia

três notas sobre a direita

Pedro Ferraz da Costa admite no Público de hoje (link directo indisponível) a possibilidade de patrocinar a criação de um partido de direita, por insatisfação em relação aos que já existem. O partido seria «liberal, muito mais moderno do que conservador» e juntar-se-ia aos três que já andam vagamente por essas águas: o PSD, o CDS e o renovado PND, que parece ter concluído agora, ao fim de três anos de fulgurante existência, ser efectivamente um partido de direita. Apesar de ser um homem inteligente, a quem a direita deve alguma coisa e poderá vir a dever mais ainda, a verdade é que em matéria de criação de partidos políticos liberais, o dr. Ferraz da Costa é como o outro: não anda, nem sai de cima. Pelo menos desde há vinte anos atrás, quando provavelmente deveria ter feito o que agora anuncia pela milionésima vez que irá fazer. Neste particular assunto da criação de novos partidos, o prazo político do dr. Ferraz da Costa já há muito terminou.

Mantendo o registo numa análise freudiana, a direita portuguesa parece, nesta reentré, uma jovem lasciva de sexualidade recalcada: muitos a querem, mas ninguém se chega à frente e ela, pelo seu lado, quer oferecer-se mas não sabe como. O dr. Portas no CDS e o dr. Borges no PSD prometem mas não cumprem, enquanto que os respectivos directórios oficiais continuam sem dizer ao país o que têm para lhe oferecer: se mais do mesmo, se coisa diferente daquilo a que nos têm habituado. A continuar por este caminho, não será nas próximas legislativas que a direita perderá de novo a inocência e poderá regressar ao libidinoso cadeirão do poder, onde, da última vez que por lá passou, se estirou languidamente sem proveito para ninguém.

Saiu hoje o número 18 da Revista Atlântico. Apesar de criticável, como tudo na vida, a revista tem vindo a melhorar substancialmente de número para número e possui a incontornável virtude de ter conseguido reunir num só projecto um excelente grupo de colaboradores, representativo do melhor que a direita portuguesa consegue culturalmente produzir. Diga-se, também, que nestes dois anos que leva já a «refundação» da direita indígena, a Atlântico foi a única novidade a merecer registo. É pouco? Pois é, mas é o que há. Parabéns, portanto, ao Paulo Pinto Mascarenhas e a toda a equipa.

três recordes pessoais

Provavelmente só ultrapassados nos meus cada vez mais longínquos tempos da adolescência: trinta dias consecutivos de férias, dois únicos cafés tomados durante todo esse tempo e uma abstinência quase conventual (muito imposta pelos ditames autocráticos conjugais) da blogosfera. Agora, é tempo de retomar, moderadamente, a minha presença no Blasfémias.

ao ritmo do samba

Quem não percebesse nada da política brasileira e estivesse à espera do debate presidencial de ontem à noite na TV Band - o primeiro da campanha presidencial com eleições marcadas para o próximo dia 1 de Outubro - ficaria provavelmente na mesma.
O debate juntou cinco dos seis candidatos - Cristovam Buarque (PDT), Heloísa Helena (P-SOL), Geral Alckmin (PSDB), José Maria Eymael (PSDC) e Luciano Bivar (PSL) - e ficou sobretudo marcado pela ausência de Lula, que alegou compromissos inadiáveis.
O melhor momento do sarau televisivo ocorreu quando Eymael, o candidato "social-democrata-cristão" com aparência de actor de série televisiva dos anos 70, disse não compreender o espanto dos presentes pela ausência do actual Presidente, já que como ele "não viu nada, não sabe de nada, vai ver não sabia do debate!" De resto, Eymael atingiu outro ponto alto da noite quando, de punho cerrado, voltado para as câmeras, avisou os bandidos brasileiros que o problema nacional da violência "agora é comigo". Incompreensivelmente, um candidato com tamanhas qualidades parece não conseguir "despegar" dos 1% das intenções de voto. Que injustiça!
O resto não se conseguiu distanciar da banalidade e de um discurso social-cristão-tropicalista, que se move em torno de três tópicos: segurança, educação e reforma fiscal. Heloísa Helena fez o papel da esquerda mais radical, ainda que muito moderada, em busca dos votos perdidos por Lula, Buarque é uma espécie de Guterres, socialista soft apaixonado pela educação (é conhecido pelo "candidato de uma nota só", por não falar em praticamente mais nada), Bivar é, compreensivelmente, um desconhecido fascinado pela Europa, que, finda a campanha, regressará provavelmente ao limbo, e nem mesmo Alckmin conseguiu sair da mediocridade, enredado nos problemas de segurança do Estado de São Paulo, de que foi governador durante seis anos.
De registar um ponto curioso: todos os candidatos, à "esquerda" e à "direita", prometem a redução dos impostos e do aparelho de Estado. O que, bem vistas as coisas, se for a sério, já não é nada mau...

uma notável colecção de asneiras

O Dr. Ribeiro e Castro merece bem o prémio da asneira política do ano: depois de ter hostilizado os caciques locais do portismo, tentando retirar-lhes os lugares para, depois, os deixar exactamente no mesmo sítio, resolveu dar palco ao Dr. Manuel Monteiro e patrocinar-lhe algumas declarações sobre o seu antecessor e cada vez mais do que provável sucessor. Ora, se o Dr. Portas estava à espera de um pretexto para ensaiar o seu regresso, o Dr. Ribeiro e Castro deu-lho de bandeja. Obviamente que o não fará em resposta directa à provocação, nem muito provavelmente nos tempos mais próximos. Por enquanto, continuará a cozinhá-lo em lume brando, até que se cumpra o seu calendário político pessoal. Quando entender, não lhe faltarão bons argumentos para regressar. Todos eles fornecidos, voluntaria ou involuntariamente, por quem se prepara para substituir.

a união nacional

Na sua mais recente tentativa de sair do limbo político onde, por sua inteira responsabilidade, vive há alguns anos, o Dr. Manuel Monteiro não teve melhor ideia que não fosse falar do Dr. Paulo Portas. Desta vez, imputando-lhe a responsabilidade por impedir a "união da direita", que ele imagina dividida pela pérfida inteligência do Dr. Portas. O mesmo Dr. Portas que, de há anos para cá, lhe vem fazendo inomináveis patifarias de que o Dr. Monteiro vai dando conta aos jornais que o querem ouvir.
O que isto tem de fascinante é a obsessão pessoal do Dr. Monteiro pelo Dr.Portas. Para ele o universo gira em torno do antigo director d'O Independente, obsessão que o levou a demitir-se da liderança do CDS, mais tarde, a abandonar o partido e a fundar um outro (que teve certamente uma enorme utilidade na pretendida "unificação"). Sobre o país, os portugueses, a economia, a justiça, a educação, a saúde, etc., etc., etc., não me lembro de ter dito uma palavra. Minto: recordo-me de ter sugerido a reposição das fronteiras internas no espaço comunitário, para regressarmos aos saudáveis valores patrióticos de antanho. Se a coisa não teve seguimento, há-de ter sido seguramente por culpa do Dr. Portas.

comércio e cultura

O Dr. Rui Moreira pronunciou-se, no Fórum TSF de hoje de manhã, contra a decisão tomada pela Câmara Municipal do Porto de privatizar a gestão do Teatro Rivoli, acto que considerou uma «abdicação do poder político» local. Não tendo a presunção ou a veleidade de pretender reproduzir integralmente o pensamento do Dr. Rui Moreira sobre o assunto, sempre adiantarei que me pareceu ouvi-lo dizer que o poder político, neste caso a CMP, deve ter a cultura como um bem público a apoiar e a sustentar, quer isto dizer, a financiar.###
Acontece que a cultura é um bem como outro qualquer, com pessoas e entidades que a produzem e com indivíduos que a consomem. Como tal, o seu valor só poderá ser o valor de mercado e não propriamente uma qualquer abstracção determinada por avaliações subjectivas dos políticos, que servem habitualmente para agradar a clientelas ou para impressionar os eleitores. Dito por outras palavras: se eu tiver um quadro de Dali enfiado no meu escritório particular, o quadro não vale nada, ou antes, terá o valor exacto que eu lhe atribuir. Por isso é que os quadros estão expostos em museus pagos por quem os quer ver, assim como os filmes, as peças de teatro, etc., são exibidos em salas próprias para uma clientela que está disposta a pagar para lhes ter acesso. No caso do Teatro Rivoli, ou de qualquer outro equipamento com vocação cultural, o que interessa é saber se ele é visitado, frequentado e sustentado por quem dele beneficia, isto é, se tem verdadeira utilidade. Querer impor o Rivoli como espaço de cultura, com porta aberta para a cidade, para manter artificialmente a oferta dos serviços que lá se prestam, é um grave erro político e de gestão, sem qualquer justificação social. Por isso, a decisão da Câmara Municipal do Porto só pode ser bem vinda e a pecar por alguma coisa, só pecará por defeito.
Obviamente que não estão em causa as opiniões pessoais do Dr. Rui Moreira sobre o papel do poder autárquico no domínio da cultura. Como qualquer cidadão, ele tem direito a tê-las e a manifestá-las livremente. Já me entristece, porém, saber que essas são as opiniões do Presidente da Associação Comercial do Porto, de quem certamente esperaria outro arrojo e outra visão da iniciativa privada, em consonância com as tradições burguesas e comerciais da cidade.

a direita a banhos

Quando, no ano passado, a direita perdeu as eleições legislativas para o PS de José Sócrates, multiplicaram-se os protestos de intenções para a refundar e dar-lhe um destino diferente do que tinha sido no seu passado recente.
Efectivamente, a experiência governativa da coligação PSD/CDS fora muito dolorosa: chegada ao poder acusando o governo cessante de Guterres de cobardia política e de deserção do primeiro-ministro, acabou por perdê-lo, ao fim de três anos, pelas mesmíssimas razões. Por outro lado, o que ficou da memória desses governos, para além das trapalhadas da inteira responsabilidade dos dois partidos da coligação, foi o incumprimento das promessas eleitorais, desde logo, do famoso «choque fiscal».
Depois de se concluir, no seguimento dessa malfadada experiência, que «a direita não estava preparada para governar» e que, por consequência, havia que a habilitar a suceder a José Sócrates, o que têm vindo a fazer os partidos que a representam?
Nada, muito pouco, coisa nenhuma, ou, às vezes, mais valia estarem quietos: o CDS entretém-se em patéticas questiúnculas internas e em conflitos por um poder que já não tem e que dificilmente recuperará eleitoralmente, enquanto que o PSD decidiu quedar-se mudo e quedo, adoptando a táctica rotativista de que se não fizer muitas ondas o poder há-de, mais tarde ou mais cedo, acabar por lhe vir parar às mãos.
Quanto aos chavões do costume - a abertura à sociedade, a qualificação da sua actuação política, a aproximação dos partidos e das suas estruturas aos cidadãos -, e a algumas novidades - a sua conversão ao liberalismo -, tudo como dantes, quartel general em Abrantes. A direita indígena continua igual a si própria e ao que tem sido nas últimas décadas. Não muda, não se adapta, não se interessa efectivamente pelos eleitores. Espera que estes se saturem de Sócrates e prepara-se para voltar ao governo ao colo das suas estruturas e dos pequenos interesses que estas representam.
Como alguém dizia há uns anos, não tem, de facto, emenda.
Não há machismo mais incomodativo do que o dos defensores das «coitadinhas», das mulheres desamparadas vítimas da supremacia sexual dos homens, meio patetas e fraquinhas de corpo e de espírito, personagens saídas do neo-realismo socialista de Dickens e de um mundo dominado por machos impiedosos e exploradores da sua alegada fragilidade.
Em todos estes argumentários, sobretudo nos travestidos de progressismo esquerdista, é sempre a diminuição de género feminino que prevalece: as mulheres são seres fracos, frágeis, facilmente domináveis, submissos e menos adaptados ao mundo moderno. Salazar, para quem a mulher era a dona do lar e o exemplo da moral cristã, não diria melhor.
Em Portugal a nossa vanguarda do proletariado é fértil neste tipo de ilusões. Quando, por exemplo, se refere que 84% dos candidatos aprovados ao exame nacional que permite o acesso às magistraturas foram mulheres, logo surgem as mais diversas explicações para justificar a «excepção». Quando se diz que quem ultrapassa um júri deste quilate pode dar cartas em qualquer outra actividade, nomeadamente na política, imediatamente se arranjam argumentos em contrário. Eles acham mesmo que as mulheres, que no século XX conseguiram ultrapassar todas as discriminações de que durante muito tempo foram vítimas, estavam agora à espera que estes benfeitores se arvorassem em modernos trovadores românticos, e generosamente se lembrassem delas para lhes abrirem os corredores do poder e da política.
Quem vive neste mundo, já há muito percebeu que o poder pertence cada vez mais às mulheres: na família, no trabalho e na sociedade. Aqueles que julgam, por exemplo, que o domínio do poder judicial é menos importante que o do poder político, e que quem consegue ascender ao primeiro é incapaz de conquistar o segundo senão através de leis de beneficência sexual, andam de olhinhos tapados.

quotas

Via Casino da ELSA, cheguei aos resultados do último exame de admissão ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários), de onde saem, para quem não souber, os futuros magistrados deste país.
As estatísticas são esclarecedoras: 97 admitidos, dos quais 81 mulheres (83,5%) e 16 homens (16,5%).
Isto demonstra duas coisas: que as mulheres são profissionalmente mais aplicadas e competentes que os homens, conseguindo triunfar em qualquer profissão, e que a célebre «lei das quotas» é uma bizarria. Se as mulheres não estão mais representadas na política, só pode ser por uma razão: não lhes interessa.

a causa das coisas

O mal de coisas como esta, não é tanto estarem disfarçadamente contra ou a favor de um dos lados da guerra. Não é serem ideologicamente comprometidas com qualquer uma das partes do conflito. Nem gostarem mais de Israel ou dos seus inimigos. Numa sociedade livre as pessoas podem opinar e defender o que muito bem entenderem, sem que daí venha mal ao mundo. Não é este, portanto, o problema.
O que dá voltas ao estômago e provoca náuseas em exercícios deste calibre, é a presunção, a vaidade, a arrogância e a prosápia dos seus protagonistas. Eles sabem que um abaixo-assinado contra a guerra é uma inutilidade e uma idiotia. Obviamente que nem Israel, nem o Hezbollah, nem a Síria ou o Irão sabem da existência dos senhores Eduardo Lourenço, Prado Coelho, Januário Ferreira, Miguel Portas e Ilda Figueiredo, menos ainda dos seus abaixo ou acima assinados. E, embora possam parecer o contrário, os subscritores do documento também não são idiotas ao ponto de pensarem que o seu acto possa ter outras consequências, senão a de aparecerem domesticamente nos noticiários, que é, em rigor, exactamente o que pretendem.
No século passado, à esquerda e à direita, inúmeros activistas políticos e intelectuais pegaram em armas e voluntariaram-se em muitos dos conflitos que marcaram a Europa do seu tempo. Em Portugal, para não irmos mais longe, bastará termos presente a memória de Emídio Guerreiro. Hoje, assinam documentos e prestam declarações à comunicação social, à custa da morte e do sofrimento alheio.